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Fotonovela Digital – um projeto de Letramento –

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Academic year: 2021

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Universidade Federal da Bahia

Curso PROFLETRAS

Mestrado Profissional em Letras

Anna Frascolla

Fotonovela Digital

– um projeto de Letramento –

Salvador – BA 2016

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Anna Frascolla

Fotonovela Digital

– um projeto de Letramento –

Dissertação apresentada à banca de defesa do Mestrado Profissional em Letras como um dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientação: Profa. Dra. Simone Bueno Borges da Silva

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A

Anna Carolina Bruna

e Paulo

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FRASCOLLA, Anna. Fotonovela Digital – um projeto de Letramento. 111 p., 2016. Dissertação (Mestrado Profissional) ― PROFLETRAS ― Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

RESUMO

O presente trabalho é uma dissertação, sob o formato de memorial, no qual a docente analisa de forma crítica e reflexiva a sua formação intelectual e profissional e discorre sobre a origem e a aplicação do projeto de intervenção “Fotonovela Digital – um projeto de Letramento”, desenvolvido no âmbito do Mestrado Profissional em Letras, sob a orientação da Professora Doutora Simone Bueno Borges da Silva. O referido projeto consiste na produção de uma fotonovela digital (vídeo) que retrata, através de fotos, legendas e músicas, a narrativa produzida pelos alunos do 8º ano, turma C, da Escola Municipal Luíza Mahim, localizada no bairro da Boca do Rio. Nesse sentido, os alunos realizaram um conjunto de atividades envolvendo a leitura e produção de textos narrativos, na perspectiva do letramento. A aplicação do projeto foi utilizada como objeto de pesquisa, instrumento pedagógico e material para análise dos alunos e do fazer docente. Assim, objetivou-se tornar possível a formação da docente e dos seus alunos, por meio do desenvolvimento das atividades, que compõem o projeto, e das reflexões feitas a partir do diálogo estabelecido entre a sua execução e os textos teóricos estudados ao longo do curso. A aplicação do projeto propiciou a valorização da produção escrita dos alunos, a ampliação da habilidade em trabalhar em grupo, a ampliação de repertório cultural dos estudantes, além da elevação da autoestima dos alunos da escola pública, contribuindo para o seu empoderamento. O trabalho realizado possibilitou também a aprendizagem significativa dos alunos por meio da leitura, da escrita e da ressignificação de textos conhecidos pelos alunos, de modo a ampliar as experiências de leitura dos alunos e uma melhor compreensão da docente em relação a práticas de escrita e leitura que ocorrem no espaço escolar. O percurso metodológico escolhido foi a pesquisa qualitativa de cunho etnográfico. O aporte teórico e metodológico adotado foi Bortoni-Ricardo (2015), Freire (1987 e 1989), Kleiman (2005 e 2007), Schneuwly (2004), Solé (1998), Souza (2011 e 2012), Street (2010), Tfouni (2010), dentre outros.

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FRASCOLLA, Anna. Digital Fotonovela - a Literacy project. 111 p., 2016. Dissertation (Professional Master's Degree) - PROFLETRAS - Institute of Letters, Federal University of Bahia, Salvador, 2016.

SUMMARY

The present work is a dissertation, in the form of a memorial, in which the teacher analyzes in a critical and reflexive way his intellectual and professional formation and discusses the origin and the application of the intervention project "Fotonovela Digital - a Literacy project", developed in the context of the Professional Master's Degree in Literature, under the guidance of Professor Simone Bueno Borges da Silva. The project consists of the production of a digital phototape (video) that portrays, through photos, subtitles and songs, the narrative produced by the students of the 8th grade, group C, of the Luíza Mahim Municipal School, located in Boca do Rio neighborhood. In this sense, the students performed a set of activities involving the reading and production of narrative texts, in the perspective of literacy. The application of the project was used as an object of research, pedagogical instrument and material for student analysis and teacher making. Thus, the objective was to make possible the formation of the teacher and his students, through the development of the activities that make up the project, and of the reflections made from the dialogue established between its execution and the theoretical texts studied throughout the course. The application of the project led to the valorization of the students’ written production, the increase in the ability to work in groups, the expansion of students' cultural repertoire, and the elevation of the self-esteem of public school students, contributing to their empowerment. The work carried out also enabled the students to learn meaningfully through reading, writing and re-signifying texts known by the students, in order to broaden the students' reading experiences and a better understanding of the teacher regarding writing and reading practices that occur in the school space. The methodology chosen was the qualitative research of an ethnographic nature. The theoretical and methodological input was Bortoni-Ricardo (2015), Freire (1987 and 1989), Kleiman (2005 and 2007), Schneuwly (2004), Solé (1998), Souza (2011 and 2012), Street (2010), Tfouni (2010), among others.

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Lista de Figuras

Figura 1 – Grupos elaborando propostas de adaptação. ... 52

Figura 2 – Alunos lendo Bisa Bia, Bisa Bel. ... 54

Figura 3 – Redação de Jacqueline. ... 56

Figura 4 – Grupo de redatores trabalhando. ... 59

Figura 5 – Grupo no Whatsapp, criado para facilitar a comunição da turma. ... 59

Figura 6 – Alunos escolhendo os cenários e planejando figurinos. ... 72

Figura 7 – Planejamento de maquiagem, com detalhe para a tatuagem da personagem Lobão. ... 72

Figura 8 – Croquis das cenas. ... 73

Figura 9 – Palestra com o fotógrafo. ... 73

Figura 10 – Em frente à escola, alunos prontos para a saída. ... 74

Figura 11 – Alunos no supermercado, comprando o material para as fotos. ... 75

Figura 12 – Execução das cenas em duas salas diferentes. Jacqueline fotografando. Participação de alunos do 9o ano. ... 76

Figura 13 – Início da produção do vídeo. ... 77

Figura 14 – Um dos momentos de produção do vídeo. ... 78

Figura 15 – Imagens da fotonovela produzida pelo grupo. ... 80

Figura 16 – Cartaz de divulgação do evento. ... 88

Figura 17 – Propostas discutidas em sala, construídas pelo grupo. ... 95

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Sumário

1. Para começo de conversa ... 10

1.1 Devir ... 13

1. 2 Nas dobras do tempo ... 15

1.3 Ponto de partida ... 19

2. Diálogos possíveis... 23

2.1 Ler e escrever – fazendo parte do mundo narrativo ... 24

2.2 A leitura de clássicos ... 25

2.3 Letramento e Pedagogia de Projetos ... 26

2.4 A dimensão política do trabalho docente ... 29

2.5 A Fotonovela ... 32

3. A escola que temos e a escola que queremos ... 36

3.1 A Escola Municipal Luíza Mahim ... 37

3.2 Jardim Armação / Boca do Rio ... 38

3.3 Luíza Mahim – a guerreira ... 39

3.4 Luíza Mahim em 2015 ... 40

3.5 8º ano, turma C ... 42

4. A execução do projeto em 2015 ... 48

4.1 Ponto de partida ... 50

4.2 Primeira produção de texto ... 56

4.3 “Chapeuzinho Vermelho” em diálogo ... 58

4.3.1 “A moça tecelã” em cena: modelo de estrutura narrativa ... 61

4.4 Produzindo o roteiro: escrever, analisar, refletir e reescrever ... 63

4.5 Planejando as fotos ... 72

4.6 Execução das fotografias ... 74

4.7 Produção do vídeo ... 77

4.8 Cada um do seu jeito ... 79

4.9 Outras práticas de letramento abrangidas pelo projeto ... 86

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4.9.2 O cartaz ... 88 4.9.3 A dança ... 89 5. A culminância do projeto ... 90 5.1 Planejando a apresentação ... 90 5.2 A apresentação ... 91 6. Avaliação do projeto ... 93 7. Ponto de chegada ... 98 Referências bibliográficas ... 100 APÊNDICES ... 104

APÊNDICE A: TEXTO DA AULA INAUGURAL ... 105

APÊNDICE B: Apostila explicando o Projeto, com detalhamento de funções ... 107

APÊNDICE C: Material com o texto “A moça tecelã”, de Marina Colasanti; estrutura do texto narrativo e gêneros textuais: ... 109

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1. Para começo de conversa

O presente trabalho, de cunho autobiográfico e reflexivo, pretende apresentar as análises e mudanças que o desenvolvimento do projeto de letramento Fotonovela Digital, por mim desenvolvido, junto à turma de 8º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Luíza Mahim, provocou em mim e em meus alunos. Este memorial pretende revelar a aprendizagem de uma professora que escreve sobre si mesma, sobre seus alunos, sobre a escola, sobre a comunidade, sobre seu tempo e seu espaço – a “palavramundo” (FREIRE, 1998, p.9).

Muito se tem discutido, em especial nas últimas décadas, sobre as práticas escolares. As participações do Brasil no Programme for International

Students Assessment (Pisa) apresentam um diagnóstico desconcertante: em

nosso país apenas 8,1%1 dos alunos saem da escola com uma formação adequada em leitura.

No contexto das discussões sobre “aprendizagem para a cidadania”, o debate sobre finalidades e conteúdos do estudo da língua materna ganha um papel de destaque; os professores universitários produzem muitos trabalhos nos quais defendem a competência nos usos da linguagem como a maior responsável pela inserção dos alunos nas práticas sociais. Nesse contexto, a leitura é entendida como “fundamental para o desenvolvimento de outras áreas do conhecimento e para o consequente exercício da cidadania” (PDE, 2011).

“Pode-se dizer que, apesar de ainda imperar no tecido social uma atitude corretiva e preconceituosa em relação às formas não canônicas de expressão linguística, as proposta de transformação do ensino de Língua Portuguesa consolidaram-se em práticas de ensino em que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada é o uso da linguagem.” (MEC, 1998, p.18)

Resolver o problema diagnosticado em vários indicadores de qualidade da educação, entre os quais o Pisa demanda uma séria atitude política, qual seja: tratar a educação como prioridade. Priorizar a educação é priorizar, ao mesmo tempo, o estudante e o professor.

Ao estudante deve-se reservar o papel que lhe cabe: protagonista. Tudo o que se planeja e o que se faz acontecer no espaço escolar deve almejar o objetivo principal da educação: empoderar o estudante para que ele assuma, não só o seu processo educativo, mas principalmente a sua história de vida.

1

Dados referentes à primeira participação do Brasil do PISA (2000), recolhidos no portal do MEC (<portal.mec.gov.br>). Segundo o resultado do Prova Brasil/ Saeb, em 2007, o número de alunos em “nível adequado” subiu para 9,8%.

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11 Assim, empoderar não significa apenas transmitir informações. Empoderar passa por preparar o aluno a ser um cidadão consciente, capaz de escrever a própria história.

A nós, professores, cabe uma constante qualificação. Precisamos ressignificar o nosso lugar. A educação de qualidade passa por um professor de qualidade, bem formado, politicamente consciente de seu papel transformador. Não podemos nos permitir ficar alienados, limitando o nosso fazer pedagógico a reproduzir e perpetuar o sistema imposto.

Quando colocarmos o aluno como protagonista de todo o processo de construção de conhecimento, inserido nas práticas sociais, novas dinâmicas de sala de aula serão criadas a fim de realizar com sucesso o nosso trabalho. E são as reflexões provenientes da aplicação de um projeto de letramento que o presente trabalho pretende apresentar.

Segundo Kleiman (2007), é na escola, agência de letramento por excelência de nossa sociedade, que devem ser criados espaços para experimentar formas de participação nas práticas sociais letradas e, portanto, o letramento, ou melhor, os múltiplos letramentos da vida social, devem ser o objetivo estruturante do trabalho escolar em todos os ciclos. Para a autora, em toda situação comunicativa que envolve o uso da língua escrita surge a oportunidade para o professor focalizar de forma sistemática algum conteúdo, de apresentar materiais para o aluno chegar a perceber uma regularidade, praticar repetidas vezes um procedimento, buscar uma explicação. Nesse caso, o movimento será da prática social para o ‘conteúdo’ (procedimento, comportamento, conceito) a ser mobilizado para poder participar da situação, nunca o contrário, se o letramento do aluno for o objetivo estruturante do ensino.

Ainda segundo Kleiman, quando o conteúdo não constitui o elemento estruturante do currículo, a pergunta que orienta o planejamento das atividades didáticas deixa de ser “qual é a sequência mais adequada de apresentação dos conteúdos linguísticos, textuais ou enunciativos?” porque o professor, com conhecimento pleno dos conteúdos do ciclo e ciente de sua importância no processo escolar, passa então a fazer uma pergunta de ordem sócio-histórica e cultural: “quais os textos significativos para o aluno e sua comunidade?”.

Foi procurando trocar a pergunta norteadora do meu trabalho como professora, focando menos o conteúdo (embora ele fosse contemplado) e mais a prática que o presente trabalho apresenta o estudo e as reflexões provocados pelo desenvolvimento do projeto de letramento Fotonovela Digital, uma série de atividades de produção de leitura e produção de texto em grupo, no ano de 2015. As descrições detalhadas dos processos e a análise dos resultados pretendem avaliar as estratégias desenvolvidas, verificando a

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12 contribuição das mesmas para a prática de letramento na disciplina Língua Portuguesa.

As análises a serem apresentadas pretendem responder às seguintes perguntas: em que medida o projeto Fotonovela Digital contribui para a construção de habilidades relacionadas à pratica de produção de leitura e produção de texto? O que meus alunos aprendem com a realização do projeto? Ao refletir sobre o desenvolvimento do projeto, faço, também, uma reflexão sobre a minha constituição enquanto professora da turma e das relações entre a língua e ser/estar no mundo tecidas pelos alunos.

Atenta às orientações presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), organizei o projeto de letramento Fotonovela Digital pensando, principalmente, nos seguintes pontos:

 Nas atividades de produção de leitura – compreensão ativa do texto (em contraposição à decodificação e ao silêncio);

 Nas atividades de produção de texto (oral e escrito) – uma interlocução efetiva (em contraposição à ideia de produção de textos para serem objetos de correção);

 Nas atividades de análise linguística – reflexões sobre a linguagem com vistas a compreendê-la e utilizá-la adequadamente às situações e aos propósitos definidos.

Pretendo, ao longo do trabalho, apresentar as minhas reflexões sobre todo o processo, consoante às ideias de Street (2010): ao investigar o meu trabalho docente, assumindo uma postura de etnógrafo, objetivo alcançar a escuta sensível necessária para priorizar o que é mais importante, ou seja, elaborar atividades que sejam significativas na formação de um aluno autônomo, capaz de participar ativamente de práticas de letramento de diferentes instituições sociais.

Em síntese, este estudo se propôs a desenvolver, ao longo de 2015, o projeto Fotonovela Digital junto à minha turma de 8º ano da Escola Municipal Luíza Mahim, a fim de verificar em que medida ele contribui para a criação de uma sala de aula favorável à construção da consciência crítica do aluno a partir do diálogo com o professor e do aprimoramento da aprendizagem da língua.

O presente memorial foi organizado em 7 capítulos. O primeiro capítulo, “Para começo de conversa”, pretende ser uma introdução, na qual eu apresento a mim mesma, enquanto professora-pesquisadora que reflete sobre sua prática. O segundo capítulo, intitulado “Diálogos possíveis”, é composto por diálogos que estabeleci com minha prática docente a partir de alguns textos teóricos. O terceiro capítulo, “A escola que temos e a escola que queremos”, pretende apresentar o contexto no qual se desenvolveu o projeto Fotonovela

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13 de 2015, e o seu detalhamento acontece no capítulos 4, “A execução do projeto em 2015” e 5, “A culminância do projeto”. O capítulo 6, à guisa de avaliação, apresenta algumas reflexões sobre os resultados do projeto. O capítulo 7, “Ponto de chegada”, apresenta, através de um texto que dialoga diretamente com a obra “O conto da ilha desconhecida”, de José Saramago, algumas metáforas sobre o trabalho do professor que adota a construção de projetos de letramento como opção metodológica. Além dos capítulos há, neste trabalho, uma sequência de anexos que podem subsidiar a compreensão do trabalho e as referências bibliográficas.

1.1 Devir

“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é” Fernando Pessoa Segundo Deleuze (1997), “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida”. E é nesse devir que situo as reflexões aqui apresentadas. Tantas vezes eu tente registrar as leituras que faço dos acontecimentos, tantas significações novas apresentar-se-ão, indefinidamente. Isso porque a transformação que se pretende traduz-se em uma transformação constante.

Nessa transformação constante, afirmo que sou o resultado do que vivi. O presente está entre o que fui e o que serei. O passado encontra-se ali, escrito, vivido, presente nas minhas lembranças, nos meus textos, na pele, nas cicatrizes, nos frutos e nas ações do agora. Meu passado me define. Queremos entender o que fazemos agora, quem somos? Basta rever o passado; lá estão as origens da nossa identidade. No entanto, por mais que seja passado, não é estático. Posso revisitar, hoje, a mim mesma como quem relê um livro. Relê a própria história e, ao mesmo tempo, lê uma história nova, atribuindo novos sentidos.

Olho a mim mesma e vejo-me diferente. Eu mudei. Colocar-me na condição de pesquisadora de minha prática obrigou-me a rever os meus pressupostos, as tramas da minha tessitura. O que era porque a prática era assim, passou a ser pergunta.

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14 E revisitar-me aos quase 50 anos, muitos deles vividos em salas de aula, metade desse tempo sendo professora, é tarefa pesada e sensível, rotineira e inédita, feliz e dolorosa. Nessa tarefa cheia de antíteses, o resultado apresenta-se, talvez, sob uma forma, à primeira vista, incoerente. Espera-se, ao final de uma caminhada longa e bem avaliada, que eu lance a minha voz a fim de proferir certezas, protocolos de sucesso. Mas, ao contrário, as certezas diminuíram. Entro em sala, depois do mestrado profissional, munida de poucas convicções; e uma disposição revigorada para o combate. Combate pela dignidade de meus educandos, alimentada por um princípio de justiça, de igualdade, de reconhecimento de que não somos donos dessas histórias que se escrevem sob nossos olhos, mas pelas quais somos responsáveis. Responsáveis enquanto adultos que não podem permitir construção sem respeito.

E é essa a aparente incoerência trazida pela maturidade. Não posso me permitir ficar no lugar de quem segue orientações estabelecidas pelos burocratas da educação. Não posso me submeter a práticas que promovam a discriminação sob qualquer rótulo, em especial a linguística. Não posso deixar de me posicionar criticamente, prática concreta de libertação, negando a possibilidade de neutralidade. Não posso ter a percepção de mundo modificada pela leitura de Paulo Freire e servir ao sistema que aliena. “A neutralidade da educação, de que resulta ser ela entendida como um quefazer puro, a serviço da formação de um tipo ideal de ser humano, desencarnado do real, virtuoso e bom, é uma das conotações fundamentais da visão ingênua da educação.” (FREIRE, 1989, p.18)

Nós, professores, não podemos permanecer nesse lugar de manutenção de práticas pedagógicas dissociadas da leitura crítica do mundo. Reduzir as aulas de vernáculo na apreciação das construções sintáticas ou estilísticas dos discursos é aliar-se ao sistema opressor. Como diz Yunes (2014):

“Podemos ler o mundo por nossos próprios olhos, o que é um aprendizado e tem seu preço de originalidade, de diferença, mas podemos aceitar passivamente a leitura já feita por outros e nos comportarmos como um rebanho que se move submisso, como se vê na manipulação das massas, tocada pelas ideologias e pelas mídias”. (p.55)

A educação é a base das mudanças sociais. Ao parar para refletir sobre a prática do professor de Língua Portuguesa, nós, alunas e alunos do ProfLetras, nos propusemos a fazer pequenas revoluções nas nossas salas de aula em escolas públicas. Alunos esquecidos pelo estado, pelo município, filhos dos trabalhadores de baixa renda do Brasil, alunos que, se não se alterarem as práticas de sala de aula, dificilmente promoverão as mudanças necessárias para viverem livremente.

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15 É por esta razão que o presente memorial, ao estudar uma prática de ensino-aprendizagem em língua portuguesa, pretende relatar, também, o meu percurso no ProfLetras. Da revisitação de meu passado discente e docente, com vistas a entender o que faço, como faço, por que e para quem faço. Ao longo do trabalho, apresentarei as minhas reflexões sobre o processo, reflexos do desenvolvimento do projeto Fotonovela Digital: um projeto de letramento, consoante às ideias de Kleiman (2007) e Street (2010): ao investigar o meu trabalho docente, assumindo uma postura de etnógrafo, objetivo alcançar a escuta sensível necessária para priorizar o que é mais importante, ou seja, elaborar atividades que sejam significativas na formação de um aluno autônomo, capaz de participar ativamente de práticas de letramento de diferentes instituições.

Refletir sobre a minha prática, olhar para mim mesma, perceber minhas histórias permitir-me-á transformar, de forma consciente, a minha prática pedagógica. Para além dos textos teóricos, estudados ao longo do mestrado, a análise de mim mesma faz-se necessária para que, conscientemente, eu busque, sempre, fazer o melhor possível na condição de professora.

1. 2 Nas dobras do tempo

“isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além” Paulo Leminski

Voltar à minha história é uma forma de ressignificá-la. Segundo Foucambert (1994), “ser leitor é querer saber o que se passa na cabeça de outro, para compreender melhor o que se passa na nossa” (p.30). A seguir narro as leituras que faço, do lugar de quem hoje sou, de uma outra que já fui, lembrando meu percurso no sentido de entender que professora sou agora.

A história de todo professor começa enquanto aluno. Professor é o aluno que resolveu permanecer na escola. Professoras e professores que tivemos ao longo da vida se fazem presentes nessa identidade, que é construída com retalhos de outras, entrelaçadas.

Meu relato deve começar pela explicação de meu nome: Anna Frascolla. Sou de família italiana e, por isso meu nome é tão curto. Quando comecei a frequentar a escola, estranhei que todos os colegas eram chamados pelo primeiro nome. Eu, por ter um nome relativamente comum, para não ser confundida com as outras Ana, todas com nome composto, era chamada pelo nome completo. Ou seja, da mesma forma como me chamavam em casa aos

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16 momentos de repreensão. Talvez, por isso, eu não gostasse de ir à escola. Lembro-me de me esconder no horário de o transporte escolar chegar à nossa casa para nos buscar. Muitas vezes minha mãe desistia de me procurar e, constrangida, mandava o motorista seguir o seu caminho, levando meus outros irmãos. Muitos dias conseguia ficar em casa, escondida. Considerava a escola um lugar sem propósito. Lições repetitivas cansavam-me e tiravam-me o ânimo. Julgava-a perda de tempo.

Um dia, procurando-me pela casa, minha mãe me encontrou chorando, afirmando “Até meu nome implica comigo!”. Curiosa, ela quis saber como isso acontecia. Expliquei-lhe, coberta de lógica: Anna Pra’scola. Ela riu. Os esconderijos foram descobertos e fui obrigada a frequentar a escola.

Aos poucos, fui me acostumando a ela, permitindo-me vivenciar momentos felizes. Não tinha dificuldade em acompanhar os estudos. Lembro-me de uma professora, chamada Mara, que Lembro-me “adotou”. Mulher sem filhos, comprou um pôster meu (daqueles em que, ao final do ano, posávamos para um fotógrafo profissional, com uniforme completo, atrás de uma mesa, com um globo terrestre e outros materiais) e foi problema. Minha mãe ficou toda enciumada, e eu, feliz. Muitos momentos felizes, na escola, compõem a minha memória de criança e adolescente.

Meus pais se separaram quando eu tinha 10 anos. O processo foi complicado e doloroso. Minha mãe entrou em depressão e meus 3 irmãos e eu fomos morar com meu pai e a sua nova esposa. Mudamos de estado, de escola, várias vezes. Ao todo, entre Ensino Fundamental e Médio, frequentei 10 escolas diferentes.

Prestei vestibular para Letras em 1984, ingressando na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, em 1985. A princípio, fui aluna do curso de Bacharelado em Secretariado Executivo. A meta – à época – era seguir as orientações de meu pai, preparar-me para a “maior função que uma mulher poderia exercer em uma empresa” (palavras dele) “ser o braço-direito de um grande executivo”.

Lembro-me de minha primeira aula, na PUC, o primeiro estranhamento. O professor distribuíra um texto de autoria dele, publicado no jornal, cujo título era “Me beija, eu sou brasileiro”. O texto discutia a regra da gramática normativa que condena construções frasais iniciadas por pronomes oblíquos. Antes da leitura, houve uma conversa, provocada pelo título. E a provocação continuava com a pergunta: será que não é melhor criarmos a Língua Brasileira, rompendo com Portugal, e escrevermos nossas próprias regras? Parecia que a discussão até então nos conduzia a uma única resposta: “Claro que sim!” Mas o professor nos surpreendeu: “Claro que não!” E a aula e disciplina continuaram essa discussão, caminhando por conceitos de língua,

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17 variantes dialetais, respeito às diferenças, importância política da língua por conta da quantidade de países que a utilizam como língua nacional.

Na PUC, a disciplina Linguística tinha um lugar de destaque. Encantei-me com as discussões de caráter político relacionadas à noção de Língua. Os dialetos não eram considerados “menores”. Professores estruturalistas pregavam que “nenhuma forma de língua é errada”. A todo vapor, participávamos das discussões do Projeto Norma Urbana Culta (NURC) que, com o propósito de documentar e estudar a norma falada culta, mostrava que a língua prescrita nas gramáticas era bastante diversa da língua, de fato, falada.

Na década de 1980, estudávamos, na PUC, nas aulas de Linguística, a as teorias da Linguística Aplicada e as teorias Cognitivas que deveriam subsidiar as práticas escolares. Embora eu fosse aluna do curso de Bacharelado, as aulas eram destinadas, basicamente, às alunas da Licenciatura, e éramos formadas no sentido de não reproduzir as práticas que focavam no domínio gramatical. Os professores lamentavam, à época, a distância entre as pesquisas desenvolvidas nas universidades e a tradição escolar. Embora cheia de avanços, ainda aprendíamos sobre a oralidade e escrita como processos distintos.

Casamento, gravidez e mudança de estado fizeram-me sair do Rio de Janeiro e vir para Salvador. No processo de transferência, como não havia o curso de Secretariado Executivo na Universidade Federal da Bahia (UFBA), fui matriculada no curso de Licenciatura em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna – Inglês.

Em 1989, eu estava próxima à conclusão do curso. Em Salvador, matriculada no curso de licenciatura, descobri que precisaria cursar quase metade das disciplinas ainda. Por conta disso, julgo que tive uma formação privilegiada, com excelentes professores na PUC, mestres em linguística; e tão excelentes professores quanto, na UFBA, mestres em filologia. Tive, inclusive, a oportunidade de participar da fase inicial da pesquisa Programa para a História da Língua Portuguesa no Brasil (PROHPOR), coordenado pela professora Rosa Virgínia Mattos da Silva.

Tão logo me formei, comecei a dar aulas. Retomando 1993, é verdadeiro dizer que cheguei à sala de aula bastante motivada pelas questões discutidas nas disciplinas de cunho linguístico. Mas o cenário não me foi favorável. Copiando as palavras de Ilari (s.d.), constatei que

“as novas ideias encontraram uma forte resistência entre os professores de português, porque o ensino da gramática, entendido como um aprendizado de nomenclaturas e um exercício de classificação, ocupava um espaço muito grande no ensino de língua materna”

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18 Chegar jovem e cheia de ideias a instituições antigas e tradicionais foi difícil. Os professores sentiam-se seguros com suas práticas consagradas. E as famílias respaldavam essa situação, incentivando a manutenção das práticas. Elas costumavam a usar expressões como “na minha época”, estabelecendo parâmetros de sucesso escolar e profissional atrelados ao ensino da gramática normativa.

Mas eu não consegui deixar de lado as ideias dos linguistas estudados na faculdade. A linguística é uma ciência retórica e descritiva. Não tem o objetivo de produzir orientações metodológicas destinadas ao ensino. No entanto, as inquietações que elas produzem no professor comprometido com a educação de qualidade produzem frutos. E o projeto “Fotonovela Digital” é um desses frutos.

Em 1997, quando eu contava com 4 anos de experiência em sala de aula, Naura Caldas, Aracy Fèr e eu, professoras de Língua Portuguesa do colégio Instituto Social da Bahia (ISBA) fomos convidadas a integrar uma equipe formada por professores de todas as matérias do currículo tradicional para produzir material didático para um sistema de ensino. A empresa, responsável por uma franquia, produzia e comercializava material didático sob o formato de módulos e recebera muitas críticas por conta do material didático não contemplar realidades do norte-nordeste e, por isso, produziria materiais específicos para esse público. Reunimo-nos, algumas vezes, no auditório do extinto colégio UCBA. A equipe de Língua Portuguesa dividia-se de acordo com o que hoje chamamos de Fundamental e Médio. Por conta de nós 3, professoras do Isba, termos uma prática construída em conjunto e, portanto, coesa, empolgamo-nos bastante com a ideia e começamos imediatamente a produzir o material. Eram 10 módulos para cada série, organizados por tema, que propunham trabalho sistematizado com produção de leitura, produção de texto (oral e escrito), e análise linguística. O projeto da empresa não foi adiante mas, satisfeitas com o nosso material, continuamos a produzir e, depois de termos escrito 3 módulos para cada série, a convite de um divulgador da editora Moderna, enviamos o material para a análise.

O material foi aprovado em tempo recorde, pois havia na editora Moderna uma lacuna deixada pela recusa de Magda Soares em continuar produzindo material didático. Deram-nos um prazo apertado, alguns meses para a confecção do restante, a fim de que a coleção, chamada “Lendo e Interferindo”, fosse lançada no mercado para ser comercializada a partir de 1999. E assim foi feito. O que permitiu a elaboração da coleção nesse prazo reduzido foi a quantidade significativa de material autoral que todas nós possuíamos. Hoje, além de não acreditar no “formato” dos livros didáticos, minha condição de analisar criticamente as propostas apresentadas nesse tipo de material faz-me fugir de convites como esse de produção de material didático para editoras de grande porte, que limitam bastante o trabalho do

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19 professor, uma vez que a prioridade do material é o interesse comercial e não o pedagógico.

A experiência com produção de material didático foi-me bastante importante, pois me fez refletir sobremaneira sobre os processos de ensino-aprendizagem. Em especial as avaliações do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), às quais nosso material foi submetido, cujas críticas apontavam pontos fracos na minha prática e provocavam reflexões e mudanças.

Em 2010, já com 17 anos de trabalho na escola particular, prestei concurso a fim de ingressar na rede municipal de Salvador. Fui convocada em junho de 2013, mas somente fui nomeada em outubro do mesmo ano, pois o meu processo de admissão, por conta de ser portadora de doença crônica, foi dificultado, conquistado apenas após a ameaça de denúncia por discriminação.

Atualmente, eu trabalho no turno matutino, no Colégio Cândido Portinari, situado no bairro Costa Azul, em Salvador, onde sou responsável por 7 turmas: 4 de 8º ano e 3 de 9º. Na rede pública, leciono na Escola Municipal Luíza Mahim, localizada no bairro Jardim Armação, no turno vespertino, com 2 turmas de 7º ano e 1 turma de 9º ano. No noturno, em razão da redução drástica de oferta de vagas para os alunos jovens e adultos, comecei o ano de 2016 como excedente mas, a partir de 30 de março, assumi 2 turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) IV, correspondente aos 6º e 7º anos.

1.3 Ponto de partida

“Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és.” José Saramago Depois de 20 anos de trabalho em escolas particulares, ingressar na educação pública foi um desafio diferente. Ingenuamente, eu acreditava que poderia ministrar as mesmas aulas na escola municipal. Minha intenção: propiciar ao aluno pobre, filho do trabalhador humilde, o acesso à educação de qualidade. Educação de qualidade que, em se tratando da disciplina Língua Portuguesa, eu explicava como proporcionar a construção de habilidades de leitura e de produção de texto, dominando questões relativas à estrutura da língua, e inserir o aluno no mundo da literatura.

Entrei em sala de aula com essa intenção e acreditava-me pronta para começar a transportar as mesmas aulas, os mesmos materiais, os mesmos projetos.

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20 Vi-me reproduzindo, nos planejamentos que a princípio elaborei, as falácias das políticas públicas, que são construídas para alunos que eles não sabem quem são. Eu também não sabia quem eram esses meus novos alunos. Tantos anos em sala de aula e eu não havia aprendido a enxergar meu aluno como elemento significativo no processo de construção do conhecimento. Todo o processo era construído “para” o meu aluno, mas “sem” o meu aluno.

“Quando entramos em sala de aula..., não encontramos apenas ‘os alunos e alunas do 1º E’ ou de alguma outra série. Encontramos sujeitos envolvidos em muitas práticas sociais, com conquistas, frustrações, anseios, pessoas que atuam motivadas por diversos interesses e que atribuem diferentes sentidos ao lazer, à cultura, ao conhecimento e ao trabalho. Lá estão jovens histórias de vida, biografias juvenis a serem desveladas”. (SOUZA: 2012, p.37)

Por mais que planejasse colaborar na construção da autonomia de pensamento, todo o processo partia de escolhas minhas. As escolhas que eu fazia, na verdade, apenas acreditava fazê-las. Elas eram, como continuam sendo na maioria das escolas, uma cruel inversão dos objetivos escolares: conteúdo programático privilegiado em detrimento da aprendizagem. O conteúdo programático parecia ser o responsável pela aprendizagem. A ordenação dos assuntos parecia ser suficiente. E os conteúdos não se articulavam com uma reflexão sobre o mundo real e sobre o lugar que meus alunos ocupavam ou queriam ocupar nesse mundo. Eu acreditava na mobilidade que o conhecimento sobre a língua poderia conferir aos alunos, mas não relacionava essa mobilidade com a visão crítica própria de quem entende a si mesmo e o mundo que o cerca.

E nessa constatação, sinto-me responsável por toda a discussão da falta de qualidade da educação brasileira. No contexto das discussões sobre “aprendizagem para a cidadania”, a discussão sobre finalidades e conteúdos do estudo da língua materna ganha um papel de destaque; a academia produz muitos trabalhos que defendem a linguagem como a maior responsável pela inserção dos alunos nas práticas sociais. A leitura é entendida como “fundamental para o desenvolvimento de outras áreas do conhecimento e para o consequente exercício da cidadania” (PDE, 2011).

“Pode-se dizer que, apesar de ainda imperar no tecido social uma atitude corretiva e preconceituosa em relação às formas não canônicas de expressão linguística, as propostas de transformação do ensino de Língua Portuguesa consolidaram-se em práticas de ensino em que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada é o uso da linguagem.” (MEC, 1998, p.18)

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21 As práticas do ensino de Língua Portuguesa que propõem a linguagem como “ponto de partida” e “ponto de chegada” pretendem não apenas o cumprimento de um currículo, mas a promoção de um aluno emancipado, que possa interagir de maneira crítica na sociedade em que está inserido. Alteram-se, substancialmente, concepções basilares como o entendimento sobre língua, texto, literatura, papel da escola e do professor. A educação que almeja caminhar de mãos dadas com o empoderamento do cidadão deve centrar-se no desenvolvimento das habilidades de interação verbal.

O projeto Fotonovela Digital nasceu de minha intuição de professora, é um dos frutos da minha inquietação docente. Eu sabia, pela prática, que o modelo de aulas determinado pelas escolas em que trabalhava apresentava problemas, pois os alunos sempre me perguntavam o porquê de estudar determinados assuntos, ou seja, eles não reconheciam a validade prática dos conteúdos. Confesso que, em muitas vezes, a justificativa que eu apresentava não convencia nem a mim mesma. Por isso, a pergunta dos alunos persistia e me movia. A aprendizagem só é real se construir conhecimento. O conhecimento altera a pessoa. Trabalhar um conteúdo e precisar revisá-lo no ano seguinte, constatando que nada ficou, indicava a necessidade de mudança. E o segredo da mudança, segundo as ideias de Kleiman, está na inserção da prática social como fundamento para as ações desenvolvidas. É nos exercícios da prática social que os conteúdos são construídos, e não o contrário.

O projeto Fotonovela Digital “nasceu” em 2002. À época, eu trabalhava no ISBA o livro Capitães da areia, de Jorge Amado, com turmas de 9º ano. Apesar de, naquele tempo, a escolha do livro não ser fruto de uma negociação com os alunos – era uma determinação do departamento – a sua leitura era apreciada pelos estudantes. Eles costumavam gostar do livro, pois a história narrada, por mais que se situasse na antiga Salvador da década de 1940, apresentava personagens principais cujas idades eram próximas às de meus alunos adolescentes. Ao mesmo tempo, eram personagens bem peculiares também, pois, diferente de meus alunos, as personagens do livro viviam em situação de abandono familiar, largados à própria sorte. E eram personagens que, ao contrário dos livros de literatura lidos até então, pareciam reais: não eram completamente bons, tampouco completamente maus. Pedro Bala, por exemplo, o líder dos Capitães da Areia, tinha atitudes nobres e altruístas e, ao mesmo tempo, era capaz de cometer crimes hediondos como o estupro.

A minha intenção, após a leitura do texto, em sala e como atividade para casa, era trabalhar a produção de texto. Queria que os alunos experimentassem escrever narrativas a partir das personagens do livro. A intenção, nesse momento, era que eles percebessem a importância do narrador na história. A mesma história, contada por Pedro Bala ou por Pirulito, seria, necessariamente, diferente.

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22 Enquanto, na minha casa, eu estruturava as propostas de produção de texto, recebi a visita de uma visinha, Alice Ramos, uma fotógrafa que, à época, fazia sucesso com a exposição “Redondamente enganado”, através da qual ela questionava o padrão estético da magreza, com fotos sensuais e de impecável padrão estético de pessoas consideradas obesas.

Ao mostrar as propostas de produção de texto a Alice, ela me perguntou “por que não sugerir que os alunos contem as histórias através de fotos?”. Desnecessária a famosa discussão sobre o que vale mais, uma foto ou mil palavras, pois poderíamos usar fotos e palavras. Alice e eu nos lembramos das antigas revistas de fotonovelas. Conversamos muito e ela me ajudou a planejar a primeira versão do projeto, fornecendo importantes informações sobre fotografia. Quando apresentei a proposta de trabalho às minhas turmas, elas reagiram com entusiasmo. Alice foi convidada a fazer uma palestra na escola, ensinando os fundamentos básicos da fotografia. A resposta dos alunos à palestra foi tão interessante que programamos a realização de oficinas de fotografia, no turno oposto.

O trabalho fora planejado para ser impresso, à maneira das antigas revistas de fotonovela. Basicamente teríamos uma história contada através de fotos, com o apoio de legendas e diálogos. Começamos escolhendo para cada turma uma personagem do referido romance de Jorge Amado que seria o narrador. Eram, então, 7 turmas de 9º ano, 7 recontos diferentes.

Desde esse ano, 2004, o projeto vem sendo aplicado nas escolas em que trabalho. Ele já recebeu vários nomes, a depender das demandas específicas de cada ano, turma ou instituição: Fotonovela, Retratos da Memória, Bahia Amado, Fotonovela Digital.

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2. Diálogos possíveis

A Fotonovela Digital é um projeto que pretende auxiliar os professores na tarefa de formar alunos críticos, reflexivos e autores. Para tanto, o desafio inicial é um convite a uma experimentação: produzir um texto misto, empregando linguagem verbal, som e fotografias. O projeto foi planejado para ser desenvolvido por um professor de Língua Portuguesa junto a uma turma do Ensino Fundamental, 8º ano, que, ao final, terá como conclusão um pequeno vídeo elaborado por uma turma.

Entendo o projeto Fotonovela Digital como um evento de letramento. Segundo Kleiman, um evento de letramento é “uma atividade coletiva, com vários participantes que têm diferentes saberes e os mobilizam, segundo interesses, intenções, objetivos comuns”. Nesse projeto, a prática social (no caso, a de contar histórias) é o ponto de partida e o ponto de chegada do trabalho.

O projeto auxilia a proficiência dos alunos no que se refere às habilidades de leitura e de escrita, pois antes da produção do roteiro do texto do trabalho, muitas atividades de leitura são realizadas em sala. A redação do roteiro costuma acontecer em várias etapas, cada versão, analisada coletivamente, traz possibilidades concretas de reflexões sobre a língua. Acredito também que a utilização da internet, dos programas de edição de imagem, de som e de filme, assim como a constante sugestão dos alunos sobre novas possibilidades de ferramentas auxiliando o trabalho propiciam o aprimoramento de diversas práticas de letramento e atraem o aluno a participar das aulas, a permanecer na escola, a querer fazer bem feito. Além disso, o projeto, com frentes de trabalho de natureza bem diversas, possibilita ao alunado experimentar e descobrir habilidades diferentes.

Eu concordo com a crítica que Kleiman (2007) apresenta à organização do currículo escolar com base na organização dos gêneros. Para ela, houve uma “escolarização” dos gêneros. A autora defende que prática social não pode senão viabilizar o ensino do gênero, pois é seu conhecimento o que permite participar nos eventos de diversas instituições e realizar as atividades próprias dessas instituições com legitimidade. Ela cita Heath (1986), que aponta a supervalorização das atividades analíticas, a adoção de qualquer conceito linguístico, textual ou enunciativo, como estruturador das atividades curriculares, leva o aprender o gênero para agir em sociedade em uma atividade metalinguística: analisar os textos do gênero para aprender como está formado ou para aprender a escrever textos segundo o modelo. O professor que adotar a prática social como princípio organizador do ensino enfrentará a complexa tarefa de determinar quais são essas práticas

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24 significativas e, consequentemente, o que é um texto significativo para a comunidade.

À época da origem do projeto, em 2002, a prática que determinava os planejamentos escolares era o levantamento e ordenamento dos gêneros discursivos seguindo um princípio de espiral: dos mais simples aos mais complexos. Por conta dessa prática, o projeto inscreve-se, desde então, no 8º ano, momento em que a narrativa e os gêneros narrativos são objeto de estudo.

Ao incluir o projeto, dentro da programação escolar, no 8º ano, não justifico a sua execução reduzindo-o apenas às demandas de conteúdo, pois ele, além das estruturas narrativas, contextualiza outros importantes aprendizados, como: a prática de leitura (em especial a leitura de narrativas literárias), a produção de texto (a turma produz muitos textos para atender às demandas do projeto), a análise linguística (no processo de produção de texto, a análise das estratégias de produção de sentido é feita a partir de situações concretas), a capacidade de trabalho em equipe e o desenvolvimento de outras linguagens (linguagem fotográfica, por exemplo).

2.1 Ler e escrever – fazendo parte do mundo narrativo

“Tradicionalmente, a leitura devia ser para poucos porque ela é sempre um elemento de poder e podia ameaçar as minorias que controlavam os livros (e o conhecimento, o saber, a informação)”.

Ana Maria Machado Ampliar as habilidades de leitura e produção de texto de nossos alunos significa ampliar a sua possibilidade de participação no mundo. Participar de forma crítica, autônoma, livre.

Somos construídos por textos. O mundo é narrativo. Ler e escrever significam participar do mundo. As linguagens, com suas possibilidades cada vez mais expandidas, ampliam a condição do homem de expressar a si próprio, de contar a sua história, ler a si próprio, refletir-se. Nesse sentido, homem e linguagem se renovam, modificam-se continuamente. Novas necessidades fazem nascer novas linguagens.

Yunes (2014) chama a nossa atenção para o risco de apresentarmos, na sala de aula, uma leitura de um mundo pronto, de verdades absolutas. “Ler o mundo não é fácil, pois ele nos parece como que naturalizado, já lido e fixado,

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25 o que produz uma espécie de alienação, uma vez que cremos que ‘é assim mesmo’”. A autora defende a ideia de que

“se o leitor travar conhecimento com um bom número de narrativas clássicas desde pequeno, esses eventuais encontros com nossos mestres da língua terá boas probabilidades de vir a acontecer quase naturalmente depois, no final da adolescência. E podem ser grandemente ajudados na escola, por um bom professor que traga para sua classe trechos escolhidos de algumas leituras clássicas preferidas, das quais seja capaz de falar com entusiasmo e paixão.” (p.13-14)

Nas aulas de leitura, essa atividade deve ser entendida como um direito. O aluno tem o direito de conhecer as narrativas de nossa sociedade. Vozes diferentes contam a mesma história de forma diferente. O mesmo texto, a depender do leitor, é um texto diferente. Um mesmo texto, para um mesmo leitor, em momentos diferentes, é um texto diverso.

O projeto Fotonovela Digital constrói-se, basicamente, nas atividades de produção de leitura e produção de texto. A atribuição de sentido a um texto requer, do leitor, um movimento ativo de construções, significações, diálogos estabelecidos com todos os textos que o compõem. A leitura de um novo texto dialoga como os textos que subjetivam o leitor, ressignificando-os, fazendo nascer, inevitavelmente, um novo sujeito, um novo olhar.

2.2 A leitura de clássicos

“Ninguém deve ser obrigado a ler nada. Ler é um direito de cada cidadão, não é um dever.” Eliana Yunes

Uma das propostas do projeto Fotonovela Digital é colocar o aluno em contato com diversos textos, diversas obras. Durante a sua aplicação, em 2015, os alunos leram alguns clássicos, como “Odisseia” e “Chapeuzinho Vermelho”.

Segundo Eliana Yunes (2003), “Clássico não é livro antigo e fora de moda. É livro eterno que não sai de moda”. Ainda, segundo Yunes, “o primeiro contato com um clássico, na infância e na adolescência, não precisa ser com o original. O ideal mesmo é uma adaptação bem feita e atraente”. (p.15) E vivemos essa situação, durante a execução do projeto, com a leitura da adaptação de Odisseia. E com a releitura da história infantil.

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26 Os clássicos são livros, ao mesmo tempo, eternos e sempre novos. Estimular o contato de nossos alunos com os clássicos é colocá-los em contato com um patrimônio sobre a humanidade. Um clássico é um legado, ao qual temos direito.

A leitura viabiliza o acesso ao conhecimento e, por isso, em seus primórdios, era destinada a poucos. Conhecimento é poder. Ler é empoderar-se.

Para além do conhecimento objetivo sobre o mundo, a leitura também nos apresenta novas possibilidades de existência. Vidas alternativas se nos apresentam através das aventuras de outros. Personagens de ficção nos fazem viver possibilidades outras, que, comparadas à nossa realidade, nos fazem refletir sobre nós mesmos.

2.3 Letramento e Pedagogia de Projetos

Segundo Kleiman (2005), letramento é um conceito relativamente moderno, discutido em nosso país desde 1980 e criado para referir-se aos usos da língua escrita não somente na escola, mas em todo lugar. E esse conceito entra em pauta com vistas a uma formação continuada, tanto do professor quanto do aluno. Letramento representa um conjunto de práticas sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e poder. Apenas ser alfabetizado não garante, necessariamente, a participação social efetiva de um cidadão brasileiro. E ser analfabeto não significa estar à margem de todas as situações que envolvam a língua escrita.

A alfabetização é uma prática de letramento escolar. Mas letramento é muito mais do que alfabetização. Uma pessoa analfabeta inserida em uma sociedade letrada não deve, via de regra, ser considerada iletrada, pois de alguma forma participa da sociedade. Na escola, além de dominar o código, espera-se que o aluno seja capaz de usar a linguagem, por meio da escrita, numa variada gama de situações, a fim de responder às suas necessidades.

Segundo Kleiman (2007), fora da escola os eventos de letramento costumam ser colaborativos, coletivos. Dentro da escola, os professores, muitas vezes, trabalham com abstrações, proporcionando práticas individuais, competitivas. E a autora defende que as práticas escolares devem ser contextualizadas, levando em conta os textos que circulam entre os diversos grupos sociais, no dia a dia. Kleiman destaca, ainda, a importância dos projetos de ensino, que devem ser realizados por meio da apropriação de modelos de práticas sociais de outras instituições.

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27 Leda Verdiani Tfouni (2010) também tenta definir e formalizar uma teoria do letramento que não esteja voltada apenas para a aquisição da leitura e da escrita. Tfouni realiza pesquisas com adultos não alfabetizados que mostram o equívoco da visão preconceituosa sobre os não alfabetizados. A autora quer formular uma teoria sobre letramento preocupada com políticas e práticas sociais de inclusão, através de meios educacionais, de adultos não alfabetizados e letrados. As pesquisas que fez mostram que os não alfabetizados são racionais, capazes de pensar logicamente, de fazer inferências. A autora chama a atenção para a alienação de pessoas letradas e não alfabetizadas que abrem mão do conhecimento e da própria cultura ao não terem garantido o acesso ao conhecimento sistematizado.

Bakhtin (1997) e seu círculo e os autores contemporâneos que discutem os significados do letramento têm um aspecto basilar comum: o valor social da linguagem. Depreendemos do teórico russo a premissa de que a língua só pode ser estudada inserida na enunciação. Nas mais diversas cenas de nossa sociedade, nós somos chamados à interação. Constituímo-nos através da linguagem, motivada por falantes situados historicamente, possuidores de identidade, intenções.

Ao discutir a linguagem, suas condições de produção, sua importância na constituição do ser humano, deve entrar em pauta o papel da educação e do professor. Devem ocorrer discussões voltadas à formação do aluno. Formar um aluno significa não apenas alfabetizá-lo, mas prepará-lo a participar das práticas sociais de forma consciente, entendendo as relações de identidade e poder envolvidas nas práticas.

Acredito que, quando o professor se apropria dos estudos sobre letramento, ele passa a organizar o seu trabalho com vistas a criar condições para proporcionar aos alunos experiências próximas às das práticas sociais. E, nesse sentido, lança mão da produção de projetos como opção metodológica.

A Pedagogia de Projetos foi primeiramente apresentada pelo pesquisador norte-americano John Dewey, cujas ideias chegaram a nosso país, na década de 1930, através do professor Anísio Teixeira, participante do movimento conhecido como “Educação Nova”. Esse movimento defendia pressupostos baseados em Dewey, dentre os quais podemos citar: a defesa de uma “educação integral” do indivíduo, destinada a todos, com a mesma qualidade, proporcionando igualdade de direitos e condições, além da valorização da formação de professores para atender a todas as modalidades de ensino, com remuneração digna. O objetivo central do modelo defendido por Anísio Teixeira centrava-se na aprendizagem significativa, necessária para a promoção de mudanças na sociedade, na construção de uma realidade mais justa e democrática.

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28 “esse percurso da educação brasileira é interrompido por um

longo período político em que ideais democráticos não vicejavam e simpatizantes de uma escola com forte missão social eram tidos como subversivos. Com efeito, uma conjunção de fatores ocasiona um aparente ‘esquecimento’ do modelo de educação que emana da pedagogia de projetos, os quais continuaram a existir, ao longo de décadas de repressão, apenas por iniciativas isoladas” (p.197).

Ainda segundo essa autora, o termo ‘projeto’ volta a circular no contexto educacional de nosso país a partir da publicação da Lei de Diretrizes e Bases (MEC, 1996) e dos PCN (MEC, 1997), ganhando força a partir dos trabalhos que produziu (1999 e 2000) sobre ‘leitura’ e ‘projetos de letramento’.

Kleiman defende que os projetos de letramento compõem um modelo didático, que articula os “estudos de letramento, da pedagogia de projetos e do aporte metodológico da pedagogia crítica” (p.198).

Tradicionalmente, muitos ‘projetos temáticos’ são desenvolvidos nas salas de aula, na maioria das vezes, motivados por eventos anunciados no calendário escolar, como atividades relacionadas ao meio ambiente, a identificação de manifestações folclóricas, entre outras. No entanto, não é possível confundir esses projetos temáticos com projetos de letramento.

O ponto de partida de um projeto de letramento deverá surgir, sempre, de uma prática social, eleita através do interesse real de estudantes e professores.

Segundo Kleiman, durante o processo de execução do projeto, “são realizadas muitas leituras e produzidos textos escritos com diferentes estruturas composicionais e estilos, em conformidade com o objetivo a se alcançar, com as exigências de cada suporte textual e do gênero discursivo por ele veiculado”. (p.199)

Ao optar pela construção de projetos de letramento, o professor precisa assumir alguns pressupostos, quais sejam:

 Para desenvolver a proficiência linguística dos estudantes, a análise dos elementos linguísticos por si só não habilita os alunos a dominar os usos que a linguagem faz ao ler, escrever e falar;

 Os textos a serem trabalhados com os alunos devem ser textos reais, produzidos dentro e fora da escola;

 Ler é mais do que decodificar. É preciso investir na produção de leitura de textos multimodais, verbais e não verbais;

 O trabalho é coletivo. Várias vozes dialogam enfrentando desafios e propondo soluções.

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29 A Fotonovela Digital é um projeto de letramento, pois surge da proposta da professora frente a uma necessidade real dos alunos (a de participar do mundo narrativo, construindo textos com finalidades sociais reais), e não se restringe a um plano de aula, mas se desdobra em muitas aulas com uma rede de atividades que não privilegiam uma relação de conteúdos, embora os conteúdos sejam necessários à efetivação do projeto. As sequências são ajustáveis à medida em que as respostas dos alunos vão determinando os encaminhamentos necessários. Os alunos dividem responsabilidades e assumem postura ativa frente ao saber. E a produção final (fotonovela) é um resultado que permite uma avaliação das habilidades construídas, como também a validação de todo o processo, com o sucesso de todo empreendimento.

2.4

A dimensão política do trabalho docente

“Esta é a língua do opressor, no entanto eu preciso dela pra falar com você” Adrienne Rich

É imprescindível que o professor se conscientize sobre o seu papel político. Não podemos nos permitir ficar no cômodo lugar da alienação, da imaturidade, da perpetuação de práticas que discriminam, diminuem, tolhem o aluno da participação na sociedade. Um passado que insiste em se fazer presente: professor de Língua Portuguesa “ensinando” apenas regras gramaticais, estruturas sintáticas, “corrigindo” erros, inadequações, “julgando” variantes dialetais como “menores”; deixando de lado o verdadeiro protagonista de toda a escola, o aluno.

Em vários momentos, no mestrado, nossas aulas suscitaram reflexões sobre língua, identidade e poder, sobre o reconhecimento que modalidades diversas precisam ter e que devem ser trazidas para a sala de aula, a fim de que sejam reconhecidas, validadas. A postura do professor especialista deve ser de respeito, de diálogo com o aluno, de um professor que pretende a formação de um aluno crítico, cidadão, respeitoso no que se refere a muitas coisas, mas, no nosso caso, em especial ao que se refere à diversidade linguística. Politicamente falando, um professor não pode permitir que as aulas de língua permaneçam no lugar das prescrições de uma norma abstrata, que distingue, que preconiza, que avalia, que discrimina. Tornar o aluno multidialetal dentro de sua própria língua, que respeite o outro, que ressignifique o mundo através da linguagem é um dos nossos maiores objetivos.

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30 Segundo Bell Hooks (2008), “a língua (é) um lugar onde nós fazemos de nós mesmos sujeitos”. Traduzindo Hooks, diríamos “nós somos o que falamos”, ou “nós somos como falamos”. Nossa linguagem nos define, nos declara, identifica.

Hooks, enquanto professora, lutou contra as práticas de sala de aula em que a língua era usada como instrumento de regulação, discriminação, humilhação. E nos alertou sobre uma questão primordial para quem estuda linguagem e cultura: é preciso reconhecer, na língua, vozes que são frequentemente silenciadas, censuradas ou marginalizadas.

E precisamos estar atentos a isso. A língua delimita lugares sociais. É uma construção coletiva. E é, ao mesmo tempo, o elemento através do qual as mudanças são empreendidas. Nesse sentido, aprender “a língua do opressor” é uma função social das aulas de Língua Portuguesa: empoderar-se pelo domínio da variante da língua considerada de prestígio para não ser impedido, socialmente, de transitar pelos espaços, de ocupar esses espaços e de transformar os espaços.

Quando conseguirmos instaurar na sociedade um trato respeitoso em relação à linguagem, todos os falares serão encarados da mesma forma. Mas, até que isso aconteça, é preciso preparar o aluno para lutar pelo seu direito de ser e estar na sociedade de forma plena.

“Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos.”

Carlos Drummond de Andrade

Bell Hooks tem posturas sobre a língua que vão ao encontro das ideias de Bakhtin (1997). De acordo com Bakhtin, “viver significa participar do diálogo”. O diálogo acontece nas práticas sociais. Por isso, podemos definir o homem como aquele que participa de práticas sociais.

Ao se inserir no mundo, o sujeito faz nascer a linguagem, impregnando-a de ideologia. Dentro das práticas sociais, a linguagem, traduzida na palavra, na interação do sujeito com o outro, cria os enunciados. As interações concretas, socialmente compartilhadas, são origem e destino, indefinidamente. Através da palavra, o sujeito marca sua presença no mundo discursivo, o seu existir.

O sujeito projeta sentidos, que são determinados pelos contextos, e a dialogicidade, segundo Bakhtin, se faz presente, na movimentação responsiva. Concordar ou discordar das ideias de um texto resulta em um movimento de enunciados, vozes, textos. O mundo é texto. O mundo é diálogo.

Ao trabalhar nas escolas da rede pública, com alunos que pertencem a uma camada mantida, na nossa sociedade, como fornecedora de mão de obra barata e pouco qualificada, precisamos estar alertas em relação ao compromisso que assumimos na regência de uma sala de aula.

(30)

31 Muitas vezes, alguns professores negam aos alunos a legitimidade de sua língua, por conta de fazerem uso de uma variante linguística diferente daquela própria dos falantes escolarizados.

Outro sentido, diferente, de diálogo, nos é apresentado por um dos maiores educadores que nosso país já teve: Paulo Freire. Freire (1987, p.46) ressalta que:

“O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus pólos (ou um deles) perdem a humildade. Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim?”

Ao defender a libertação do homem, Freire pregava uma relação entre professor e aluno baseada em uma educação problematizadora, edificada a partir do diálogo, com fins à construção de uma educação essencialmente voltada para o processo de humanização. Para ele, o diálogo, realizado pelas pessoas por meio da palavra, é a essência da humanização. O diálogo acontece, segundo Freire, em duas dimensões: a ação, para a transformação e não alienação; e a reflexão, atrelada ao processo de tomada de consciência crítica. O processo de aprendizagem da leitura e da escrita é um processo de consciência política. O educador defendia que a palavra deve ser direito de todos os homens e mulheres. “Os homens se fazem pela palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 1987, p.78).

Ainda segundo Freire (1987, p.93), o diálogo “é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo para pronunciá-lo”. Nesse sentido, a relação a ser estabelecida entre professor/aluno na sala de aula deve ser dialógica. Para o educador, o amor é o elemento fundamental a fim de que o diálogo aconteça. O amor seria a base para uma educação livre de dominação, opressão, manipulação. A construção de uma relação harmoniosa passa pela humildade, em que aprender se torna possível a partir da relação com o outro. O outro nunca vem sem conhecimento. Escolarizado ou não, todos sabem muitas coisas, e esse saber, além de respeitado, deve ser valorizado. Não deve haver hierarquia entre as pessoas num processo educativo, antes, elas devem ser vistas como companheiras. E pensando juntas, de forma a refletir o mundo e as relações estabelecidas, provocar a transformação contínua da realidade. Para Freire (1986, p.21) “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou construção”.

As ideias de Freire, em especial, ajudaram-me a rever o projeto durante a sua aplicação em 2015. Muito preocupada com o resultado final dos projetos que eu desenvolvia ao longo de minha carreira, muitas vezes com culminâncias envolvendo uma apresentação a toda comunidade escolar, eu percebi que, por vezes, costumava interferir na produção de meus alunos, não sendo capaz de exercitar uma escuta sensível de suas falas, de seus desejos. E revi minhas atitudes, refreando meu impulso de conduzir o processo de acordo com meus

(31)

32 desejos, minhas certezas, minha visão de mundo, minhas escolhas linguísticas. Entendo que consegui exercitar essa escuta sensível, respeitando os saberes dos alunos e as intencionalidades discursivas almejadas na realização do projeto Fotonovela Digital no ano de 2015, depois de muitas reflexões.

2.5 A Fotonovela

Desde 2002, desenvolvo o projeto Fotonovela Digital. Conforme fora relatado anteriormente, o projeto nasceu nas aulas de Língua Portuguesa destinadas às atividades de produção de texto, com o propósito inicial de contextualizar as produções. Desde o primeiro ano, o projeto superou as minhas expectativas, pois, além de ter sido recebido e desenvolvido pelos alunos com muita alegria, surpreendi-me positivamente ao constatar a produção de textos narrativos autorais, com a ampliação dos limites dos textos produzidos tradicionalmente nas salas de aula, utilizando várias linguagens.

Desde o começo, o projeto foi sofrendo alterações, algumas delas resultados de reflexões minhas sobre a sua execução e, muitas outras sugeridas pelos alunos que o desenvolveram. Apesar de, ao final da sua execução, os alunos dominarem o gênero, a intenção do projeto não é apresentar esse gênero narrativo misto ou teorizar sobre ele. O domínio do gênero configurou-se como meio para o desenvolvimento das habilidades de leitura crítica e a produção textual visando à construção da autoria.

Vale lembrar que, segundo Bakhtin, os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, produzidos dentro de uma esfera social. Três elementos o caracterizam: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Segundo esse autor, quando optamos em produzir um texto, a escolha do gênero se deve a: intencionalidade discursiva do locutor, necessidades temáticas e o conjunto de participantes. Esses parâmetros orientam a ação discursiva.

Enquanto gênero, a fotonovela é uma narrativa mista, composta por fotos (texto não verbal) e legendas (texto verbal de extensão reduzida). Foi um fenômeno de venda em nosso país na década de 1970. A intencionalidade discursiva desse gênero, segundo HAUBERT, é a fruição do público leitor. É considerada como um fenômeno de cultura de massa.

“Cultura de massa expressa um momento histórico, característico das sociedades industriais capitalistas e que se manifesta em todos os traços espirituais ou materiais do homem. No imaginário, caracteriza-se pela utilização das formas mecânicas de reprodução e pela padronização.” (p.18)

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