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2. Diálogos possíveis

2.5 A Fotonovela

Desde 2002, desenvolvo o projeto Fotonovela Digital. Conforme fora relatado anteriormente, o projeto nasceu nas aulas de Língua Portuguesa destinadas às atividades de produção de texto, com o propósito inicial de contextualizar as produções. Desde o primeiro ano, o projeto superou as minhas expectativas, pois, além de ter sido recebido e desenvolvido pelos alunos com muita alegria, surpreendi-me positivamente ao constatar a produção de textos narrativos autorais, com a ampliação dos limites dos textos produzidos tradicionalmente nas salas de aula, utilizando várias linguagens.

Desde o começo, o projeto foi sofrendo alterações, algumas delas resultados de reflexões minhas sobre a sua execução e, muitas outras sugeridas pelos alunos que o desenvolveram. Apesar de, ao final da sua execução, os alunos dominarem o gênero, a intenção do projeto não é apresentar esse gênero narrativo misto ou teorizar sobre ele. O domínio do gênero configurou-se como meio para o desenvolvimento das habilidades de leitura crítica e a produção textual visando à construção da autoria.

Vale lembrar que, segundo Bakhtin, os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, produzidos dentro de uma esfera social. Três elementos o caracterizam: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Segundo esse autor, quando optamos em produzir um texto, a escolha do gênero se deve a: intencionalidade discursiva do locutor, necessidades temáticas e o conjunto de participantes. Esses parâmetros orientam a ação discursiva.

Enquanto gênero, a fotonovela é uma narrativa mista, composta por fotos (texto não verbal) e legendas (texto verbal de extensão reduzida). Foi um fenômeno de venda em nosso país na década de 1970. A intencionalidade discursiva desse gênero, segundo HAUBERT, é a fruição do público leitor. É considerada como um fenômeno de cultura de massa.

“Cultura de massa expressa um momento histórico, característico das sociedades industriais capitalistas e que se manifesta em todos os traços espirituais ou materiais do homem. No imaginário, caracteriza-se pela utilização das formas mecânicas de reprodução e pela padronização.” (p.18)

33 A fotonovela não é uma produção de origem popular, mas sim a popularização de mensagens manipuladas pelos que estão associados ao poder.

A origem da fotonovela está, segundo HABERT, na invenção da imprensa ou nas primeiras utilizações da imagem para comunicação. O seu tema é próximo ao dos folhetins do século XIX.

Os jornais, com a intenção de fidelizar seus leitores, publicavam, ao rodapé, em capítulos diários, narrativas de sucesso, envolvendo os leitores através de histórias que alimentavam o sonho romântico. E dos folhetins, a fotonovela herda os temas romanescos e a conquista da atenção para a leitura dos capítulos seguintes. O desenvolvimento da fotografia e seu aperfeiçoamento técnico foram necessários para o seu surgimento. Mas a fotonovela só passa a existir, de fato, quando é produzida e distribuída em larga escala.

Por conta das diversas execuções do projeto Fotonovela Digital, avalio que, aos moldes das fotonovelas originais, as que mais fizeram sucesso na comunidade escolar foram aquelas construídas por narrativas românticas, a exemplo das execuções nomeadas “Retratos da Memória”, em que as histórias eram todas reais e versavam sobre “amores impossíveis” que se realizaram de forma imprevisível, e “Bahia Amado”, cujas fotonovelas recontavam a história de amor de Pedro Bala e Dora, protagonistas de Capitães de Areia, de Jorge Amado.

Segundo BALDASSO (2016), os primeiros exemplares surgiram na década de 1940, na Itália, chamadas de fotoromanzi. Ainda segundo esse autor, o sucesso da fotonovela foi promovido pela popularização do cinema, que crescia, mas era de difícil acesso ao público em geral. Artistas de cinema participaram das primeiras edições.

No Brasil, o auge das publicações foi na década de 1970, mas elas foram produzidas até 1990.

Segundo HABERT, o conteúdo romanesco e sentimental predominou nas publicações de fotonovela. As soluções para os conflitos apresentados costumavam ser “mágicas”, que surgiam da necessidade de manipulação e de solução do real por parte dos leitores. O material das histórias era de inspiração estrangeira, fornecendo aos leitores novas maneiras urbanas. Uma mistura do fantástico ao cotidiano. Elas revelavam uma visão de mundo fabricada para o consumo. O texto “Cada um do seu jeito”, fotonovela produzida ao final do projeto analisado na presente dissertação, é um exemplo dessa mistura do fantástico ao cotidiano, pois a personagem principal, Mary Red, não deixa de ser a mescla entre uma adolescente real (do cotidiano dos

34 alunos) e uma personagem fantástica retirada de um clássico infantil (Chapeuzinho Vermelho).

HABERT (op. cit.) analisou muitas publicações e observou que vários cursos por correspondência eram anunciados nas revistas: Corte e Costura, Eletrônica, Detetive Particular, Artista de Cinema, entre outros. Também havia testes de perfil psicológico que eram apresentados ao longo das revistas. Encontravam-se propagandas de aparelhos cujas promessas eram de mudar o corpo da leitora, oferecendo emagrecimentos, modelagem, promessas para eliminar pontos fracos no comportamento. A revista Sétimo Céu, em fevereiro de 1959, por exemplo, promoveu um concurso a fim de que os leitores concorressem a participar de uma fotonovela da editora. Segundo HAUBERT, esses dados, aliados à natureza dos enredos, deixam claro que o público das fotonovelas era ingênuo e carente de maiores realizações na vida real. O público era de baixa renda, baixa escolaridade, e, principalmente, feminino.

A montagem das fotonovelas era feita pela justaposição da foto e do texto. A relação entre os dois era redundante. O texto apresentava-se como legenda, diálogo ou resumo. Ao longo do tempo, o texto da fotonovela restringiu-se aos diálogos, o que possibilitou uma recepção mais subjetiva por parte do leitor, ampliando as possibilidades de leitura. Os diálogos não deixavam transparecer qualquer variante linguística, constituíam quase um dialeto próprio de fotonovela, em que crianças e adultos, grupos de procedências diversas ou pessoas de gêneros ou classes sociais diferentes falavam da mesma forma.

O uso das fotografias nem sempre explorava ângulos, dimensões, iluminação. Embora as fotos fossem realizadas por profissionais da área, os diagramadores, por vezes, recortavam as fotos a depender da construção da narrativa.

Segundo Schneuwly, os gêneros textuais, por mais que sejam flexíveis, têm uma certa estabilidade, uma estrutura definida por sua função. Dolz e Schneuwly chamam essa estabilidade de “plano comunicacional”. Ainda segundo esses autores, os gêneros são caracterizados também por um estilo, que não diz respeito à gramática e ao léxico, mas à estilística do discurso.

Analisando as considerações de Bakhtin sobre gênero, Schneuwly conclui que ele é um “instrumento”, utilizado por um sujeito (enunciador), que deseja agir discursivamente (produção de texto oral ou escrito), de acordo com um contexto.

Os esquemas de utilização dos gêneros podem conceber diferentes níveis de operações: tratamento do conteúdo, tratamento comunicativo, tratamento linguístico. Os gêneros contribuem para a sobrevivência de uma sociedade. Segundo Bakthin:

35 “Se não existissem os gêneros do discurso e se não os

dominássemos; se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala; se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível”. (apud in Schneuwly, 2004, p.24.)

A organização do currículo a partir da noção do gênero parece respaldar-se nas proposições de Bakhtin de que o desenvolvimento do domínio da linguagem se dá por “continuidade e ruptura”. Segundo Bakthin, o domínio da linguagem constitui um processo de desenvolvimento e reestruturação do sistema de produção, e na organização do conteúdo escolar, os estágios de produção são definidos, progressivamente, ao decorrer dos anos escolares, a partir dos conceitos de gêneros primários e gêneros secundários.

Ainda segundo esse autor, os gêneros primários “se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea” e os gêneros secundários “aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica” (idem, p. 281).

Enquanto os gêneros primários instrumentalizam a criança a participar de práticas de linguagem próprias às suas necessidades, as demandas das novas situações exigem instrumentos mais complexos, os gêneros secundários. E, de acordo com as particularidades de funcionamento dos gêneros secundários, organizam-se, progressivamente, os conteúdos escolares. Schneuwly relê Bakhtin e Vygotsky, neste retoma especialmente a ideia de “zona proximal de desenvolvimento” e defende que, quando o aluno é exposto a um gênero mais complexo, o desenvolvimento das habilidades não se dá exatamente na produção do gênero secundário, mas no movimento de retomada e ruptura e desenvolvimento que se dá, entre os gêneros que se conhece e os que se precisa conhecer, o desenvolvimento da linguagem.

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