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Tempo de Mercês: tempo circular ou espiralar ?

4.5. A presença do narrador na estruturação temporal

Ao terminar a leitura do conto Tempo de Mercês verifica-se que dominamos a história de Mateus nos seus trechos mais decisivos, pelo que o narrador tinha, desde o início, todos os dados na mão. Mas se a presença da autora emerge através do narrador na terceira pessoa, "[...] não se trata de maneira nenhuma de uma interveniência ou de uma disposição despótica, antes de uma presença organizadora e sobretudo tutelar" (Maria Alzira Seixo, 1986:188), pelo que se torna pertinente equacionar as intrusões do narrador como um fenómeno correlativo da permeabilidade do acto de linguagem à penetração da subjectividade.

Trata-se de um narrador que molda os acontecimentos, não à cronologia do tempo físico mas sim a solicitações da duração psicológica, procedendo à distribuição de focos que iluminam rasgos essenciais, numa clara orientação e gestão da sequência narrativa. O narrador experimenta o seu poder em submeter a fluência contínua e regular do tempo à ordem da sua palavra que lhe dita o andamento em função das suas necessidades ou do seu bel-prazer: os conflitos que através de um processo de tensões e distensões vão unificando a realidade narrada; o modo de iniciar e concluir a história — uma retrospectiva descontínua e intermitente, no plano actual, que se fecha num momento de crise (identidade de Natália, embora não explícita) que pode ser considerado um quasi-clímax e esboço de uma flexão prospectiva, porém quase que diria abortiva. Por outro lado, este narrador tende, por vezes, a fazer desvanecer os sinais da sua presença quando priveligia os diálogos

das personagens — núcleos diegéticos importantes na economia do conto — que surgem intactos no seu ritmo de desenvolvimento e nos discursos que os suportam. Não se deverá concluir, no entanto, que o narrador abdica, nestes ocasiões, das suas prerrogativas de modelizador da história; o que se passa é que há uma dissimulação da sua intervenção, não significando com isso que o narrador não continue a eleger os momentos mais importantes em função da economia da narrativa, concretizados, neste caso, na instauração e interrupção do diálogo.

A contracção temporal, para além dos jogos que autoriza, nomeadamente na opção por estratégias de representação selectivas que elevam à singularidade a ocorrência e/ou evocação de eventos/indivíduos, permite ao narrador dominar o tempo, na medida em que conduz à construção da unicidade do ponto de vista que é totalizador (fixo e coerente): no texto que analiso dá-nos conta de uma óptica fundamentalmente instrospectiva que bordeja o espaço/tempo interior das personagens, numa formulação intensiva das suas problemáticas em que não é desprezível um crivo analítico que as elabora e depura, numa inequívoca propensão à expressão da subjectividade.

É ainda Maria Alzira Seixo quem nos auxilia a enquadrar correctamente este problema, ao expor, na esteira de Jean Poullion, três perspectivas de compreensão das personagens e das quais ressalto o "modo avec"15. Esta técnica revela uma situação de crise do herói fazendo convergir nele o mundo dos outros que interioriza completamente, projectando-o depois sobre as coisas e os seres que se cobrem de uma tonalidade única em conformidade com a problemática também única. Trata-se da construção do conto no sentido de uma manifestação concentrada e intensiva de um tema e que vai influir directamente na expressão da temporalidade.

Precisamente no conto em que o tempo é curto, e este é o caso, o narrador recorre à memória e expande o instante com retrospecções sustentadas e quase sempre de alguma amplitude, recuperando uma totalidade compacta, maciça do passado através de evocações

15 Este tipo de visão proporciona ao leitor "[...] um contacto directo com a sua consciência [da

personagem], os seus pensamentos íntimos, as razões da sua conduta. Segundo este modo, o leitor estaria integrado no espírito da personagem como se esse espírito fosse realmente o seu." (Maria Alzira Seixo,1986:130).

(in)volutárias. As analepses não constitutem meros recuos na lembrança de situações ou pessoas, mas um modo de mostrar como aquelas são vivenciadas no espírito das personagens, sem peias de espaço ou tempo, subordinadas apenas aos ditames de uma focalização omnisciente. Há divergências temporais a partir do momento em que o narrador introduz estas inversões, pois interrompe a sua marcha narrativa para a partir desse ponto preciso deitar um olhar ao passado ou ao futuro. A amplitude deste ângulo de divergência varia consoante a duração dos eventos e pode concretizar-se em incidentes insólitos, imprevistos, histórias fantásticas, efeitos de surpresa que em Tempo de Mercês também têm lugar.

Estamos perante um conto em que a espessura do tempo é tão grande que se pode dizer que o tempo é o tecido mesmo da narração. Não são acontecimentos ou acções que constituem a matéria narrativa, nela se verte, sim, um percurso, comandado pelo narrador através da memória e do imaginário dos protagonistas, em que o passado tem toda a repercussão no presente. Deste modo, podemos afirmar que o texto é estruturado por uma consciência que — ubíqua (dentro e/ou fora da acção) e permanentemente vigilante — está embrenhada no tempo: é um campo percorrido pela confluência e enlace de tempos do passado, do presente e do futuro.

Creio mesmo que, neste conto, o narrador hipostasia o tempo convertendo-o em agente da acção. Esta atitude poderia ser contestada pelo facto de a escritora ser censurada por intelectualizar em demasia a sua experiência do tempo empobrecendo, consequentemente, a sua própria vivência concreta, intuindo-o quase e apenas como um objecto estético. No entanto, quanto a mim, aquela postura permite-lhe captar a essência do tempo, de um modo imediato, e convertê-lo em experiência viva.

O narrador está bem radicado no presente, neste plano usa geralmente o pretérito

imperfeito e o pretérito perfeito simples revelando algum distanciamento relativamente ao

que relata, embora toda a sua atenção se direccione para o passado, mostrando-nos o que daquele se lhe torna actual em cada instante. O tempo passa por ele, daí que não possa isolar-se num determinado nicho da sua existência temporal: nele perpassa uma constante

dialéctica passado-presente, isto é, dos passados que se vêm juntar ao momento preciso de um "agora": um (não) estar, um (não) ser mais ou um já (não) ser.

Tempo de Mercês regista alterações importantes no seu decurso temporal

tendencialmente para o polo do pretérito, com uma profusão de sequências de eventos afastados no tempo e analepses frequentes, com algumas cenas em suspenso. Seria, pois, impossível, tentar submeter a um esquema linear a acção do conto. Este mecanismo da criação do conto manifesta-se fundamental na expressão de uma temporalidade que se desenvolve aparentemente multifacetada. A história surge em planos de tempo diversos, numa atitude de focagem directa e afastada, que correspondem a breves pormenorizações e resumos respectivamente, conforme os factos se avolumam ou não na memória das personagens. Em determinadas situações há pequenas referências que desviam o curso do movimento coordenador da narrativa para outro assunto e consequentemente, para outro plano de tempo. São geralmente desvios, por recordação do protagonista, que enfocam frequentemente o período da adolescência.

A rememoriação dos acontecimentos mais significativos não nos é propriamente narrada, o narrador dá-nos o seu suco, numa tonalidade de inacabado (veja-se o emprego do pretérito imperfeito), o que me conduz a admitir um cruzamento entre o vivido e o vivendo-se, numa tangencia de contornos indefinidos.