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Modalidades de inadimplemento (classificação conforme os efeitos)

1. A NOVA CONCEPÇÃO DE OBRIGAÇÃO

1.8. O inadimplemento contratual

1.8.3. Modalidades de inadimplemento (classificação conforme os efeitos)

A doutrina costuma classificar o inadimplemento conforme os seus efeitos em inadimplemento absoluto e mora. Em linhas gerais, o critério distintivo dessas duas espécies de inadimplemento reside “na possibilidade ou não de receber a prestação”231

, sendo que a possibilidade ou impossibilidade deve ser reconduzida ao credor e à sua utilidade para ele.

Genericamente, é possível afirmar que o inadimplemento absoluto ocorre quando há o descumprimento definitivo da obrigação, seja por ter se tornado impossível a prestação, seja por ter se tornado inútil ao credor. A mora (ou inadimplemento relativo), por sua vez, se verifica quando, embora a prestação não tenha sido executada pelo devedor no tempo, no lugar e na forma convencionados, ela ainda é possível e útil ao credor. Passar-se-á, agora, a analisar com maiores detalhes os conceitos de inadimplemento absoluto e mora.

1.8.3.1 Inadimplemento absoluto: caracterização e efeitos

231 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda. 1949. p. 45.

77 Há inadimplemento absoluto quando a prestação devida, após o surgimento da obrigação, não puder mais ser realizada ou, podendo sê-lo, não mais interessa ao credor232. A prestação é, portanto, irrecuperável.233 Duas são as circunstâncias que conduzem ao inadimplemento absoluto: a prestação que se tornou, objetivamente, impossível; ou a prestação que, embora possível, não é mais capaz de realizar os interesses objetivos do credor234.

É hipótese de impossibilidade da prestação “quando esta não for realizável, em razão de barreiras de ordem física ou jurídica, seja por ter perecido, seja por exigir esforços extraordinários, injustificáveis em face das circunstâncias do vínculo concreto”235

. Como exemplo da primeira hipótese de inadimplemento absoluto pode-se citar o caso de uma pessoa que se comprometeu a entregar um determinado cavalo de raça em data futura, mas que se viu impossibilitada de cumprir a obrigação porque o animal contraiu uma grave enfermidade, que poderia ter sido evitada se o animal tivesse sido adequadamente vacinado, e que culminou na sua morte. Neste exemplo, o objeto da prestação pereceu e, assim, a prestação não poderá ser cumprida definitivamente.

232

Nesse sentido, Judith Martins-Costa: “O incumprimento definitivo significa que a prestação, que não foi prestada como devida não poderá mais sê-lo. Embora a doutrina costume subsumir todas as hipóteses em que a prestação não mais poderá ser cumprida na mesma etiqueta – ‘incumprimento definitivo’ – a verdade é que podemos divisar diferentes causas para essa definitividade da não prestação: ou a impossibilidade, ou a perda do interesse do credor, por inútil, então, a prestação.” MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2004. p. 148. Confiram-se também as lições de Almeida Costa: “A primeira hipótese – também designada por inadimplemento propriamente dito ou impossibilidade definitiva – ocorre quando a prestação, que ficou por cumprir na altura própria, não pode mais ser efectuada, tendo-se tornado impossível. Exemplificamos: A obriga-se para com B a entregar-lhe o objecto X, que perece; C não cumpre a obrigação que assumira de fornecer a D um banquete no dia Y, em que se celebrou o casamento da filha deste. Tanto num caso como no outro a obrigação não foi cumprida nem poderá vir a sê-lo. No segundo exemplo, a impossibilidade do cumprimento resulta de ter desaparecido o interesse do credor.” ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Noções de direito civil. Coimbra: Livraria Almedina. 1980. p. 219. James Eduardo de Oliveira afirma que “o inadimplemento absoluto representa um gole fatal que rompe de forma incontornável a relação contratual”. OLIVEIRA, James Eduardo de. Inadimplemento relativo e inadimplemento absoluto. In: ANDRIGHI, Fátima Nancy (Coord.). Responsabilidade civil e inadimplemento no direito brasileiro. São Paulo: Atlas. 2014. p. 179.

233 A expressão é de ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2004. p. 102.

234

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide. 1991. p. 94-95.

235 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. p. 36.

78 A doutrina adota um conceito jurídico – e não lógico – de impossibilidade236, segundo o qual “o dever de prestar não pode ser exigido além de um limite razoável”237

e se admite como impossível a prestação cujo cumprimento exija do devedor esforço extraordinário e injustificável.

Orlando Gomes, valendo-se das lições de Hedemann238, afirma que o conceito de impossibilidade abrange a impossibilidade jurídica “stricto sensu” (é juridicamente impossível a prestação cujo cumprimento for obstado por proibição legal); a inexigibilidade econômica (a prestação que exige do devedor gasto absurdo, que o sacrifica inteiramente, sujeitando-o à perda material intolerável) e a inexigibilidade psíquica (prestação que para ser cumprida exige que o devedor se exponha a exagerado risco pessoal ou o obrigue a suportar intolerável constrangimento moral)239.

Acrescente-se que a impossibilidade pode ser superveniente ao nascimento da obrigação ou pode estar presente ao tempo de sua constituição, caso em que a prestação desde o início não poderia ser fática ou juridicamente realizada. Para o estudo da teoria do inadimplemento somente interessa a impossibilidade superveniente, na medida em que a

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No que tange aos sentidos da palavra impossibilidade, J. W. Hedeman assevera que “Dos teorías se muestran como contrapuestas, de las cuales la segunda ha adquirido con el tempo un predominio absoluto. La primera arranca del concepto lógico (físico) de la ‘imposibilidad’; por lo tanto, no habla de imposibilidad en tanto alguien pueda cumplir la prestación de cualquier modo que sea, incluso con las mayores dificultades y desproporcionados sacrificios. La otra teoría opone a este concepto lógico de la imposibilidad un ‘concepto jurídico’ de la misma, que es más flexible, y conduce a la interpretación del contrato oponiendo a la valoración lógica la razón práctica. Ello lleva a equiparar la ‘imposibilidad’ y la no exigibilidad de otra conducta. También se ha dicho que no puede ser exigido al deudor un esfuerzo ‘superior al correspondiente a la obligación’”. HEDEMANN, J.W. Derecho de obligaciones. Vol. III. Trad. de Jaime Santos Briz. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1958. p. 168. Em tradução livre: “Duas teorias são apresentadas como concorrentes, das quais a última prevaleceu. A primeira deriva do conceito lógico (físico) da impossibilidade; portanto, não fala em impossibilidade se alguém conseguir cumprir a obrigação de alguma forma, mesmo com as maiores dificuldades e sacrifícios desproporcionais. A outra teoria se opõe a esse conceito lógico de impossibilidade, com um "conceito legal " de impossibilidade, que é mais flexível, e leva à interpretação do contrato opondo a avaliação lógica a uma razão prática. Isto leva a equiparar a impossibilidade à inexigibilidade de comportamento. Também foi dito que não se pode exigir do devedor um esforço ‘acima do valor da obrigação’.”

237 GOMES, Orlando. Obrigações. Revista, atualizada e aumentada, de acordo com o Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense. 2005. p. 172.

238

HEDEMANN, J.W. Derecho de obligaciones. v. III. Trad. de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado. 1958. p. 168-169.

239 GOMES, Orlando. Obrigações. Revista, atualizada e aumentada, de acordo com o Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense. 2005. p. 173-174.

79 impossibilidade originária, conforme disposto no artigo 123, inciso I, do Código Civil240, atinge a própria validade do negócio jurídico, que será considerado nulo.

Saliente-se que o vício de nulidade somente atinge a impossibilidade originária (ou absoluta), assim considerada aquela que é a impossibilidade em si mesma e para todos. Quando a impossibilidade for subjetiva (ou relativa), por ser impossível apenas para o devedor, o ato será válido, sendo hipótese de incapacidade do devedor241. É o caso da venda de coisa alheia, ato ineficaz, mas válido, cuja prestação eventualmente poderá vir a ser cumprida, caso obtenha o devedor condições para efetivá-la242.

A segunda hipótese de inadimplemento absoluto é a extinção dos interesses do credor. Nesse caso, embora possível a prestação, afigura-se inútil para o credor243. Destaque-se que a perda do interesse do credor deve necessariamente ocorrer depois da não realização da prestação no momento devido. Até o termo fixado no contrato, a eventual alteração dos interesses do credor não atinge a eficácia da obrigação. Todavia, se não adimplida a obrigação no momento devido, pode ocorrer que a obrigação não supra mais as necessidades do credor244.

É o que acontece, por exemplo, com o vestido de noiva ou o bolo de casamento que ficam prontos depois da cerimônia de casamento. O cumprimento dessas obrigações

240 “Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados: I - as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;” 241

“Art. 106. A impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que ele estiver subordinado.”

242 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. Ed. Rio de Janeiro: Aide. 1991. p. 97.

243 Sobre essa questão, Luis Diez-Picazo e Antonio Gullon comentam que “se admite por la doctrina y jurisprudencia (Ss. de 5 de enero de 1935 y 6 de julio de 1945) que el retraso en el cumplimiento equivale a incumplimiento definitivo cuando ya no puede satisfacer el interés del acreedor; la prestación deja de serle útil. Especial relevancia tiene esta doctrina en los negocios con término esencial o a fecha fija, aunque su virtualidad no queda encerrada en ellos”. DIEZ-PICAZO, Luis e GULLON, Antonio. Sistema de Derecho Civil. Volume II. Madrid: Editorial Tecnos. 1978. p. 162-163). Em tradução livre: “a doutrina e jurisprudência (Ss de 05 de janeiro de 1935 e 6 de Julho de 1945) entendem que o atraso no cumprimento equivale ao inadimplemento definitivo quando já não pode mais satisfazer o interesse do credor; porque a prestação lhe é inútil. Especial relevância tem esta doutrina em contratos com termo essencial ou data fixa, ainda que a sua aplicação não esteja limitada a eles,”

244 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. p. 41.

80 após o termo fixado no contrato ainda seria possível, todavia, por motivos óbvios, a parte contratante não tem interesse em receber a prestação tardiamente.

A propósito, assinala Inocêncio Galvão Telles:

Pode acontecer que, não realizando o devedor a prestação no momento devido, ela ainda continue materialmente possível mas perca interesse para o credor. A prestação, conquanto fisicamente realizável, deixou de ter oportunidade. Juridicamente não existe então simples atraso mas verdadeira inexecução definitiva. Prestação que já não interessa ao credor em consequência do atraso vale para o direito como prestação tornada impossível.245

Apesar da sua clareza no plano teórico, a dificuldade doutrinária e jurisprudencial está em definir balizas firmes de valoração de perda da utilidade da prestação diante do atraso no cumprimento da prestação, ou de não ter sido adimplida no modo ou local pactuados.

Ressalta Ruy Rosado Aguiar Júnior que “quando há impossibilidade definitiva e total da prestação, não se põe nenhuma dificuldade para o reconhecimento do incumprimento definitivo”, todavia, “tratando-se das outras causas, haverá necessidade de determinar quando uma prestação ainda possível ou ainda parcialmente possível pode ser rejeitada, por caracterizar-se o incumprimento definitivo”246.

O comentário de Ruy Rosado Aguiar Júnior, apesar de dirigido ao Código Civil de 1916, ainda é pertinente e atual no Código Civil de 2002. Continua a inexistir previsão explícita na lei brasileira quanto aos critérios que devem ser utilizados no juízo de valoração da perda da utilidade para o credor de prestação ainda possível de ser realizada pelo devedor em mora.

De maneira geral, a doutrina entende que deverá ser considerada inútil a prestação quando o atraso ou as imperfeições ofenderem substancialmente a obrigação,

245 TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das obrigações. 4. ed. Lisboa: Coimbra Ed. 1982. p. 235.

246 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide. 1991. p. 130.

81 provocando o desaparecimento do interesse do credor247. A inutilidade deverá ser avaliada, portanto, “em face do tempo, do lugar e da forma do pagamento. Assim, o juiz deverá examinar se a prestação se tornou inútil ao credor, por ter sido feita com atraso, ou por não se ter realizada no lugar ou forma convencionados”248

.

A inutilidade é considerada matéria de fato, cabendo ao juiz, diante das peculiaridades do caso concreto, verificar se a falta arguida pelo credor é de tal presença que se lhe tornou inútil, ou somente menos valiosa, hipótese em que se restará configurada a mora249. Qualquer diferença ou prejuízo decorrente do atraso do devedor autoriza o credor a demandar os danos daí decorrentes, mas não a rejeitar a prestação; para a rejeição é necessário que a prestação tenha se tornado inútil para o credor250.

Conforme observa Agostinho Alvim, é ônus da prova do credor demonstrar que a prestação, devido à mora, não lhe apresenta mais utilidade. Não é o devedor que está sujeito a provar que a prestação continua sendo útil, mas o credor que deve comprovar a inutilidade dessa prestação. Desta feita, a “utilidade presume-se, porque, via de regra, a mora ocasiona prejuízo ao credor, mas só excepcionalmente tornará inútil a prestação”251

,

Frise-se que a inutilidade da prestação deve ser avaliada levando em consideração o credor da relação obrigacional concreta, e não um credor abstrato252, o fim

247 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide. 1991. p. 132.

248 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda. 1949. p. 54.

249 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda. 1949. p. 54.

250 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda. 1949. p. 54.

251

ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda. 1949. p. 57.

252 A esse respeito, Agostinho Alvim pondera que: “Para traduzir o conceito de inutilidade da prestação, devemos ponderar, primeiramente, que tal inutilidade deve ser estudada em seu aspecto relativo, e não, absoluto.

Se, em virtude de atraso culposo, a prestação se torna impossível por se ter tornado imprestável a coisa objeto da mesma, haverá inutilidade para o credor e para quem quer que seja. Mas isto não é imprescindível. O de que a lei cogita, em matéria de mora, não é da inutilidade objetiva da prestação, inutilidade para qualquer pessoa, que se confunde com o perecimento do objeto; nem do defeito ou deterioração que tenha sobrevindo à coisa, o que autoriza a enjeitá-la, com fundamento no art. 866 do Código.

82 daquele negócio jurídico, bem como os limites impostos pelo princípio da boa-fé objetiva. Devem ser afastadas avaliações discricionárias acerca da permanência ou não de interesse do credor, impedindo que o credor seja movido por mero capricho. A utilidade ou inutilidade da prestação deverá ser apreciada pelo juiz à luz do interesse típico e concreto perseguido pelo credor na relação obrigacional253, verificando-se a possibilidade de consecução do resultado útil perseguido pelo credor no início da relação obrigacional.

Afirma Mário Júlio de Almeida Costa, referindo-se ao direito português:

Quanto à perda do interesse do credor na prestação, é a mesma “apreciada objectivamente” (art. 808º, nº 2). Este critério significa que a importância de tal interesse, embora aferida em função da utilidade concreta que a prestação teria para o credor, não se determina de acordo com o seu juízo arbitrário, mas considerando elementos susceptíveis de valoração comum das pessoas.254

Conforme adverte Judith Martins-Costa, “o juiz deve apreender o interesse e a utilidade com base na natureza da prestação e das regras comuns de experiência (CPC, art. 335). Não há ‘arbítrio’ judicial (com tudo o que essa expressão ressoa de voluntarismo), mas, verdadeiramente, poder-dever de detectar, entre os elementos objetivos e os elementos subjetivos da prestação, a possível inutilidade”255

.

Como a identificação da utilidade (ou inutilidade) da prestação e, consequentemente, da modalidade de inadimplemento dependem da análise de uma série de fatores objetivos e subjetivos, a cláusula geral da boa-fé objetiva assume “proeminência

O arbítrio do juiz entende-se com o exame da inutilidade em face do credor, sendo este, pois, um conceito relativo.” ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda. 1949. p. 55-56. Com a devida vênia, entendemos que o posicionamento de Agostinho Alvim deve ser lido com cautela. De fato, a utilidade da prestação deve ser apreciada levando em consideração o interesse de um credor concreto, e não de um credor abstrato. Nesse sentido, pode-se dizer que a análise deve ser feita em seu aspecto relativo (interesse do credor concreto), e não absoluto (interesse de credor abstrato). No entanto, destacamos que a apreciação da utilidade da prestação deve ser realizada tendo em vista o interesse típico e concreto perseguido pelo credor da relação obrigacional, e não o mero interesse subjetivo do credor. Daí porque entendemos que o exame da utilidade deve ser feito de maneira relativa (em relação à figura do credor) e objetiva (em relação ao interesse perseguido na relação obrigacional).

253 TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. v. I. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2007. p. 718.

254 ALMEIDA COSTA, Mário Júlio. Direito das obrigações. 9. ed. Coimbra: Almedina. 2001. p. 984. 255 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2004. p. 254.

83 para a detecção do inadimplemento relativo ou do inadimplemento absoluto em face da inobservância da grade obrigacional acertada pelos contratantes”256

. A função restritiva da boa-fé veda que um dos contratantes, à vista de qualquer desvio obrigacional do outro, tenha por inútil a prestação momentaneamente descumprida.

É nesse sentido que deve ser interpretado o Enunciado 162, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, segundo o qual “a inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do devedor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor”257

.

Assim, visto que “a relevância do incumprimento para efeito de resolução do contrato tem de ser apreciada em função do caso concreto, sendo o conceito de gravidade distinto segundo o tipo contratual em questão e as peculiaridades do concreto negócio estipulado”258

, constata-se que o ponto central para a identificação da utilidade de determinada prestação está na verificação da função negocial concreta do contrato inadimplido. Ou seja, é essencial que se perquira se a prestação ainda tem o potencial de atingir a função a que inicialmente se destinava.

Acrescente-se que as partes podem convencionar que a prestação, fora do tempo ou em desacordo com o pactuado, será havida como inútil. Não se pode confundir o

256

OLIVEIRA, James Eduardo de. Inadimplemento relativo e inadimplemento absoluto. In: ANDRIGHI, Fátima Nancy (Coord.). Responsabilidade civil e inadimplemento no direito brasileiro. São Paulo: Atlas. 2014. p. 19.

257 No mesmo sentido Almeida Costa disserta que: “Pode verificar-se que o atraso no cumprimento tenha feito desaparecer o interesse do credor na prestação – apreciado este segundo critério objectivo –, ou que o devedor não efectue a prestação dentro do prazo que razoavelmente for fixado por credor. Em ambas as hipóteses, a obrigação considerar-se-á, para todos os efeitos, como não cumprida.” ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Noções de direito civil. Coimbra: Livraria Almedina. 1980. p. 225. Gabriel Rocha Furtado também comenta que “[...] deve-se atentar para o interesse em concreto de determinado credor em específica relação contratual. Todavia, a aferição da utilidade da prestação há de ser feita com base em critérios objetivos, visualizando-se todo o programa contratual de fora, e não apenas a partir da individual subjetividade do credor – o que poderia ensejar arbitrariedades e chancelar simples caprichos –, sob pena de se sufragar e recair em vetusta orientação voluntarista. Indaga-se, em síntese, do interesse concreto do credor, objetivamente inserido na função contratual”. FURTADO, Gabriel Rocha. Mora e inadimplemento substancial. São Paulo: Atlas. 2014. p. 31.

84 prazo fatal para o cumprimento da obrigação, ou seja, a previsão de que o não cumprimento em certo tempo, modo ou lugar, implica a inutilidade da prestação, com a regra dies interpellat pro homine, adotada pelo Código Civil259. Se o devedor não cumpre a obrigação no termo, incide em mora, exceto se o credor demonstrar que a prestação se tornou inútil. No entanto, se houver convenção expressa de que a prestação se reputa inútil se não for efetuada no tempo, modo ou local pactuados, haverá inadimplemento absoluto e não será possível purgar a mora260.

Cumpre, ainda, destacar que a impossibilidade ou a inutilidade se refere à prestação devida, e não apenas à prestação principal. Assim, se o descumprimento de um