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Tempo de Mercês: tempo circular ou espiralar ?

4.2. A função do diálogo

No conto, o diálogo evidencia também uma função rítmica: a aparição repetida deste tipo de discurso imprime à narrativa um ritmo ágil, obstando à porosidade do texto, pois são diálogos geralmente curtos e entrosados no contexto, quase sempre reflexões sobre o que se passou ou momentos de clarificação da actualidade, a que se alia uma força

centrípeta. É o ambiente privilegiado de eclosão de uma escrita maximamente depurada e dirigida também para o preenchimento substitutivo de vazios e de ausências. Isto dá-nos a percepção de um ritmo, mas com mudanças de velocidade e um carácter entrecortado que deriva da aparição constante de analepses12. O texto encontra-se, deste modo e por vezes,

bloqueado por uma sintaxe ofegante de índole emotiva que veicula uma inegável expressão lírica, suspensiva e algo oclusiva, eivada de sinais de pontuação que marcam tanto a indefinição como a perplexidade e o inacabado (reticências, travessões, vírgulas em frases truncadas) como o espanto, a surpresa ou o deslumbramento (exclamação, ponto em frase nominal e interrogação). É uma sintaxe que se coaduna com a perda e a solidão e que consequentemente faz ressoar o(s) eu(s) no(s) espaço(s) íntimo(s) despovoado(s).

Os diálogos manifestam, não raro, tentativas por parte de locutor de agir sobre o interlocutor13 — concretamente sobre os seus estados cognitivos, passionais e sobre o seu

comportamento verbal. Investidas que intentam impor uma orientação discursiva com vista a um determinado percurso interpretativo, instaurando-se no discurso um vincado dinamismo que comporta momentos alternados de tensão e apaziguamento. Em Tempo de

Mercês exemplo disto são os diálogos entre Mateus e Natália, em que se degladiam pontos

de vista, se esgrimem argumentos, se problematizam identidades e situações. As suas tomadas de palavra assentam numa ramificação do tempo presente que se abre para a representação do passado, através da rememoriação, o que prova que "[...] les rôles joués par les différents interlocuteurs déterminent leurs contributions verbales" (Vincent, 1995:57).

O encadeamento dos segmentos dialogais não respeita uma progressão temática ou argumentativa, perseguindo o fio da memória — que serve de chave à interpretação dos afectos que povoam as intersubjectividades — constroem-se situações avulsas, nós

12 Todas a personagens estão subjugadas por uma síndrome do passado: é possível modificar a concepção

do passado ou a interpretação dos acontecimentos a ele pertencentes, mas o passado continua lá, não desaparecerá nunca, e não é possível transformá-lo. O seu peso ontológico é grande.

13 Esta ideia é já, de algum modo, expendida por Searle (1975:70) quando disserta sobre os actos de fala

indirectos: "What is added in the indirect cases is not any additional or different SENTENCE meaning, but additional SPEAKER meaning".

dialogais e/ou monologais, brechas visíveis sustentadas pelo húmus vivencial. Trata-se, portanto, de unidades cujo paradigma é à partida heterogéneo, todavia o poder aglutinador da configuração temporal da narração é grande. É o tempo de um "sujet désirant, c'est une temporalité vécue à partir des désirs, des croyances, des états d'âme, des mouvements

d'âme surtout. C'est bien lá que les temporalités tiennent leur tonalité affective:

l'éblouissement dans l'instantanéité" (Parret, 1993:8). A confidência ou o desabafo surgem assiduamente no diálogo, o que as coloca no cerne da tensão do agir, pois há muito para contar e de que conversar — passa-se da narração da vida para a narração do viver. A relação interpessoal que se estabelece durante a interacção configura desta maneira "[...] des actes de language, qui peuvent aussi fonctionner comme de puissants relationèmes, horizontaux (exemple de la confidence)" (Kerbrat-Orecchioni, 1995:73). Atente-se na importância da componente afectiva, como um emoliente fundamental na engrenagem dialogai que precisamente por ser palco de exposição de sentimentos e emoções se poderia tornar incandescente.

No pressuposto de que "There are two other ways of preserving the directness of dialogue [...] These are the mental soliloquy in its developed form — the interior monologue, and the stream of consciousness" (Mendilow, 1972:112), a carga monologai detém um peso interessante na economia do conto em apreço visto que marca uma abertura lírica, uma veia que canaliza uma escrita intensa e que produz efeitos de irradiação dialógica, pois a consistência do discurso é absorvida numa espiral corrosiva e triturante contendo no seu horizonte o espectro do outro ou uma expressão polifónica. As personagens abrem-se interiormente para si próprias, num fluir psíquico contínuo, numa miríade vertiginosa de impressões, sensações, desejos, recordações, imagens — uma corrente onde entra o irracional, o emotivo, o esquecido e o que ficou na memória.

Logo, a combinação do diálogo com o monólogo dá-se "[...] afin de satisfaire à la complétude interactive d'une intervention" (Rossari, 1995:200). Em Tempo de Mercês a transição entre os dois tipos de discurso enforma um deslizar suave e natural, o que parece confirmar a posição defendida por Rossari: "Il semble donc se dégager un continuum entre

le dialogue et le monologique. Une conception graduelle de l'insertion du dialogique dans du monologique a l'avantage de ne pas limiter les séquences de dialogue romanesque aux seuls propos rapportés en discours directs" (Rossari, 1995:201). Uma visão assim matizada "[...] est donc indispensable, pour décrire les formes du dialogique romanesque et pour saisir la manière dont celles-ci s'insèrent dans le récit" (Roulet, 1995:22), no fundo trata-se de "[...] recourir à une approche globale intégrant discours monologique et dialogique." (Roulet, 1995:22).

A um nível macroestrutural há uma interdependência entre segmentos de narração e segmentos dialogados, a articulação relacional e compositiva ostenta uma certa hierarquização na medida em que estes são uma ilustração daqueles — traça-se um esquema que se alarga à consideração de movimentos dialógicos organizativos, diversificados e complexos, que percorrem o texto. Relativamente a Tempo de Mercês podemos transpor e aplicar as palavras de K. Hamburger ((1973) 1993:182) quando afirma: "[...] there exists between those parts consisting of straight narration and those of dialogue such a close continuity in terms of style and content that they have interfused and coalesced into one aesthetic configuration".

É este modelo de unidade que aponta para a consideração do diálogo como um nicho deíctico: dialogar é integrar na orientação para o "tu" o lugar de partida do "eu". Falar de solidão tem um traço de espoliação e salienta a incomunicabilidade que ela acarreta, mas o diálogo possibilita uma mediação inter subjectiva, a protagonização de uma partilha comunicativa entre um "eu" e um "tu".