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A França da Terceira República: a questão do ensino laico

CAPÍTULO 2. Das causas conexas

2.3. A França da Terceira República: a questão do ensino laico

A educação na França durante os séculos XVII e XVIII, ensina Foulquié, dividia-se em três categorias – universidades, colégios e pequenas escolas. Nestas, ensinava-se a leitura, a caligrafia, o cálculo e o catecismo. Relegadas ao controle das províncias, as pequenas escolas por vezes ficavam a cargo das paróquias, sendo que o professor servia também como sacristão. O autor explica:

“O professor, efetivamente, é ainda em parte homem da Igreja.

Mesmo quando nomeado pela assembléia dos pais, ele deve ser aprovado pela autoridade eclesiástica que, depois, o submete a exame. A instrução religiosa constitui, com efeito, parte importante de seu programa, para não dizer a mais importante, aos olhos do rei e dos pais, assim como aos olhos da Igreja. Compreende-se, nestas condições, que o professor rural seja uma espécie de coadjutor leigo do pároco.”152

A partir do século XVII, multiplicaram-se na França as congregações femininas dedicadas ao ensino de crianças e jovens, passando a lecionar nas pequenas escolas das aldeias, por solicitação dos pais e párocos. Segundo Perrot, “paga ou gratuita, rural ou urbana, a escola elementar abrange a maior parte dos alunos. (...) As escolas rurais femininas estão de facto quase exclusivamente a cargo de congregações com implantação nacional ou regional. Congregações dedicadas ao ensino abrem em sua casa-mãe um seminário destinado a formar mestras de escola para os meios rurais.”153

O século XIX foi o século da escola, por excelência, na França. Não se via na família ou no meio ambiente cultural uma função como a que se consagrava à instrução como possibilidade de progresso pessoal e coletivo. Tal entendimento do

152 FOULQUIÉ, Paul. Igreja e a Educação. Trad. Maria das Dores Ribeiro de Figueiredo e Castro. Rio de Janeiro: Agir, 1957, p. 49.

153 DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (orgs) História das Mulheres no Ocidente. Porto:

Afrontamento, 1994, p. 162,

papel da escola incluiu tanto as disposições das classes dirigentes, como de grupos sociais cada vez mais extensos, de que somente no interior da casa escolar a instrução pudesse acontecer com ordem e eficácia. Uma instituição de tamanha importância e centralidade não poderia deixar de colocar-se como foco de disputas quanto a seu controle. Passou-se rapidamente da paixão pela escola à luta escolar, conforme explicita Françoise Mayeur,

“onde o Estado pretendia afirmar prerrogativas, novas em suma para ele, face à Igreja que considerava o ensino como uma de suas missões tradicionais. O sentido mesmo da instrução modificou-se. Ela deixa de ser desde o início do período a obra de caridade que justificou e justificaria ainda ao longo do século o mundo católico na fundação de escolas paroquiais e das congregações escolares. Ela torna-se um dever ao mesmo tempo que um direito do Estado que a transforma em serviço público.”154

Após a derrota francesa frente à Prússia em 1871, com a conseqüente substituição do governo imperial de Napoleão III pela República, as circunstâncias históricas contribuíram para colocar a questão escolar em primeiro plano. A superioridade das tropas alemãs era citada pela imprensa francesa como conseqüência da densidade da rede escolar no país germânico e pelos bons salários dos professores, cujo trabalho resultava numa população convicta de seu patriotismo e acostumada a regimes de disciplina. Neste contexto, o tipo de educação oferecido, argumentava-se, tinha influência no robustecimento da nação. Para uma França republicana homogênea e fortalecida, a escola deveria ser uniforme, gratuita, laica e obrigatória: “a escola laica, para os republicanos, não era separável de sua causa, ao fundá-la, ao defendê-la,

154 «où l‟État entend affirmer des prérogatives, nouvelles en somme pour lui, face à l‟Église qui considérait l‟enseignement comme une de ses missions traditionelles. Le sens même de l‟instruction s‟en trouve modifié. Elle cesse dès les débuts de la période d‟être l‟oeuvre de charité qui avait justifié et justifie encore au long du siècle le monde catholique dans la fondation d´écoles paroissiales et de congrégations enseignantes. Elle devient un devoir autant qu‟un droit de l‟État qui la transforme en service publique.»

in MAYER, Françoise. Histoire de l‟Enseignement et de l‟Éducation. 1789-1930. Tomo III, Paris:

Perrin, 1981, p. 9.

a República tinha o sentimento de lutar por sua existência”.155 A hierarquia eclesiástica e as demais organizações católicas, acusadas de alinhar-se aos partidários de uma pretendida restauração monárquica, foi paulatinamente afastada das atividades educacionais no território francês.

A década de 1880 viu o aparecimento de diversos diplomas legais que promoviam a laicização da escola primária elementar, embora a Igreja ainda pudesse manter estabelecimentos próprios e mesmo o ensino superior. No início da década foi decretada a dispersão dos jesuítas e determinado prazo para que as congregações não autorizadas requeressem seu registro perante o governo. A escola primária tornou-se gratuita (1881) e o programa, laico (1882), o que implicava na retirada de quaisquer símbolos religiosos do recinto escolar. Também os ministros de quaisquer cultos ficaram impedidos de pregar nas escolas. Em 1886 o processo foi acentuado com a decretação da laicização também do pessoal, com a previsão da substituição dos professores religiosos de meninos no prazo de cinco anos, e progressivamente nas escolas para meninas. A administração do ensino foi centralizada, emancipando o professor das autoridades comunais, vale dizer, da influência do cura de aldeia.

A partir de 1890 deu-se uma acomodação das partes em conflito. A hierarquia eclesiástica, alertada por seguidos insucessos dos conservadores nas eleições, manifestou-se positivamente quanto à aceitação dos governos legitimamente eleitos. O Papa Leão XIII, na encíclica Inter Sollicitudines, pregou a aceitação da república, devendo-se não mais combater o governo, mas opor resistência buscando a revogação das leis anticristãs, aí incluídas as do ensino laico. A ligação dos republicanos moderados a uma política da ordem permitiu aos confessionais não autorizados a reabertura discreta de suas escolas.156

O começo do século XX veria o recrudescimento da disputa em torno de a

155 «l‟école laïque, pour les républicains, n‟est pas separable de leur cause; en la fondant, en la défendant, la République a le sentiment de lutter pour son existence».

in OZOUF, Mona. L´Ecole, L´Eglise et la République. Paris: Cana/Jean Offredo, 1982, p. 17.

156 OZOUF, M. op. cit., p. 166.

quem cabia a formação das mentes juvenis. Isto equivale dizer, do controle dos conteúdos que comporiam o programa escolar. O governo de Waldeck Rousseau, logo seguido pelo de Combes, promoveu em 1900 nova carga contra as associações não autorizadas. Lei promulgada em 1º de julho de 1901, reconheceu pela primeira vez na França a liberdade de associação, mas, instaurou um regime de exceção para as congregações religiosas, colocadas assim, de certa forma arbitrariamente, fora do direito comum.157 A exigência do pedido de autorização foi seguida pela negativa em bloco para o funcionamento das ordens religiosas, com exceção de cinco congregações hospitaleiras. O total de pedidos que haviam sido encaminhados segundo a exigência legal havia sido de 615 congregações, sendo que outras 215 tinham se recusado a fazê-lo.158 Qualquer pessoa que tivesse pertencido a uma dessas organizações ficou proibida de lecionar. A partir do verão de 1902, mais de 2.500 escolas foram fechadas, chegando a 10.000 em 1903. Cerca de 5.800 dessas escolas reabriram logo depois sob a direção de leigos católicos.159 Em 1904 houve a interdição plena aos religiosos de lecionarem, pertencessem a ordens autorizadas ou não.160.

O fechamento das escolas confessionais deu lugar a incidentes de grande impacto emocional em todo o país. Os bens das Congregações dispersas foram inventariados e liquidados, chegando o confisco de bens da Igreja à soma de 260 milhões de francos. Também no ano de 1904, houve o rompimento das relações diplomáticas com o Vaticano. Pela nova legislação, o Estado não reconhecia nem pagaria salários a nenhum culto. Cerca de 160.000 religiosos sofreram restrições no

157Cfe. DUCHET-SUCHAUX, Gaston. Les Ordres Religieux. Guide Historique. Paris: Flammarion, 2000, pp. 268-269.

158 Cfe. GEORGEL, Jacques; THOREL, Anne-Marie. L‟Enseignement privé en France du VIIIe au XXe Siècle. Paris: Dalloz, 1995, p. 33.

159Cfe. BAUBÉROT, Jean. Histoire de la laïcité en France. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p. 70.

160 «Enfin les Chambres, en juillet 1904, interdiront l‟enseignement à tous les congréganistes, quel que soit le passé de leur ordre.»

in OZOUF, M. op. cit., p. 178.

exercício de suas atividades pedagógicas. Mais de 60.000 exilaram-se. Assim resume Lanfrey o quadro existente em França no início do século XX: “no momento em que as congregações vítimas da recusa de autorização emergiam lentamente de uma crise aguda, as congregações autorizadas, vítimas da lei de 7 de Julho de 1904, sofriam a interdição de ensinar e encontravam-se confrontadas por sua vez com a secularização.”161

Embora as Irmãs de São José, com suas bases em Chambéry, Moûtiers, Maurienne e outras localidades da Savóia alegassem estar autorizadas a funcionar por cartas-patentes dos Reis da Sardenha, emitidas anteriormente à anexação daquela província pela França, e, portanto, válidas segundo cláusulas do tratado de anexação, não foi esta a interpretação do governo francês. As escolas da Congregação nas cidades maiores tiveram que fechar e as religiosas que lecionavam nas pequenas vilas em escolas comunais mantidas pelos prefeitos foram enviadas de volta às sedes da Congregação. Dessa forma, houve um excesso de pessoal disponível, religiosas que, se não quisessem tornar-se enfermeiras (no campo da saúde não havia obstáculos legais à sua atuação), a outra opção seria deixar o país. Uma outra possibilidade seria abandonar o hábito religioso, secularizar-se, e atuar nas novas escolas dirigidas por leigos, na condição de professora leiga. No caso da Congregação das Irmãs de São José, segundo Sorrel, a diminuição do número de religiosas atuando em França foi bastante acentuada. Na diocese de Moûtiers, que contava com 215 religiosas em 1901, dez anos depois, em 1911, o número teria caído a 103, ou 150, se contadas as que optaram pela secularização. Na diocese de Chambéry, a diminuição foi de cerca de 38% dos efetivos, passando de 484 em 1901, a 298 religiosas em 1902. Tal diminuição, informa o autor,

161 «Au moment où les congrégations victimes des refus d‟autorisation émergeaint lentement d‟une crise aigüe, les congrégations autorisées, victimes de la loi du 7 juillet 1904, subissaient l‟interdiction d‟enseigner et se trouvaient donc confrontées à leur tour à la sécularisation».

in LANFREY, ANDRÉ. Les Catholiques français et l‟École. (1902-1914). Paris: Éditions du CERF, 1990, p. 78.

“era acompanhada por vezes de uma modificação do equilíbrio interno, como entre as Irmãs de São José de Moûtiers, onde as conversas ficaram mais comumente nas paróquias (30% dos efetivos em 1901, 47% em 1911), enquanto que as professas de votos perpétuos partiam ao exílio, sobretudo se possuíam o brevet de professoras e pertenciam ao grupo das de idade mediana”.162

Assim, a expansão das escolas confessionais mantidas por ordens religiosas francesas nas Américas, tão oportuna como reforço ao movimento ultramontano encetado pelo clero latino-americano, pode ser explicada, entre outros fatos, pela chamada questão escolar, que opôs, em França, o princípio republicano e o princípio monárquico, a escola laica e a escola congregacional, processo que se desenvolveu ao longo de várias décadas. No início do século XX, a marcada presença das congregações francesas em várias regiões do globo, em decorrência dos desenvolvimentos políticos que vimos descrevendo, se antes era majoritária, foi então consideravelmente reforçada, a ponto de levantar resistências locais por parte de movimentos anti-clericais.

As congregações francesas que já tinham ramificações em funcionamento mundo afora tiveram a possibilidade de menos traumaticamente redistribuir o excesso de pessoal, ainda dignificado pela aura da perseguição sofrida e a partida na condição de missionários. Dessa forma, as Irmãs de São José puderam intensificar sua expansão na Europa, Ásia e Américas. A casa de Moûtiers, por exemplo, somente para os dois estados brasileiros do Sul, Paraná e Rio Grande, enviou no intervalo de 1896 a 1908, oitenta religiosas. A presença de freiras com treinamento professoral permitia a rápida abertura de escolas, cujos rendimentos possibilitavam a manutenção de noviciados para formação de novas religiosas, recrutadas entre a população urbana que se

162 «Ce repli s‟accompagne parfois d‟une modification de l‟équilibre interne, comme chez les Soeurs de Saint Joseph de Moûtiers où les converses restent plus facilement dans les paroisses (30% des effectifs en 1901, 47% en 1911), alors que les professes voilées partent en exil, surtout s‟elles possèdent le brevet d‟enseignement et appartiennent au „moyen âge‟.»

in SORREL, Christian. La République contre les Congrégations. Histoire d‟une passion française.

(1899-1914). Paris: Les éditions du CERF, 2003, p. 173.

adensava como resultado da imigração européia de classes trabalhadoras e nas colônias de agricultores de religião católica. De maneira que a política laicista do governo republicano francês, no intuito de enfraquecer o poder ideológico da Igreja Católica, acabou por propiciar um crescimento acelerado das ordens, as quais, detentoras das chaves de entendimento da cultura francesa, ambicionada como modelo civilizatório, eram recebidas com bastante simpatia nos locais de suas novas implantações. Paradoxalmente, o êxodo massivo dos religiosos franceses após 1901, contribuiu ao apogeu da cultura francesa no mundo na primeira metade do século XX.