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1. A NOVA CONCEPÇÃO DE OBRIGAÇÃO

1.4. A funcionalização da relação obrigacional

O conceito clássico de obrigação, que a visualiza apenas como um vínculo jurídico em virtude do qual o credor deverá prestar algo ao devedor, dá ênfase somente ao aspecto externo e estrutural da relação obrigacional, qual seja, o definido pelos seus elementos, os sujeitos, o objeto e o vínculo de sujeição que liga o devedor ao credor, o crédito e a dívida.

Na acepção clássica de obrigação, a análise da função jurídica tem uma importância secundária, surgindo excepcional e pontualmente naquelas hipóteses em que a lei expressamente determinar que o interesse do credor deve ser considerado, como acontece no parágrafo único do artigo 395 do Código Civil, segundo o qual o critério para

94 COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado. Ed. Revista dos Tribunais. p. 394-395.

95 MENEZES Cordeiro, António Manuel da Rocha. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina. 2011. Giovanni Ettore Nanni também afirma que “se na perspectiva clássica a obrigação se esgota no dever de prestar e no correlato direito de exigir ou pretender a prestação, na doutrina moderna ela é compreendida numa acepção globalizante da situação jurídica creditícia, apontando, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários - , os deveres laterais, além de direitos potestativos, sujeições, ônus jurídicos, expectativas jurídicas, etc.” NANNI, Giovanni Ettore. O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio constitucional da solidariedade. In: NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do Código Civil. São Paulo: Atlas. 2008. p. 300.

37 aferir a possibilidade de purgação da mora por parte do devedor reside na manutenção da utilidade da prestação para o credor96.

Contudo, a doutrina mais moderna tem reconhecido a insuficiência de uma análise meramente estrutural da obrigação, destacando que a relação obrigacional também deve levar em consideração as finalidades que as partes perseguem com o adimplemento da obrigação97.

Com efeito, a própria razão para o ordenamento tutelar uma determinada relação obrigacional deve passar pela apreciação da legitimidade das suas finalidades, exigindo-se que o interesse do credor no adimplemento daquela obrigação seja digno de tutela. Não se pode admitir que o devedor concorde em se obrigar a algo se não for para atender a um interesse considerado legítimo e merecedor de tutela à luz do direito98.

Nessa direção Pietro Perlingieri:

L’interesse del creditore è, innanzitutto, indispensabile per la stessa nascita del rapporto. Altrimenti non si giustificherebbe neppure l’imposizione al debitore di un vinculo che ne limiti e ne comprima la libertà; il nostro sistema, infatti, non ne ammette restrizioni, se non in ragione ed in funzione della realizzazione di interessi altrui considerati preminenti.99

Sob essa perspectiva funcional, a relação obrigacional passou a ser vista como um conjunto de deveres – não só os deveres principais, mas também os deveres laterais decorrentes da boa-fé objetiva – impostos às partes para o atingimento da finalidade

96 KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das Relações Obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre Direito Civil. vol II, Rio de Janeiro: Renovar. 2007. p. 267.

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KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das Relações Obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre Direito Civil. v. II, Rio de Janeiro: Renovar. 2007. p. 267.

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KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das Relações Obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. v. II. Rio de Janeiro: Renovar. 2007. p. 267.

99 PERLINGIERI. Manuale di diritto civile. Napoli: ESI, 1997, p. 348. Em tradução livre: “O interesse do credor é antes de tudo fundamental para o nascimento da relação obrigacional. Caso contrário, não se justifica nem mesmo a imposição ao devedor de um vínculo que limite ou comprima a liberdade; nosso sistema, na verdade, não admite restrições, se não em razão e em função da realização de interesses outros considerados primordiais.”

38 buscada por meio da relação obrigacional, consistente na satisfação do interesse do credor.

É essa finalidade comum buscada pelas partes que confere unidade a todos os direitos, deveres e situações jurídicas que compõem a relação obrigacional.

A esse respeito, Fernando Noronha afirma que “os elementos constitutivos da relação obrigacional não são suficientes para termos uma ideia perfeita desta. Para cabal compreensão do conceito de obrigação, é preciso ter em conta para que esta serve. Todo direito tem uma função, ou finalidade, que justifica a sua existência e tutela jurídica”, concluindo que “a finalidade da obrigação é a satisfação de um interesse do credor, mas que tem de ser legítimo, isto é, sério e útil”100.

Nessa linha, é possível afirmar que a relação obrigacional compreende variados poderes e deveres de ambas as partes, que se vão constituindo ao longo da relação obrigacional como algo que se “encadeia e se desdobra em relação ao adimplemento, à satisfação dos interesses do credor”101

.

Nas palavras de Karl Larenz:

[...] por el hecho mismo de que en toda relación de obligación late el fin de la satisfacción del interés en la prestación del acreedor, puede y debe considerarse la relación de obligación como un proceso. Está desde un principio encaminada a alcanzar un fin determinado y a extinguirse con la obtención de este fin.102

À luz dessa visão funcionalizada da relação obrigacional, a obrigação deixa de ser concebida com um fim em si mesmo e passa a ser vista como “um meio, um instrumento técnico-jurídico criado por lei ou predisposto pelas partes para a satisfação de

100 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. v. I. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 36.

101 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2006. p. 17. 102

LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. tomo I. Trad. de Jaime Santos Briz, Madrid: Editora Revista de Derecho Privado. 1958. p. 39. Em tradução livre: “[...] pelo fato de que toda a relação obrigacional tem como fim a satisfação do interesse do credor, a relação obrigacional pode e deve ser considerada como processo. Está desde o início encaminhada a alcançar um fim determinado e a extinguir-se com a obtenção desse fim.”

39 certo interesse”103

. Afirma-se que a obrigação passa a ser valorada, na sua essência, “como um instrumento de cooperação social para a satisfação de certo interesse do credor”104

.

A doutrina moderna entende, assim, que a “relação obrigacional está colimada à satisfação do interesse do credor, nela encontrando o seu sentido final e existencial” e que a obrigação “nasce para satisfazer o mais completa e adequadamente o interesse do credor na prestação”105

. Todavia, a afirmação de que a obrigação nasce para satisfazer o interesse do credor não quer dizer que a funcionalização da relação obrigacional importa em desconsideração absoluta do interesse do devedor, conforme observa Pietro Perlingieri:

L´attuazione del rapporto obbligatorio, oltre all’interesse del creditore, “può” realizzare anche interessi giuridicamente rilevanti del debitore. Ovviamente una considerazione prioritaria e prevalente deve essere riservata all’interesse creditore [...].106

Entendemos que deve ser interpretada com reservas a orientação clássica segundo a qual a obrigação teria na satisfação do interesse do credor o seu escopo e a sua única razão de ser. É mais apropriado afirmar que a funcionalização da relação obrigacional impõe o seu reconhecimento como mecanismo de satisfação do interesse das partes, embora o interesse do credor assuma posição mais relevante na maioria dos casos. A concepção moderna de obrigação amplia o espectro de interesses que devem ser satisfeitos com a relação obrigacional, de modo a abarcar os interesses legítimos perquiridos por ambas as partes107.

Fernando Noronha realiza preciosa síntese sobre a questão:

103

VARELA, João de Mattos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina. 1970. p. 20.

104 KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das relações obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação. Diálogos sobre Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. V. II, Rio de Janeiro: Renovar. 2007. p. 267.

105

SILVA, João Calvão da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. Coimbra: Livraria dos Advogados Editora. 1987. p. 67.

106 PERLINGIERI. Manuale di diritto civile. Napoli: ESI. 1997. p. 220. Em tradução livre: “A relação obrigacional, além do interesse do credor, ‘pode’ realizar também interesses do devedor juridicamente relevante. Obviamente, deve-se ter em consideração prioritária e prevalente o interesse do credor [...]”. 107 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 23.

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Toda ação humana visa uma finalidade. A obrigação também tem uma: a satisfação de um interesse legítimo do credor. [...]

As obrigações, porém, não têm por finalidade realizar unicamente uma finalidade individual, egoística, do credor; ao lado desta, qualquer obrigação, na medida em que é objeto de tutela jurídica, tem também uma finalidade social, porque toda norma jurídica visa ‘fins sociais’ e atende ‘exigências do bem comum’, como ficou expresso no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (até 2010 designada de Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro). Ora, se conjugarmos esses dois objetivos, individual e social, poderíamos dizer que toda obrigação tem de satisfazer um interesse legítimo do credor.

[...] é preciso ter presente que na maioria das relações obrigacionais (e em especial nas nascidas dos contratos chamados de bilaterais: cf. art. 476) existem duas partes, que são, uma em relação à outra, simultaneamente parte credora e parte devedora. Nestes casos, haverá que considerar os interesses legítimos de ambas as partes.108

É essa análise funcional e finalística que deverá orientar todo o desenvolvimento da relação obrigacional, desde a sua formação até a sua extinção, servindo de parâmetro para a valoração do comportamento das partes – que, pela cláusula geral da boa-fé objetiva, são chamadas a colaborarem mutuamente para a plena realização dos seus interesses – e para uma releitura dos conceitos e institutos do direito obrigacional.