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A fundamentação aperceptiva da lógica

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 129-138)

1.5 A psicologia aperceptiva de Lipps

1.5.2 A fundamentação aperceptiva da lógica

Depois de ter exposto no primeiro capítulo de Einheiten und Relationen a estrutura egológica da apercepção e, a partir daí, definido os conceitos de objectividade e subjectividade, Lipps ensaia no segundo capítulo, in-

271Cf. LIPPS 1902c, p. 62. 272ibid., p. 65.

titulado “Gegenstandsrelationen”, a fundamentação psicológica da ló- gica. Para isso procede à elucidação aperceptiva dos conceitos lógicos fundamentais tais como unidade, multiplicidade, abstracção, número, conjunto, complexão, parte e todo. Digno de nota neste capítulo é a utilização de termos originários da escola de Brentano como sejam os conceitos de “estado de coisas” (Sachverhalt) e “acto". A referência de Lipps a Husserl a propósito da definição do número mostra que Lipps conhecia a Philosophie der Arithmetik deste.273 É, pois, muito

provável, que Lipps também deva a Husserl os termos apontados. Mais uma vez se confirma a afinidade de problemas tratados na escola de Brentano e na psicologia de Lipps e a influência daquela sobre esta já antes da introdução das Investigações Lógicas em Munique.

A objectividade e a subjectividade são relações entre os objectos e o eu. São relações simples, cuja natureza aperceptiva não é difícil de perscrutar. Bem mais difícil é compreender a apercepção implicada nas relações entre objectos tais como a analogia, a causalidade e as relações espaciais. Para isso o melhor caminho é trazer à luz antes de mais os ac- tos aperceptivos mais elementares pressupostos nas relações complexas entre objectos. Assim, para verificar a analogia entre dois objectos é necessário que ambos sejam dados num único acto aperceptivo. Não basta apreender agora um e depois o outro, antes há que apreendê-los ao mesmo tempo e na mesma vivência. Os dois objectos têm de ser toma- dos conjuntamente, unidos aperceptivamente, afim de se poder apurar a sua analogia. À união de diversos objectos no mesmo acto aperceptivo dá Lipps o nome de “apercepção da unidade". A vivência da “aper- cepção da unidade” que, segundo Lipps, é impossível descrever me- lhor, mas que se tem em quase todos os momentos da vida, é a origem de toda e qualquer unidade. Tudo o que designamos por unidade não é senão o resultado da apercepção da unidade. Para apreendermos o que quer que seja como unidade é necessário fazê-lo num único acto psíquico. Por isso mesmo tudo pode constituir uma unidade, basta que

seja objecto de uma apercepção da unidade.274 Quem olhar para o céu estrelado e arbitrariamente escolher três ou quatro estrelas e as apreen- der conjuntamente, torna-as numa unidade.

O mesmo vale dizer para a multiplicidade. A consciência de uma unidade vai acompanhada da consciência da multiplicidade que a com- põe. Ora também a consciência da multiplicidade ou da diversidade consiste numa “apercepção da multiplicidade". É possível apercebe- rem-se diversos objectos em diferentes actos aperceptivos. Assim te- mos que a consciência da unidade é a consciência da apreensão de di- versos objectos no mesmo acto aperceptivo e a consciência da multi- plicidade, a consciência de ter simultaneamente diversos actos aper- ceptivos. Daqui resulta que a apercepção da unidade não é o mesmo que uma apercepção simultânea. Se o fosse, isso significaria que a apercepção da multiplicidade ou da diversidade só poderia ser suces- siva. No entanto, não é esse o caso. Embora os passos da apercepção da multiplicidade sejam sucessivos, isto é, apesar de ela implicar que primeiro seja este objecto apreendido, depois aquele e depois o outro, o seu resultado é simultâneo. Para afirmar a diversidade é necessário reter na memória os passos anteriores. A apercepção da multiplicidade é a consciência simultânea da diversidade destes passos.

Lipps fundamenta as apercepções da unidade e da multiplicidade na estrutura psíquica do sujeito. Faz parte da essência do espírito ten- der a apreender num único acto da apercepção os objectos apercebidos simultaneamente. Por seu lado, cada objecto reclama para si uma aper- cepção própria, isto é, exige uma atenção especial à sua particularidade ou individualidade. Entre estas duas exigências aperceptivas desenrola- se a vida psíquica.

A objectividade e a subjectividade enquanto modificações apercep- tivas básicas estendem-se também às apercepções da unidade e da mul-

274 “Apercepção da unidade” traduz o termo alemão “Einheitsapperzeption”. A expressão em português é equívoca. “Da unidade” tanto pode ser genitivo subjectivo como genitivo objectivo. Aqui tem o primeiro significado, cumprindo uma função denominativa. No outro sentido a unidade seria necessariamente anterior ao acto aperceptivo.

tiplicidade. A apercepção da unidade é objectiva quando “exigida” pelo objecto. A objectividade de qualquer unidade reside na exigência do objecto à apercepção da unidade. Sem esta modificação aperceptiva do sujeito não há unidades objectivas, ou seja, a reivindicação a uma apercepção da unidade é constitutiva de toda a unidade objectiva. Se a apercepção da unidade for arbitrária, então a unidade será subjectiva. Mutatis mutandis o mesmo vale para a apercepção da multiplicidade. Contudo, há que atender ao facto psíquico de a apercepção da multi- plicidade nunca ser totalmente arbitrária. Isso deve-se à característica atrás apontada de cada objecto reclamar para si uma atenção especial. Mesmo subjectiva a apercepção da multiplicidade tem de ter sempre uma razão objectiva. É isto que se verifica no caso da identidade. O mesmo objecto pode ser elemento de diferentes complexos ou parte de diversas unidades. Da apercepção das diferentes unidades resulta então uma apercepção múltipla do mesmo objecto que faz parte de cada uma delas. À multiplicidade subjectiva opõe-se uma unidade objectiva já que a apercepção do objecto reivindica uma apercepção da unidade. A consciência da identidade do objecto consiste pois na consciência de que à multiplicidade subjectiva corresponde uma unidade objectiva.

A apercepção da unidade é a relação fundamental de todas as re- lações entre objectos. Para que dois ou mais objectos entrem numa relação é indispensável que eles sejam apercebidos num único acto aperceptivo. A condição vale tanto para as relações positivas como para as relações negativas. As primeiras são relações de conformidade e as segundas de contraposição. A comparação de dois objectos pode revelar a sua analogia ou a sua diferença. Mas tanto uma como a outra são relações, só que uma é positiva e a outra negativa. De igual modo são a proximidade e a distância relações espaciais. Mesmo a completa diferença entre dois objectos não deixa de ser uma relação. Ao saber que nada têm a ver um com o outro, estou a integrá-los numa relação. Portanto, também neste caso extremo está implícita a apercepção da unidade. Esta relação fundamental nada tem a ver com a constituição particular dos seus elementos. Independentemente da espécie, quali-

dade, quantidade, modo de ser de um objecto, nada impede de o tomar numa relação, de o comparar ou incluir como parte de uma unidade. A apercepção pode unir seja o que for. Mas a união também pode ser diferente. Perante o mesmo grupo de árvores a apercepção pode uni-las numa unidade indiscriminada ou dar mais realce a uma árvore e subordinar-lhe todas as outras. Os mesmos indivíduos podem ser apercebidos como um povo ou como os compatriotas de um deles. Em ambos os casos operamos com os mesmos objectos, porém, de modo diferente. Nos primeiros casos trata-se de uma apercepção da unidade indiferente e nos segundos de uma apercepção hierárquica. Ou não se dá atenção particular a nenhum elemento, havendo então um equilíbrio aperceptivo entre eles, ou então estabelece-se uma organização na aper- cepção da unidade. A apercepção estética é um exemplo demonstrativo da apercepção hierárquica. Os factores sensíveis são completamente subordinados aos conteúdos estéticos.

A apercepção indiferente e a hierárquica são relações positivas. Contraposta a elas está a relação negativa da abstracção. Esta não pressupõe menos que elas uma apercepção da unidade. Para abstrair as árvores que rodeiam a árvore sobre a qual pretendo concentrar a atenção, é necessário ter apercebido todas as árvores num mesmo acto aperceptivo. A abstracção pressupõe uma unidade para que dela sejam excluídas determinadas partes. A consciência da abstracção consiste precisamente em ver a árvore sem as outras árvores, em isolála do con- texto aperceptivo em que é dada primeiramente. A relação abstractiva é também uma relação da unidade entre objectos. Os objectos que se abstraem estão por isso mesmo em relação com o que, por não ser abstraído, se torna objecto exclusivo da consciência. Manifestamente trata-se de uma relação negativa. Ao mesmo tempo, é uma relação gradativa. A negatividade pode ser maior ou menor. O grau de nega- tividade será tanto maior quanto mais forte for a exigência do contexto a ser coapercebido. A abstracção das qualidades de determinado ob- jecto, por exemplo, a abstracção da cor e do sabor de um fruto para apenas dar tento à sua forma, é mais acentuada que a abstracção dos

objectos que o rodeiam.

Lipps considera que o apuramento de relações negativas põe em causa o princípio estabelecido por Meinong sobre a coincidência das complexões e das relações. Segundo Meinong, a toda a relação cor- responde uma complexão e vice-versa. Para que haja uma relação é necessário que haja mais que um elemento na relação, isto é, que haja uma complexão de dois ou mais elementos, e inversamente toda a com- plexão pressupõe que os elementos se relacionem entre si e com o todo, pelo menos enquanto partes do todo.275 Lipps argumenta que o princí- pio da coincidência assenta sobre dois pressupostos. Primeiro, a re- lação só fundamenta uma complexão quando se trata de uma relação positiva ou unitária. Uma fórmula matemática e um odor não cons- tituem qualquer complexão apesar de se relacionarem negativamente. Entre ambos há uma relação de incompatibilidade. Trata-se mesmo de uma relação objectiva, exigida pela natureza dos objectos, expressa no juízo “as fórmulas da matemática e o odor nada têm a ver entre si". Todavia, os dois termos da relação não são elementos de nenhuma com- plexão. Segundo, o conceito de complexão implica não só que os seus elementos se relacionem positivamente como também exige que cons- tituam um todo. Não basta uma relação positiva sem mais para funda- mentar uma complexão. A união dos elementos tem de ser de forma a uni-los num todo. A relação simplesmente copulativa da conjunção “e” não dá azo a qualquer complexão. Não obstante ser uma relação positiva, os seus elementos limitam-se a serem dados num mesmo acto aperceptivo sem que com isso ganhem nova determinação.276

A unidade pode ser, portanto, de duas espécies. Consoante a re- lação aperceptiva da unidade dê ou não dê azo a uma complexão cor- respondente temos uma unidade de complexão ou então apenas unida- de numérica, também designada por conjunto. Um conjunto é uma unidade em que os seus elementos são apercebidos isoladamente. A complexão é uma unidade em que além dos elementos isolados são

275MEINONG 1891, p. 254. 276LIPPS 1902c, pp. 35 e 36.

coapercebidos factores unificantes. As mesmas árvores podem consti- tuir uma vez um conjunto, outra vez uma complexão, a saber, uma floresta. No primeiro caso cada árvore é apercebida isoladamente, sendo então as múltiplas apercepções ordenadas numa apercepção da unidade. Se as árvores forem vistas como uma floresta, isso significa que os elementos geográficos que as unem também foram apercebidos. Neste caso não há apercepções isoladas dos diferentes elementos da complexão, antes cada elemento é apercebido no contexto dos outros elementos.277

De passagem Lipps rejeita a possibilidade de conteúdos psíquicos globais. Embora habitualmente não nos sejam dados conteúdos psíqui- cos isolados, isto é, tudo o que vemos, vemo-lo contextualmente, isto não significa que primária e imediatamente nos seja dado um único conteúdo psíquico global. Ainda que não cite os visados pela crítica, Lipps volta-se aqui manifestamente contra a teoria das qualidades mor- fológicas de Ehrenfels. Lipps acha que é tão errado admitir a doação imediata de conteúdos psíquicos globais como a de conteúdos isolados. Os conteúdos que nos são dados apresentam-se tal como são, constituí- dos desta e daquela maneira, mas ao lado das qualidades constitutivas não se encontram quaisquer qualidades globais da unidade ou da con- formidade. Só por meio de uma apercepção abstractiva ou unificadora o tornamos respectivamente um conteúdo singular ou então um con- teúdo global ou um todo.

A apercepção dos elementos de um conjunto é uma apercepção ab- soluta da multiplicidade. Cada elemento do conjunto é encarado total- mente em si, o mesmo é dizer, é objecto de um único acto aperceptivo. Neste sentido a apercepção dos elementos de um conjunto exclui por completo qualquer apercepção da unidade. As árvores enquanto ele- mentos de um conjunto de árvores nada têm a ver entre si, cada uma é

277 É possível que Lipps tenha recebido de Husserl o conceito de conjunto. O conceito introduzido por Cantor na matemática foi aproveitado por Husserl, colega de Cantor na universidade de Halle, na suas investigações sobre a filosofia da aritmética. Ora Lipps tinha conhecimento desta obra de Husserl; Cf. páginas seguintes.

tomada como um singular absoluto. É esta apercepção isoladora da ár- vore que dá origem ao elemento numérico de “uma árvore". O sentido de unidade numérica está no facto de a apercepção isolar completa- mente o seu objecto. A relação dos elementos de um conjunto não é outra senão a de 1+1+1... Este “estado de coisas” (Sachverhalt) não se modifica quando os elementos do conjunto são somados por uma aper- cepção da unidade. Na soma cada elemento preserva a sua completa individualidade, encerrado em si, absolutamente independente dos ou- tros elementos. A apercepção da unidade aditiva ocorre sem que os ele- mentos se relacionem o mínimo que seja sob o ponto de vista material. Pode parecer um paradoxo a apercepção da unidade da soma não pôr fim ao isolamento dos elementos ou à apercepção absoluta da multipli- cidade dos mesmos. Como se pode ter uma apercepção da unidade de um conjunto se cada elemento é encarado absolutamente em si? Como se pode somar o que nada tem a ver entre si? A solução do paradoxo está no facto de os objectos da apercepção da multiplicidade não serem objecto da apercepção da unidade aditiva. Esta não tem directamente como objecto os elementos singulares do conjunto, mas sim os “ac- tos” (Akten) aperceptivos respectivos. O que se soma são os múltiplos actos aperceptivos concretos e não os conteúdos. A soma das árvores não significa uma apercepção das árvores enquanto objectos de deter- minada natureza ou feitio. As árvores não se somam enquanto árvores, mas sim enquanto unidades. Ora o que as torna unidades são os actos aperceptivos singulares. Em suma, o que se soma são, por assim dizer, os “batimentos do compasso interno” (innere Taktschläge) independen- temente dos objectos a que se reportam. A apercepção da unidade de três árvores, por exemplo, apenas se reporta às árvores indirectamente, a saber, na medida em que elas são o objecto acidental dos actos aper- ceptivos concretos.278

As apercepções que dão origem aos elementos numéricos não são empíricas, nem espaciais, nem temporais, nem determinadas de qual- quer outro modo. São apenas simples “actos” da apercepção em geral.

Delas abstraem-se todas as determinações materiais. O que fica é tão só o simples facto de se aperceber algo. Lipps adopta a definição de Husserl de elemento numérico como um simples “algo"279. O sentido de “algo” é precisamente o de ser um objecto da apercepção, sem con- tudo possuir qualquer determinação material. Tal não impede, com efeito, que esse algo seja facticamente determinado. Pode ser uma pe- dra, uma ideia, um ser vivo, qualquer coisa, mas enquanto elemento numérico toda a determinação fáctica é-lhe acidental.

Só assim se explica que a soma de “uma árvore e uma árvore e uma árvore” seja igual à de “uma floresta e uma floresta e uma floresta". O resultado “três” é independente do conteúdo dos elementos contados. Mas a razão da identidade do resultado encontra-se no facto de apenas os actos aperceptivos serem tomados em conta. O mesmo estado de coisas torna clara a razão porque a unidade numérica não é gradativa em correspondência com a unidade do objecto. Ninguém duvida que três partes de uma árvore apresentem uma unidade mais íntima que a unidade entre três árvores. Contudo, a unidade numérica “três” relativa a uma e à outra é a mesma.

As complexões distinguem-se dos conjuntos pela sua unidade ma- terial. Não são compostas como estes por elementos isolados, vale dizer, por unidades absolutas, mas sim por partes. A complexão é o todo das partes. A apercepção da unidade que forma a complexão é a apercepção de um múltiplo que preserva a sua multiplicidade den- tro da unidade aperceptiva. Ao contrário da apercepção da unidade numérica dos conjuntos que apenas incide sobre os actos aperceptivos isolados, a apercepção da unidade complexa é uma apercepção dife- renciada ou articulada. Não é uma apercepção pura da unidade na me- dida em que dá conta das partes do complexo e, desse modo, encerra em si uma apercepção da multiplicidade. Trata-se de uma apercepção articulada em que se interpenetram a apercepção da unidade e a aper-

279LIPPS 1902c, p. 42: “Dies können wir auch mit Husserl so ausdrücken: Das numerische Element der Anzahl ist ein bloßes ‘Etwas’.” Lipps reporta-se sem dúvida à Filosofia da Aritmética de Husserl: Cf. HUSSERL 1970, p. 80.

cepção da multiplicidade. A noção de “parte” deve-se à articulação da apercepção da unidade. A parte é sempre uma componente da unidade total. “Todo” e “partes” são conceitos correlatos tal como “números” e “unidades". E assim como não há unidades numéricas sem uma aper- cepção da unidade dos múltiplos actos aperceptivos absolutos, assim também não há complexão sem uma apercepção articulada da unidade.

1.6

A superação psicológica do psicologismo

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 129-138)