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1. A NOVA CONCEPÇÃO DE OBRIGAÇÃO

1.8. O inadimplemento contratual

1.8.1. A noção de inadimplemento

O artigo 389 do Código Civil179 (assim como o artigo 1.056 do Código Civil de 1916180) trata do inadimplemento por seus efeitos, não cuidando de descrevê-lo ou conceituá-lo. A doutrina tradicionalmente conceituou inadimplemento como “o oposto de

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NEIRA, Lilian C. San Martín. Sobre la naturaleza jurídica de la ‘cooperación’ del acreedor al cumplimiento de la obligación. La posición dinámica del acreedor en la relación obligatoria, como sujeto no sólo de derechos, sino también de cargas y deberes. Revista de Derecho Privado, nº 21, p. 208-282, Julio- Diciembre, 2011. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1964700. p. 289.L>. Acesso em: 10 nov. 2014. 179

“Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e correção monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”

180 “Art. 1.056. Não cumprindo a obrigação, ou deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde o devedor por perdas e danos.”

63 adimplemento”, para “significar o não cumprimento daquilo a que se está obrigado, dentro do prazo convencionado”.181

O gênero inadimplemento foi definido como “o não cumprimento da obrigação, nos devidos tempo, lugar e forma”182.

Nesse sentido, Almeida Costa afirma que “verifica-se o não cumprimento, incumprimento ou inadimplemento de uma obrigação sempre que a respectiva prestação debitória deixar de ser efectuada nos termos adequados”. No entanto, o próprio autor adverte que “este conceito representa, todavia, um simples ponto de partida, visto que na sua moldura genérica se incluem várias situações com efeitos jurídicos muito diversos”183.

Em linhas gerais, inadimplemento indica o não cumprimento, (a) pelo devedor, das normas que impõem a obrigação de prestar ao credor no tempo, lugar e forma que a lei ou contrato estabelecer; e (b) pelo credor, das normas que impõem o recebimento da prestação, também no tempo, lugar e forma que a lei ou o contrato estabelecer.184 O conceito de inadimplemento está, portanto, sempre associado ao não cumprimento de obrigações.

Neste ponto, cumpre observar que a noção de inadimplemento não poderia permanecer inalterada diante das alterações sofridas no direito das obrigações. Se adimplemento e inadimplemento se conectam logicamente e funcionalmente, é inevitável, diante das ponderações anteriores, reler a disciplina do inadimplemento à luz da nova concepção total, dinâmica e funcional do direito das obrigações.

Como discutido nos itens anteriores, o foco da concepção tradicional de adimplemento se volta para o cumprimento da prestação principal. A contrario sensu, o inadimplemento é normalmente conceituado como a inexecução da obrigação principal, a “significar pura e simplesmente que a prestação não é realizada tal como era devida”185

. As noções de adimplemento e de inadimplemento tradicionalmente estão associadas à análise

181 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2005. p. 719. 182

LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 231.

183ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Noções de direito civil. Coimbra: Livraria Almedina. 1980. p. 219. 184 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2004. p. 82. 185 TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das obrigações. Coimbra: Coimbra Editora. 1983. p. 260.

64 do cumprimento ou descumprimento da prestação principal nos termos em que foi pactuada entre as partes186.

Todavia, a ampliação do conceito de adimplemento, diante dos deveres de conduta impostos ao devedor, implica, na mesma medida, no alargamento da noção de inadimplemento. Assim, se para o devedor ser considerado adimplente se impõe a observância não apenas do dever principal de prestação, mas também dos deveres anexos decorrentes da boa-fé, isso significa dizer que se considera inadimplente o devedor que não cumpre o dever principal de prestação, os deveres secundários ou os deveres de conduta impostos pela sistemática obrigacional.

Confiram-se, abaixo, os comentários de Jorge Cesa Ferreira da Silva acerca do tema:

A obrigação abrange, pois, deveres de prestação e de conduta – os chamados deveres laterais – e interesses do credor e do devedor (cf. Jorge Cesa Ferreira da Silva, op. Cit., p. 75 ss.). E se é verdadeiro que se tem por adimplida a obrigação que concretiza os interesses legítimos (ativos e passivos) nela envolvidos e dela decorrentes, não menos certo é que por inadimplemento se deve entender o não- cumprimento ou inobservância por uma das partes de qualquer dever emanado do vínculo obrigacional. O inadimplemento, assim, não se limita à prestação e nem aos deveres exclusivamente a ela relacionados.187

Com efeito, ao se considerarem os deveres laterais decorrentes do princípio da boa-fé objetiva como integrantes da relação jurídica e do objeto da obrigação, ampliou-se o próprio conceito de inadimplemento, que poderá ser ocasionado não só pela quebra dos deveres de prestação, mas também pela violação dos deveres laterais antes, durante e depois da celebração do negócio jurídico. Em sentido amplo, portanto, inadimplemento significa a não realização da prestação devida, com a consequente insatisfação do credor, e não o mero descumprimento da prestação principal188.

186 SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento. Adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 32, out./dez 2007, p. 8.

187 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. p. 31.

65 A doutrina atualmente conceitua inadimplemento (em sentido amplo) como “a situação objectiva de não realização da prestação debitória, independentemente da causa de onde ela procede”189. Observe-se, todavia, que nem sempre que a prestação deixa de ser efetuada há inadimplemento. Pode suceder, por exemplo, de o direito do credor prescrever ou dele remitir (perdoar) a dívida, ou haver confusão das figuras do devedor e do credor.

Desta feita, somente estará caracterizado o inadimplemento quando, não tendo sido extinta a obrigação por outra causa, a prestação não é efetuada, nem pelo devedor, nem por terceiro. A esse respeito, Antunes Varela assevera que o inadimplemento “pode assim definir-se, com maior propriedade, como a não realização da prestação debitória, sem que entretanto se tenha satisfeito (por outra via) o direito do credor ou cumprido o dever de prestar a cargo do obrigado”190

.

É importante observar que essa concepção ampla de inadimplemento abrange todos os casos em que a prestação devida não é realizada pela outra parte contratante (exemplo: o livro que A deveria entregar para B não existe mais), independentemente da causa do descumprimento da obrigação, isto é, sendo ela imputável ao devedor (exemplo: A, que brigou com B, queima o livro, exemplar único) ou não imputável (exemplo: a biblioteca de A, onde guardado o livro na espera da chegada do tempo em que, pelo contrato, deveria prestar, sofre uma inundação, consequente à excepcional enchente que atingiu o local onde localizada, destruindo todos os livros ali guardados)191.

Conforme observa Antunes Varela192, em determinadas situações, o inadimplemento decorre de fato imputável ao devedor (exemplo: A vende para C o automóvel que havia se comprometido a vender para B). Outras vezes, o inadimplemento procede de fato de terceiro (exemplo: C bate e causa a destruição total do automóvel que A havia se comprometido a vender para B), de caso fortuito ou força maior (exemplo: caí um raio sobre o veículo que A havia se comprometido a vender para B), da própria lei (que proíbe, por hipótese, a realização do negócio jurídico prometido) ou até do credor (que se

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VARELA, João de Mattos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1970. p. 734. 190 VARELA, João de Mattos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1970. p. 735. 191 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2004. p. 82-83. 192 VARELA, João de Mattos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina. 1970. p. 735.

66 recusou a cooperação indispensável à realização da prestação). No entanto, como os efeitos de uma ou outra situação são totalmente diversos, é preciso buscar uma definição estrita de inadimplemento.

É por essa razão que a doutrina costuma diferenciar as modalidades de inadimplemento quanto à sua causa: inadimplemento imputável ao devedor e inadimplemento inimputável (não imputável) ao devedor193. No primeiro caso, a inexecução da obrigação decorre de ato ou fato atribuível ao devedor; no segundo caso, a inexecução decorre “de fato necessário, que o devedor não pode evitar ou impedir”194. São exemplos de causas de inadimplemento não imputáveis ao devedor aquelas situações em que a impossibilidade superveniente da prestação “derive, quer de facto do credor, quer de caso fortuito ou de força maior”195

.

A esse respeito, Luis Diez-Picazo e Antonio Gullon comentam que:

En principio, lo normal es que la imputabilidad y la responsabilidad de la infracción del derecho de crédito se examinen respecto del deudor. Sin embargo, cabe también la posibilidad de que el impedimento o el obstáculo puesto a la prestación o al logro de una plena satisfacción a través de la misma haya serle imputado al acreedor o incluso a un tercero ajeno a la obligación o, en fin, que no le pueda ser imputado a nadie, por obedecer a un hecho fortuito, inevitable e imprevisible.196

Judith Martins-Costa também sistematiza de maneira precisa a questão:

A summa divisio em matéria de inadimplemento é a que discerne entre a sua causa, isto é, se a prestação devida não se realizou por fato imputável ao devedor ou por fato não imputável do devedor. Como o exame da imputabilidade resta melhor situado no comentário ao art. 396, basta, por ora, fixar que só no caso do incumprimento imputável existe um verdadeiro e característico não-

193 VARELA, João de Mattos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina. 1970. p. 735.

194 GOMES, Orlando. Obrigações. Revista, atualizada e aumentada, de acordo com o Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense. 2005. p. 170.

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ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Noções de direito civil. Coimbra: Livraria Almedina. 1980. p. 228. 196 DIEZ-PICAZO, Luis e GULLON, Antonio. Sistema de derecho civil. v. II. Madrid: Editorial Tecnos. 1978. p. 166. Em tradução livre: “Em princípio, o normal é que a imputabilidade e a responsabilidade pela infração ao direito de crédito sejam examinadas em relação ao devedor. No entanto, também é possível que o impedimento ou obstáculo à prestação ou à plena satisfação seja imputado ao credor ou mesmo a um terceiro estranho à obrigação ou, por fim, que não possa ser atribuído a ninguém, por decorrer de um caso fortuito, inevitável e imprevisível.”

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cumprimento. Quando não-imputável, teremos uma hipótese de impossibilidade e o efeito será extintivo da relação obrigacional.197

Assim, quando há o inadimplemento de uma obrigação, duas hipóteses podem ocorrer: ou o inadimplemento é inimputável ao devedor, e resulta simplesmente a extinção da obrigação e o retorno das partes ao status quo, sem outras consequências, nos termos do artigo 393 do Código Civil198, salvo se a parte tiver assumido contratualmente a responsabilidade por atos ou fatos que não lhe sejam imputáveis; ou o devedor é responsável pelo não cumprimento da obrigação199, e então cabe ao credor invocar a aplicação dos efeitos previstos no artigo 389 do Código Civil200.

Diante dessa diferenciação entre as modalidades de inadimplemento quanto à sua causa, afirma-se que inadimplemento não é a simples ausência de cumprimento da prestação devida. Inadimplemento em sentido estrito constitui a não realização da prestação devida, enquanto devida, na medida em que essa falta de cumprimento corresponde à violação de norma legal, convencional ou imposta pelos usos e costumes, que era especificamente dirigida ao devedor, cominando o dever de prestar ou, ao credor, cominando o dever de receber e o dever de colaborar para o adimplemento201.

Portanto, o inadimplemento que acarreta os efeitos previstos no artigo 389 do Código Civil (pagamento de perdas e danos, juros, correção monetária e honorários de

197 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2004. p. 147. No mesmo sentido, Almeida Costa assevera que “[...] as várias causas do não cumprimento produzem diferentes consequências jurídicas: enquanto que umas determinam a pura extinção do vínculo obrigacional, outras constituem o devedor em responsabilidade indemnizatória e conduzem à realização coactiva da prestação; e outras, ainda, deixam basicamente inalterado o vínculo obrigacional, sem agravarem a responsabilidade do devedor, podendo até verificar-se um direito de indemnização deste contra o credor. Daí porque a nossa lei discipline, em separado, a impossibilidade do cumprimento e mora não imputáveis ao devedor (arts. 790 a 797), a falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor (arts. 798 a 812), e a mora do credor (arts. 813 a 816)”. ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Noções de direito civil. Coimbra: Livraria Almedina. p. 220-221. 198 “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”

199 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. II. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005. p. 323.

200 Conforme observa Pontes de Miranda, “o ônus da prova da não-imputabilidade toca ao devedor”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. tomo XXIII. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 256.

68 advogado) – que será doravante denominado inadimplemento em sentido estrito – é o inadimplemento da prestação devida, enquanto devida a prestação.