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A especificidade do conto literário como modo de configuração temporal

2.1. Breve enquadramento histórico

Nos finais do século XIX defende-se o carácter primacial e prescritivo dos géneros literários2, na esteira de um dogmatismo proveniente da Poética neoclássica. O valor

literário e a projecção da obra procedem do grau de aproximação ou distanciamento relativamente à essência do género em que esta se inscreve e da posição por ela ocupada no estádio evolutivo do mesmo.

Já no século XX, e nos antípodas das teorias evolucionistas e deterministas, é adoptada uma classificação de cariz descritivo com base na ideia de que a configuração do género literário é passível de sofrer mutações, cujas raízes se entranham na correlação do processo evolutivo do sistema literário com a dinâmica do sistema social, subdeterminada pela atmosfera do poder e ideologia de uma época.

Na sua ambivalência, o género tanto põe em causa a tradição, como lhe presta homenagem. É essa a sua duplicidade essencial: iconoclasta ou tributário, demolidor ou construtivo, isto é, como "recipiente" legitimador da memória do sistema, como entidade passível de impregnação de grandes experiências modernas alheias de que resulta uma

» Sem enveredar pela complexa amplitude da questão dos géneros literários, concretamente da sua definição julgo importante fundamentar as designações que utilizo. Para tanto recorro a V. Aguiar e Silva que sistematiza o problema da seguinte forma: "A distinção entre modos literários [narrativo, lírico e dramático] entendidos como categorias meta-históricas e os géneros literários [romance, tragedia, farsa, poema, conto, comédia, etc.] concebidos como categorias históricas, parece-nos lógica e semioticamnete fundamentada e necessária." (Aguiar e Silva, 1988:389).

expressão literária intensamente renovada e, paralelamente, sensível às transformações operadas no quadro conceptual e institucional.

Sobre esta problemática Garcia Berrio (1992:134) sustenta: "[...] si en algo coinciden las diversas comentes críticas dei siglo XX es en la aceptación abierta dei concepto de género tanto en su vertiente teórica como, de modo especial, en su aplicación al análisis de las obras literárias. Se viene así a reconocer [...] la radical individualidad de la obra artística pêro ai mismo tiempo la naturaleza cambiante y dialéctica dei género, y la conciliación de lo universal y lo particular". E acrescenta "La riqueza y heterogeneidad de las soluciones aportadas configura un panorama extraordinariamente complejo, en el que son todavia muchas las cuestiones por elucidar" (Garcia Berrio, 1992:230).

Deve-se a Mikhail Bahktine (1975 e 1979) uma das mais célebres reflexões sobre a teoria dos géneros no âmbito do pensamento crítico-literário do nosso século, de que resulta a evidência do enraizamento espácio-temporal do fenómeno literário. O conceito, algo metafórico, de cronótopó3 que aquele estudioso desloca do domínio da biologia e da matemática, onde foi adoptado com base na teoria da relatividade de Einstein, para o domínio literário, vincula-se estreitamente à realidade dos géneros: "En littérature, le chronotope a une importance capitale pour les genres. On peut affirmer que ceux-ci, avec leur hétéromorphisme, sont déterminés par le chronotope [...]. En tant que catégorie de la forme et du contenu, le chronotope établit aussi (pour une grande part) l'image de l'homme en littérature, image toujours essentiellement spatio-temporelle." (Bahktine, 1975:238).

O tempo é definitivamente o princípio dominante na literatura — onde o processo de consciencialização dos índices cronotópicos se revela "complexo e intermitente", pois só é possível assimilar aqueles aspectos espácio-temporais que a evolução do homem histórico permite elaborar, "[...] dans les méthodes de genres correspondants, des procédés pour refléter et traiter dans l'art littéraire des côtés connus de la réalité" (Bahktine, 1975:237).

3 Bakhtine (1975:237) define-o como "[...] ce que se traduit, littéralement par temps-espace: la corrélation

essentielle des rapports spatio-temporels, telle qu'elle a été assimilée par la littérature, [...]. Nous entendrons chronotope comme une catégorie littéraire de la forme et du contenu, sans toucher à son rôle dans d'autres sphères de la culture. Dans le chronotope de l'art littéraire a lieu la fusion des indices spatiaux et temporels en un tout intelligible et concret. Ici, le temps se condense, devient compact [...] tandis que l'espace s'intensifie, s'engouffre dans le mouvement du temps.".

Na literatura moderna, adensa-se uma pesquisa sobre o seu próprio ser que se denuncia como tal "[...] e nessa denúncia reside o essencial objecto da palavra literária moderna. Como não é possível escrever um romance é o objecto de La Recherche e simultaneamente como é possível constituir o real, como o continuum da ilusão. Mas a existência mesma da Recherche mostra que esta extrema suspeita do antigo acto de escrever é a ocasião de uma apoteose da literatura sem precedentes" (Eduardo Lourenço, 1993:41). No fundo, é toda a aventura verbal que a imaginação franqueia: "O que as obras

são (isto é, o contínuo movimento que as constitui) é o resultado, sempre em causa, dessa

errância colectiva da imaginação humana, criadora em permanência de novas configurações porque inventora, ao menos potencial, de um novo ser literário, que redistribui de uma

maneira jamais vista a luz, que nos permitia ver e ordenar o cosmos literário" (Eduardo

Lourenço, 1993:36). E as obras são também a resposta sintonizada com o pulsar mais profundo do momento histórico novo, por isso, estabelece-se, em cada época, um determinado cânone literário que origina um processo dialéctico de emergência/declínio de determinados géneros literários. A literatura de uma época faz e desfaz a das épocas anteriores.

A ficção contemporânea parece percorrer todas as formas conhecidas, reinventando-as, manifestando um certo gosto pelas referências clássicas e até uma certa revivescência de correntes estéticas, "Mas as formas adventícias da escrita ficcional retornam em força [...] formas entre o fictivo e o referencial preciso publicam-se sem necessidade nem desejo de filiação mais ou menos rigorosa num género, compensando-se as formas definidas e muito embora alteradas da novelística com esta marginalidade romanesca com que a escrita em prosa euforiza os seus textos" (Maria Alzira Seixo,

1986a:180-181).

Em Portugal, segundo teóricos como Maria Alzira Seixo e Eduardo Lourenço, não existe um género que se tenha imposto, mas sim "[...] modos de escrita de ficção que se têm tornado correntes com uma insistência que faz deles registos privilegiados do romance português contemporâneo" (Maria Alzira Seixo, 1986a: 178). Esta tendência algo hegemónica do romance parece confluir, porém, em várias práticas da narrativa

contemporânea que vão no sentido de uma dinâmica de miscegenação de modalidades discursivas: "[...] uma marca compósita no cruzamento de discursos de diversas proveniências e de diversos registos" (Maria Alzira Seixo, 1986a: 180).

Segundo a mesma autora, a ficção portuguesa deste século, e em particular a do período actual, atravessa o seu momento mais profícuo, em toda a sua história: "A prática rica e multímoda da ficção portuguesa contemporânea arrisca-se em indefinição por definidas formulações que, mesmo que seja de modo inadvertido, atravessa, duplica ou interroga." (Maria Alzira Seixo, 1986a:8).

Por seu turno, Eduardo Lourenço (1993:283) afirma que "[...] a ficção recente reflecte senão a mesma temática, uma similar recriação do texto cultural, alheio ou nacional, sem referências aos estereótipos facilmente detectáveis, do género novo romance ou realismo mágico ou novo romanesco. Se tivéssemos que descrever o horizonte comum da nova ficção, talvez nenhuma categoria o falhasse menos que a larga mas também específica, de imaginação mítica".

Julgo poder afirmar que no fenómeno literário, como em quase todos os fenómenos culturais, existe uma base conceptual invariável conformadora de formas de expressão, de possibilidades da enunciação e do discurso, decorrente da atitude do homem perante o mundo e perante si próprio. Sob esta última perspectiva, testemunhamos o influxo de coordenadas socioculturais particulares e os condicionalismos de uma memória e/ou tradição literária que igualmente intervêm na dinâmica do sistema.