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CAPÍTULO II CORPORALIDADE

3. Corpo fragmentado: Pós da Modernidade

Estou velho! Dói-me o joelho Dói-me parte do antebraço Dói-me a parte interna de uma perna E parte amiga da barriga Que fadiga, o que é que eu faço? Escolho o baço ou o almoço? Vira o osso, dói o pescoço É do excesso, do ex-sexo Alvoroço, reboliço Perco o viço, já soluço, já sobrosso Esmiúço os meus sintomas E, já agora, do meu médico os diplomas Esmiúço a consciência E, já agora, apresento a penitência (…) O elixir da eterna juventude Esse que quer que tudo mude P'ra que tudo fique igual Estava marado, falsificado É desleal!

(Sérgio Godinho, ‘O Elixir da Eterna Juventude’)

Sabemos que a modernidade foi marcada pelo sistema capitalista, pela revolução industrial, pela organização de uma sociedade de produtores, pelo despotismo de mercados e de potências económicas, por duas grandes guerras mundiais e pelo prenúncio de uma sociedade de consumo. Sendo este um

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período de ambivalências, está também identificado com a ideia de progresso e com os ideais iluministas. Ainda que seja um tempo histórico envolto no positivismo e numa regulação capitalista, também é verdade que a perspetiva de solidez dos ideais vem da modernidade. Procurou-se definir um projeto de emancipação, em que o indivíduo é ator das suas vontades, e intentou-se a construção do cidadão político e a consolidação de valores estruturantes entretecidos com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, proclamados já pela Revolução Francesa em 1789 e plasmados na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão8. A partir do Iluminismo emergiram, pois, reflexões e

movimentos em defesa da liberdade do indivíduo, da ética e da democracia, contrariando o absolutismo e apelando à liberdade do pensamento e da ação, traços vincados da modernidade. Efetivamente, falamos de uma época de inegável riqueza científica e filosófica e de importantes convulsões antropológicas, ideológicas e socioculturais.

Sinteticamente, talvez se possa dizer que a perspetiva preponderante sobre o corpo moderno, até ao final da primeira metade do século XX, adveio da obstinação com a razão e com um caminho linear para a ordem e para o progresso, fazendo do corpo uma ferramenta de trabalho, um corpo-produtor, lugar sitiado de vigilância e disciplina, de controlo dos indivíduos e de exercício de poder e hierarquização, seja através da sua instrumentalização como capital de trabalho e força de produção, seja como alvo de disciplina, discriminação e ostracização (Barbosa et al., 2011; Jana, 1995).

Entretanto, a evolução das sociedades democráticas até aos tempos de hoje trouxe uma diversificação sem precedentes dos modos de vida, mas nem por isso livre de uma nova forma de regulação social e controlo comportamental, com «poderes cada vez mais penetrantes, benevolentes, invisíveis [e] indivíduos cada vez mais atentos a si próprios» (Lipovetsky, 2007:14). Se anteriormente, na sociedade industrial, a ordem sociocultural se pautava por uma forma de capitalismo cuja valorização caía sobre a produção, hoje continuamos sob a

8 Declaração criada em 1789, no culminar da Revolução Francesa, que preconiza o reconhecimento de

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égide de um sistema capitalista mas na sua variante neoliberal, vorazmente apoiada no consumo (Bauman, 2001; Beck, Henning, & Vieira, 2014; Lipovetsky, 2007).

Ao longo do século XX, com maior evidência na segunda metade, opera-se a mudança de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores, fenómeno que tem influenciado significativamente os modos de ser e viver a contemporaneidade e a corporeidade (Bauman, 2001; Ribeiro, 2005). Lipovetsky (2007) designa de hipermodernidade o período atual, que o filósofo entende ser uma continuação da modernidade, em que se manifestam de forma mais exacerbada qualidades criadas pela era moderna, como a velocidade, flexibilidade, volatilidade, efemeridade e descartabilidade, destacando o consumo como um dos principais vetores da forma de vida contemporânea. Há uma erosão das instituições sociais, ideológicas e políticas, que resulta numa desestabilização e labilidade das convicções e das personalidades. De verdade, o aporte maciço de informações não nos apresenta a realidade como um todo; em vez disso, as vivências são retalhos aleatórios e a existência contemporânea é aberta e plural, mas fragmentada, individualista e hedonista (Lipovetsky, 2007). A crise dos referenciais morais da modernidade dá lugar à lógica do agora, do hedonismo, do consumo e do novo individualismo ocidental disfarçado de liberdade (Bauman, 1999, 2001).

Assumindo uma postura crítica relativamente à pós-modernidade, Bauman (2001) opta pela designação modernidade líquida. Para além de diferenciar qualitativamente o período atual que continua um período anterior (modernidade sólida), a metáfora contém aquele que é para si o aspeto mais óbvio da condição humana contemporânea: a liquidez remete, por definição, para a incapacidade de manter a forma com durabilidade e consistência, mostrando tendência para alterar a sua conformação perante a influência de qualquer força, mesmo que ligeira. Assim, o tempo pós-moderno é perspetivado pelo autor como uma época de grande fluidez e transitoriedade, destacando a fragilidade das relações sociais e humanas como um aspeto significativo deste contexto de mercantilização, reificação e individualização, em que o sujeito se perde na

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ausência de uma bússola ética e se isola na descartabilidade fácil das (des)conexões pessoais (Bauman, 2006).

O advento da modernidade trouxe a reconfiguração do espaço-tempo, permitindo a transgressão das balizas impostas pela distância e pela duração do movimento. O imparável avanço tecnológico veio romper com as formas antigas de transporte e de comunicação, permitindo o acesso facilitado a nova informação, imprimindo outros ritmos, outras vivências dos espaços e dos tempos, modificando os estilos de vida e a forma de nos relacionarmos (Barbosa et al., 2011; Beck et al., 2014; Maroun & Vieira, 2009). Zygmunt Bauman (2001:19) faz ver que hoje «o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou ao seu “limite natural”»: o tempo reduziu-se à instantaneidade e o poder pode agora ser extraterritorial e extratemporal. A aceleração é, então, outro aspeto que caracteriza a sociedade líquida; e na busca pelo inédito que guia as relações de consumo, o novo é consumido e logo descartado perante o rápido aparecimento de um outro novo. Os interesses mudam velozmente, ao ritmo imposto pelas novidades, pela obsolescência do que deixou de ser novo e pelo descarte. O modo de organização das relações com as coisas reflete-se na organização das relações com o corpo, que se reflete na organização das relações sociais, e vice-versa (Baudrillard, 2009). Ora, a tipologia das relações de consumo repercute-se na tipologia das relações sociais e humanas dos tempos atuais. As identidades são voláteis e cambiantes, efeito e causa de uma tendência geral para a coisificação, fazendo com que as pessoas sejam, simultaneamente, consumidoras e mercadoria. A regência de uma sociedade pelo mercado do hiperconsumo tem sido ameaçadora para a economia moral, para o convívio humano e para os processos de subjetivação (Bauman, 2001, 2006; Beck et al., 2014; Lipovetsky, 2007).

De facto, a compressão do espaço-tempo trouxe o rearranjo das formas de ser e estar na vida. O tempo instantâneo é um tempo sem espaço para o engajamento, é um tempo sem substância, um tempo descorporizado, é um tempo sem tempo para criar consequências (Bauman, 2001; Maroun & Vieira, 2009).

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A ênfase no hedonismo e no narcisismo expõe o indivíduo à manipulação pelo mercado e pela publicidade, desapossando-o da sua experiência pela sujeição a um modelo imposto de corporeidade. Trata-se também de um processo atomizador, que desvincula afetiva e socialmente e que, por isso, fragmenta e vulnerabiliza as subjetividades (Fontana, 2009). A par e passo com a cultura do consumo, cria-se uma circunstância corrosiva para os eixos ético-morais da sociedade líquida. A busca pelo prazer, a obsessão pela perfeição e as experiências concentradas nas sensações fugazes do aqui e do agora refletem- se na construção cultural da corporeidade, sendo o corpo um projeto individualizado, definido como um objeto de sucesso pessoal, fabricado e modificado conforme os desejos do indivíduo (Barbosa et al., 2011; Giddens, 1994; Sebastião, 2010).

Do ponto de vista da lógica consumista, pode dizer-se que a relação que a cultura pós-moderna estabelece com o corpo é também uma relação de consumo e de mercantilização. Se outrora vigorava a visão do corpo-produtor, hoje predomina o corpo-consumidor e o corpo-mercadoria (Maroun & Vieira, 2009).

Figura 14 - Representação satírica da evolução do homem (pós)moderno (retirado da web)

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No capitalismo industrial importava ter saúde, como garantia de que os corpos funcionavam com eficiência para o trabalho; hoje, mais do que saúde, o corpo deve ter aptidão (Bauman, 2001). Na sociedade pós-moderna reina a preocupação com a beleza, a juventude e o prazer. Sob o totalitarismo da aparência, o corpo real e os seus processos expectáveis, como o envelhecimento, as doenças ou as formas naturais, são reprimidos e vistos como algo a corrigir, o que garante o aparecimento incessante de novos produtos para consumir no mercado da aptidão física, da boa forma e da eterna juventude (Bauman, 2001; Fontana, 2009; Maroun & Vieira, 2009).

Assiste-se, de novo, a uma glorificação do corpo, em que este é objeto de culto narcisista, produzido à mercê dos padrões ditados pela cultura do consumo e pelos media para representar e exibir a identidade do momento e a ilusão do triunfo do corpo perfeito sobre a velhice, a doença ou o sofrimento (Fontana, 2009; Maroun & Vieira, 2009; Ribeiro, 2005; Sebastião, 2010). Baudrillard (2009) entende que há uma redescoberta do corpo que, após uma longa era de puritanismo e repressão, irrompe em libertação física e sexual. Na avalanche do consumo, «o mais belo, precioso e resplandecente de todos os objetos (…) é o corpo» (Baudrillard, 2009:155). A saúde e a juventude passaram de qualidades impermanentes a aspetos definidores da pessoa humana e o corpo entra assim no mercado como elemento apto a consumir e a ser consumido (Barbosa et al., 2011; Fontana, 2009). Contrariamente ao que possa parecer, o corpo não é hoje um lugar de subversão e libertação do profano contra o sagrado; em vez disso, vive-se uma ressacralização do corpo, uma substituição de um sagrado por outro (Baudrillard, 2009; Le Breton, 2007). A evidência material do corpo libertado é, acima de tudo, a manifestação de um culto, que na realidade é mais favorável ao sistema moderno de produção e de consumo do que o antigo culto da alma (Baudrillard, 2009).

A crise de valores da cultura pós-moderna reflete-se, pois, numa crise do corpo e, naturalmente, numa crise do sujeito (Barbosa et al., 2011). As ideias neoliberais parecem criar subjetividades sujeitadas, em que a sociedade é banhada em vários tipos de textos impositivos de ideias que se apropriam de sentidos e representações do corpo (Bauman, 2001). Há uma invasão da

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dimensão subjetiva, expressiva e simbólica da corporeidade que acaba por se naturalizar, reconfigurando a experiência corporal num crescendo de fetichização e fragmentação, afetando de forma análoga a sua dimensão relacional (Barbosa et al., 2011).

Já aqui foi dito que a forma como nos relacionamos é hoje muito diferente também em grande parte devido às novas técnicas de comunicação, que afetam a vivência corporal e a experiência da presença. Há uma mediação tecnológica generalizada das relações entre as pessoas, da relação da pessoa humana com o mundo e mesmo do indivíduo consigo próprio (Barbosa et al., 2011). O corpo pós-moderno está também a ser tomado de assalto pela cibernética, pela robótica, pela biologia molecular, entre outras inovações tecnológicas (Maroun & Vieira, 2009). Se, por um lado, estas têm trazido vantagens extraordinárias para a área da saúde e da superação de disfunções corporais que limitam as experiências quotidianas, por outro lado há uma faceta que ameaça a ética da vivência corporal e humana. A desvalorização do espaço e do tempo e a persecução de uma replicação tecnológica do ser humano tendem a secundarizar o corpo como base de experiência do mundo. O pós-humanismo anuncia a obsolescência do corpo humano e a aniquilação da sua produção expressiva, cultural e relacional, pondo em causa a noção de humanidade partilhada (Sebastião, 2010). O virtual dispensa os indivíduos da complexidade das práticas sociais e relacionais, conduzindo-os a uma existência mais maquinal, «em que a profundidade, a narrativa e os significados são substituídos pelo prazer de uma experiência sensória e por efeitos especiais» (Sebastião, 2010:69). A consciência desta tendência levanta a urgência de uma contracultura que recupere a dignidade do corpo e o seu lugar no espaço das relações intersubjetivas (Barbosa et al., 2011; Gaya, 2005).

A condição pós-moderna está envolta num ambiente que sugere a defesa da liberdade, da livre escolha e da aceitação do outro tal como ele é, mas debaixo da superfície de verniz entrevê-se o exercício incorporado de uma liberdade individualista guiada pelo hedonismo, desprendida de ética, em que a ostentação suplanta a vivência e onde se apaga a responsabilidade moral pelo outro (Bauman, 1999; Beck et al., 2014).

100 Diz Bauman que

o desvanecimento das habilidades da sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos (…). Neste processo, os valores intrínsecos dos outros como seres humanos singulares (e assim também a preocupação com eles por si mesmos e por essa singularidade) estão quase a desaparecer de vista. A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor. (Bauman, 2006:100,101)

Efetivamente, as antigas formas de sociabilidade caíram na desagregação e, ainda que o corpo seja o centro das atenções do indivíduo contemporâneo e lugar de expressão da subjetividade, parece tratar-se de uma subjetividade amputada do outro, construída sobre a fragilidade do narcisismo e da supremacia de uma liberdade individual que desconsidera a alteridade (Fontana, 2009).

Na sociedade contemporânea o corpo ocupa um lugar de destaque, mas é esgotado debaixo dos conceitos de consumidor/mercadoria, do culto da imagem e da experimentação sensorial autocentrada (Fontana, 2009; Sebastião, 2010). O corpo como objeto de ostentação e de exibição pública do privado faz dele um fim em si mesmo (Maroun & Vieira, 2009) e fica esquecido o corpo vivido intersubjetivamente, caído na armadilha pós-moderna da autonomia individual, da bandeira da liberdade de expressão e da pretensa inclusão. Esta é uma época de contradições e se hoje o estilo de vida é mais recetivo à diversidade, a experiência do corpo é mais narcísica, superficial e descartável. Os aspetos definidores da atualidade – narcisismo, efemeridade, transitoriedade, velocidade, entre outros – acabam por se manifestar «nas dimensões e composição do que se poderia chamar de um corpo contemporâneo» (Maroun & Vieira, 2009:185). Talvez possa ser dito que a pós-modernidade tende para um relativismo radical, uma forma de aceitação do outro desafetada do outro. Sem a consideração do sujeito e do outro como parte indispensável da constituição do próprio, os estilos aparentemente libertadores traduzem-se numa

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ideologia individualista, numa inclusão fragmentada em vez de unificada e num isolacionismo que faz de cada pessoa um corpo-ilha, deserto de sentido e de solidariedade.

Esta reflexão parece clamar por uma ressignificação do corpo, que recupere a sua substantivação ética e relacional e que reinvente a solidariedade a partir do corpo-sujeito (Barbosa et al., 2011; Fontana, 2009).

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