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1. A NOVA CONCEPÇÃO DE OBRIGAÇÃO

1.5. O alargamento do objeto da obrigação

Prevalece na doutrina a concepção personalista da obrigação, de acordo com a qual o objeto da obrigação consiste sempre em um ato humano, em uma prestação-

comportamento109. Na doutrina tradicional, o objeto da obrigação consiste no comportamento do devedor que executa a prestação principal e, por via de consequência, o credor tem direito a exigir o comportamento do devedor relacionado ao dever de prestação principal. No entanto, essa definição tradicional de prestação não está alinhada com a atual concepção de obrigação porque restringe o comportamento do devedor exclusivamente à realização da prestação principal110.

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NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. v. I. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 40.

109 Fernando Noronha afirma que “a prestação debitória é a conduta ou comportamento do devedor, a atividade ou abstenção de atividade que é essencial para a realização do interesse do credor. Antunes Varela [VARELA, João de Matos Antunes. Direito das obrigações. 2v. São Paulo: Forense. 1977-1979.] caracteriza-a muito bem como ‘a ação ou omissão a que o devedor fica adstrito e que o devedor tem o direito de exigir’”. NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. v. I. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 55.

110 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 51-52.

41 Como analisado no item anterior, a relação obrigacional não constitui um fim em si mesmo, a sua razão de ser consiste na satisfação dos interesses das partes, mais concretamente no interesse do credor111. Desta maneira, sob o ponto de vista do credor, o comportamento do devedor (a prestação) não é desejado em si mesmo, mas apenas como instrumento de realização do seu interesse. Destaca-se, assim, o caráter instrumental que é atribuído à obrigação do devedor.

Conforme observa Rosario Nicoló:

[...] si sottolinea, d´altra parte, la funzione essenzialmente strumentale che è assegnata all´obbligo del debitore rispetto alla realizzazione dell’ interesse del creditore, dal punto di vista strettamente giuridico, e non soltanto da quello economico-sociale.112

Prevalece na doutrina atual que “toda obrigação se volta a proporcionar, com o adimplemento, o resultado útil que consubstancia a satisfação do interesse do credor”113

. Daí entender-se que o objeto da obrigação passa a ser visto como o comportamento do devedor dirigido à realização do interesse do credor, que se alcança por meio do atingimento do resultado útil esperado de uma determinada relação obrigacional. Assim, ao credor impõe-se “a realização do plano obrigacional concretamente traçado pelas partes”, para proporcionar ao credor “o resultado útil programado”114

.

O interesse que a prestação deve satisfazer é o interesse típico e concreto115, isto é, aquele interesse que as partes negociaram, regularam e pretenderam alcançar por

111 NORONHA, Fernando, Direito das obrigações. v. I. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 39.

112 NICOLÒ, Rosario. Adempimento (diritto civile). Enciclopedia del diritto. v. I, Varese: Giuffrè. p. 555. Em tradução livre: “sublinha-se, por outro lado, a função essencialmente instrumental que é atribuída à obrigação do devedor para com a realização do interesse do credor, do ponto de vista estritamente jurídico, e não somente econômico-social.”

113 KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das relações obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. v. II, Rio de Janeiro: Renovar. 2007. p. 273.

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TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 53.

115 Sobre o tema, Judith Martins-Costa assim se pronuncia: “Trata-se de um interesse objetivado, e de uma utilidade objetiva, que devem ser recortados à vista da operação econômica em causa, é dizer: do que as partes dispuseram no comum regulamento de interesses, cabendo ao juiz apreender o interesse e a utilidade com base na natureza da prestação e das regras comuns da experiência (CPC, art. 335)”. COSTA, Judith Martins. O fenômeno da supracontratualidade e o princípio do equilíbrio: inadimplemento de deveres de

42 meio de uma relação obrigacional específica. A prestação deve ser objetivamente idônea a satisfazer o interesse típico e concreto do credor naquele vínculo contratual específico.

Afirma-se que o interesse que deve ser satisfeito se relaciona intimamente com o fim do negócio jurídico, concebido a partir da teoria da causa concreta116 e do fim objetivamente perseguido pelo credor no negócio jurídico em concreto, que deve ser perceptível à outra parte. A análise da satisfação do interesse do credor impõe o exame do fim que o credor buscou com aquele tipo contratual específico e com aquela relação obrigacional em concreto. A desatenção a esse fim poderá tornar o “adimplemento insatisfatório e imperfeito”117

.

A título de exemplo, mencione-se o caso do comerciante que contrata a fabricação e colocação de letreiro luminoso para efeitos de publicidade (divulgação do seu produto), cujo interesse claramente abrange a instalação de anúncio em local adequado à sua finalidade, ou seja, em local de intenso tráfego. Na hipótese da contraparte fabricar o anúncio conforme contratado, mas instalá-lo em local pouco frequentado, o anúncio terá reduzido ou nenhum reflexo na venda do produto. Nesse caso, a empresa contratada não poderá considerar o adimplemento como satisfatório, apesar da convenção não determinar

proteção (violação positiva do contrato) e deslealdade contratual em operação de descruzamento acionário. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, n. 26, abr./jun. 2006, p. 224.

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Segundo Antônio Junqueira de Azevedo, o termo “causa” possuí mais de um significado. Causa, no campo dos negócios jurídicos, pode significar causa-fato jurídico (causa efficiens); o motivo, quer psicológico (causa impulsiva), quer objetivo (causa-justa-causa); a causa da juridicidade dos atos jurídicos (civilis ou naturalis); a causa de atribuição patrimonial (ou de atribuição de direitos); e a causa do negócio jurídico (causa finalis). Com relação ao significado de causa final, o autor complementa que há uma duplicidade de sentidos: “No significado de causa final, há, porém, ainda, uma duplicidade. Se se adota a concepção de Capitant, ou outra próxima, em que causa é o fim que resulta objetivamente do negócio, a causa do negócio é a ‘causa concreta’, o fim de cada negócio individualizado. Se se adota a concepção de causa-função, trata-se da ‘causa abstrata’, causa típica. Ora, por uma questão de clareza, é preferível deixar a expressão causa final reservada a somente um desses significados, de preferência o último, em que a palavra ‘causa’ está mais generalizada e onde é de mais difícil substituição. No outro significado, a causa concreta é, na verdade, o ‘fim do negócio jurídico’. Esta é a melhor expressão”. Para um estudo mais detalhado acerca da questão, vide: AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação de declaração negocial. Tese apresentada para obtenção de título de professor titular da Universidade de Direito do Largo São Francisco. São Paulo. 1986. p. 121-129.

43 especificamente onde o anúncio deveria ser colocado, porque não foi satisfeito o interesse do credor com aquela relação obrigacional.118

Acrescente-se que a doutrina atribui relevância à finalidade perseguida pelo credor do ponto de vista objetivo, afastando do conceito de interesse os motivos íntimos e arbitrários que levaram o credor a estabelecer uma determinada relação jurídica, uma vez que esses normalmente não se manifestam de uma forma socialmente visível119. Clóvis do Couto e Silva menciona, inclusive, que o interesse que deve ser satisfeito não é “algo psicológico, mas [...] um plus que integra o fim da atribuição e que está com ele intimamente relacionado”120

, ou seja, que está vinculado com o fim do negócio jurídico.

Diante desse cenário, conclui-se que o objeto da obrigação não é mais algo em si, mas algo que passa a ter uma função, consistente na satisfação do interesse típico e concreto do credor naquele vínculo contratual específico, do resultado útil programado121. A prestação passa, assim, a ser vista sob uma perspectiva funcionalizada e finalística.

A esse respeito, é importante destacar que o fato da prestação passar a ser entendida como o comportamento do devedor dirigido à realização do interesse típico e concreto do credor – visão funcionalizada – conduz à necessária reavaliação do comportamento do devedor e, consequentemente, à alteração e ao alargamento da estrutura do objeto obrigacional.

A execução da prestação principal, por si só, passa a não ser considerada capaz de atender ao interesse objetivo e concreto do credor. A sua satisfação pressupõe, igualmente, uma “colaboração intersubjetiva” e a observância dos deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva, que exige do devedor “todos os comportamentos razoáveis

118 O exemplo é de SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2006. p. 41.

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No mesmo sentido, concluiu-se na III Jornada de Direito Civil, realizada pela Câmara de Constituição e Justiça, em novembro de 2004, em seu enunciado 162: “A inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor.”

120 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2006. p. 41. 121 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil à luz do novo Código Civil brasileiro. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2003. p. 94.

44 para a efectiva satisfação do interesse do credor, não se contentando, simplesmente, com um cumprimento meramente formal”122.

Somente o comportamento do devedor dirigido concomitantemente à execução da prestação principal, bem como dos deveres de conduta anexos impostos pela boa-fé objetiva, permitirá a plena satisfação do interesse objetivo e concreto do credor e o atingimento do resultado útil programado. Nesse sentido, passa-se a entender a prestação como uma prestação satisfativa123.

A funcionalização do objeto da prestação acaba por alterar a sua estrutura. Como a prestação deve ser capaz de realizar perfeitamente o interesse do credor e esse interesse não se satisfaz somente com a realização do dever principal de prestação, os deveres de conduta impostos pela boa-fé devem ser incluídos na estrutura do objeto da relação obrigacional. Assim, o objeto da obrigação passa a ser determinado pela vontade das partes, pela sistemática obrigacional e pelo princípio da boa-fé objetiva.

Destaque-se que a ampliação do objeto da obrigação não importa em multiplicidade de prestações. Apesar das diversas condutas que integram a prestação (decorrentes do dever primário de prestação e dos deveres de conduta anexos impostos pela boa-fé), ela se apresenta como uma unidade, haja vista que apenas o comportamento formado pelo conjunto de condutas devidas é capaz de produzir o resultado útil programado124.

A funcionalização do objeto da prestação (busca pelo resultado útil programado) assegura, assim, a unidade da prestação. Por exemplo, em um contrato de distribuição, além do dever principal de distribuir as mercadorias em uma determinada área por um determinado período, o distribuidor também terá os deveres acessórios de divulgar a sua marca, ampliar o market share do produto naquela área, armazenar os produtos até a

122 MENEZES CORDEIRO, António. Direito das obrigações. v. I, reimp. 1980. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa. 2001. p. 148-149.

123

TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 64.

124 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 64.

45 sua efetiva revenda, transportá-los até os seus clientes e revendedores, etc. No entanto, apesar de serem exigidas do devedor uma série de condutas, tem-se que é única a prestação devida pelo devedor, consistente na distribuição das mercadorias.

Acrescente-se que a prestação é una ainda que a execução do dever de prestação abranja várias operações materiais. É possível que, no iter do desenvolvimento da relação obrigacional, exija-se do devedor a execução de uma série de atos que devem ser executados (ou omitidos) para que a prestação seja adimplida e o interesse do credor seja satisfeito. Existe, nesses casos, um conjunto de deveres instrumentais que objetivam viabilizar o adimplemento.

A satisfação dos interesses do credor “exige não apenas a conduta final de execução do vínculo, mas antes, e com a mesma veemência, exige as condutas adequadas ao preparo e viabilização da fase conclusiva da prestação satisfativa”125

. Por exemplo, o empreiteiro que se obriga a construir um edifício se obriga também a construir a rede de esgotos, preparar a instalação elétrica, atestar a qualidade dos materiais que serão utilizados na construção, etc.

Em suma, a incidência de deveres de conduta na relação obrigacional acarretou o alargamento do objeto da obrigação, que não pode mais ser concebido apenas como o comportamento do devedor que executa a prestação principal. Em seu lugar, consolida-se a ideia de que o objeto da prestação abarca tanto os deveres de prestação (principal e secundários) como os deveres laterais decorrentes da boa-fé objetiva.

Nesse sentido, somente o comportamento do devedor que observa e cumpre todos esses deveres é capaz de realizar a função do objeto da obrigação: a satisfação do interesse objetivo e concreto do devedor. Outrossim, apesar de diversos os deveres impostos ao devedor, a prestação continua a ser uma unidade, e apenas o comportamento que execute todos os deveres será capaz de produzir o resultado útil programado.

125 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. p. 65-66.

46 Feita essa análise sobre a moderna concepção de obrigação como um processo, passaremos a examinar quais alterações foram promovidas nos tradicionais conceitos de adimplemento e inadimplemento.