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Tempo de Mercês: tempo circular ou espiralar ?

4.4. A desocultação do horizonte temporal

Sendo o conto uma composição textual de desenvolvimento narrativo mais reduzido — obviamente que a extensão do texto é um critério exterior — apresenta, não obstante, uma densidade particular que embora possa ser alcançada em narrações de

grande fôlego, tem a sua manifestação exponencial neste tipo de narrativa14. Não se trata

de uma atitude ou conhecimento minimalistas; a palavra, no conto literário moderno, como que atinge a aproximação à substância última, absoluta, do mundo e da linguagem, entroniza a sua essência e a sua infinita variedade, ou será apenas um aflorar da sua superfície multiforme e inesgotável ? Como as palavras têm múltiplas possibilidades de significação, a resposta do leitor é rica em interpretações imaginativas. Parece-me, de facto, que a força que preside à produtividade referencial da linguagem aufere dimensões imprevistas no conto, mostrando-se este como campo enunciativo exponencial para a realização do discurso fictive

Configurando a ficção como desocultação do horizonte finito do nosso mundo vivido, a figuração — entendida como consciência criadora — é superação e êxtase temporal relativamente a uma perspectiva sempre vindoura: em última análise, o sentido permanece uma possibilidade transcendente, pois que não o possuímos nunca na totalidade. Neste pressuposto, o acto de figuração pode tornar-se numa escolha entre uma transfiguração e uma desfiguração de sentido. A primeira hipótese representa a abertura da obra literária a um amplo universo de sentido(s) que a aura da obra recobre e que extravasa(m) a intenção do autor; no segundo caso, o texto literário exprime-se como presença auto-suficiente cristalizada numa consciência solipsista.

A opção recai claramente na liberdade de transfigurar o texto que nos oferece a descoberta de mundos possíveis e o reconhecimento de que o sentido do texto é, muitas vezes, contíguo às suas referências não ostensivas, ou seja, a autora não se limita a mostrar: aquilo que não é dito é elevado à altura de um símbolo. A transfiguração testemunha, então, a máxima funcionalidade da língua que reside no facto de cada palavra/frase ou conjuntos de palavras/frases visarem, sempre ou eventualmente, uma outra significação. E é, sobretudo, na iniciativa narratológica do homem que a linguagem verbal age sobre o seu referente, construindo uma referência metafórica, através da sua própria

14 Calvino (1990:66) é bem claro na sua opção: "Queria aqui terçar a minha lança a favor da riqueza das

estrutura e não somente nos seus momentos poéticos, embora seja nestes que ela se mostra plenamente metafórica, erguendo-se a metáfora como encarnação reificadora de sentido.

O conto em apreço aparece estruturado em núcleos de tempo justapostos à medida que as recordações surgem no espírito do protagonista, mas mal compartimentados e de difícil reconhecimento uma vez que a personagem central incorpora o seu passado no presente. Contudo, Mateus diferencia-os bem, verificando-se que identifica o carácter de evocação que revestem. Assim, e como vimos no capítulo anterior, os tempos verbais são usados de forma correspondente: o presente é o tempo da actualidade; o passado aparece vertido, de acordo com exigências de duração, no pretérito perfeito simples ou pretérito

imperfeito. O pretérito-mais-que-perfeito simples surge com frequência denotando uma

maior nitidez na demarcação dos tempos, pois sugere distanciamento em relação ao passado. O futuro é de escassas aparições, pois no conto é perspectiva quase nula.

A narrativa orbita em torno de um universo de ausências bipolarizado: o do

passado

"De súbito Mateus sentia-se sem palavras, pior, sem imagens. O vazio e ele às voltas dentro do vazio. [...] Depois, a pouco e pouco, as imagens foram

surgindo, vagas e raras. Lembrava-se de tão pouca coisa !" (p.123)

e o do presente

"O tempo, no entanto, tinha de ser preenchido, o tempo todo ele grandes extensões desoladas ou pequenos espaços vazios" (p.35);

"Estamos sempre na mesma, não há nada a fazer, pois não ?" (p.130).

A impotência e a instabilidade marcam o futuro.

"[Mateus] falava mas já estava ausente, em parte ainda incerta, a caminho de um futuro que ainda não via com nitidez" (p.89).

O passado alcança o presente numa espécie de convergência final, onde não há interstícios por onde passe um feixe de projecção do futuro. Será mesmo assim ?

Estamos perante um conjunto de tempos individualizados, inseridos numa problemática de fundo de relações afectivas exauridas ou por resolver, que se identificam com uma temática da imperfeição/incompletude, do isolamento, que culminam num tempo vindouro que não sobrevem. Uma experiência do tempo vivida na sua passagem angustiante e que deixa um vazio, uma solidão devoluta e amarga, enquadrada num quotidiano insignificante, feito de gente simples e actos anónimos.

As personagens mostram-se fechadas sobre si mesmas, ensimesmadas porque vivem situações de solidão, facto que favorece a cogitação num sentido activo: as personagens questionam-se, ruminam conjecturas, idealizam sonhos e atormentam-se com desideratos frustrados: "Maria Judite de Carvalho pretende acima de tudo que essa sensação de caos interior seja resolvida pelo leitor em ordem a uma integração final dos tempos fragmentários numa sucessão que foi vivida como tal" (Maria Alzira Seixo, 1986:185).

As suas vidas são actos intensamente temporais: as suas consciências são campos percorridos por recordações do passado, impressões do presente e pressentimentos do futuro. Estar sempre sozinho (mesmo no meio dos outros) recupera a própria imagem por autocontemplação, em fases recorrentes que intercalam com fugas de si próprio; daí que repasse a obra de Maria Judite de Carvalho uma relação tumultuosa do "eu" com os "outros", um nunca "saber estar" que ocasiona um fechamento da alma, uma propensão para um profundo intimismo e vida afectiva recôndita.

Assim, é o tempo que irrompe no espaço sem tempo destes seres. E o tempo que vai preencher agora o vazio que enche as personagens e que as vai irmanar com a marca distintiva de uma atracção por coisas obscuras e até ilógicas que encaminha, por vezes, a efabulação para os trilhos de um certo surrealismo.

Da narrativa exsuda um tempo dual, mas não de fronteiras nitidamente marcadas, pois os lugares, os tempos entretecem-se numa corrente que não se detém de uma para outra parte. São tempos interpenetrados e pareceria errado demarcá-los como ciclos separados, porém não se dinamizam reciprocamente — o passado mantém-se o que foi, o

presente é o que é. As personagens não abandonam a sua essência presente para mergulharem numa vivência pungente de eventos ou disposições de espírito passadas. A narrativa é como que retalhada, reflexo das vidas das personagens que aparecem frequentemente estilhaçadas. O que confere alguma coesão, o que tece o fio interior a esses fragmentos é, sem dúvida, o ponto de vista unificante de uma instância narradora.