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O mecanismo psicológico

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 59-65)

1.3 O Mecanismo Associativo da Alma

1.3.1 O mecanismo psicológico

O termo “psicologia pura", tal como Lipps o entende e aplica, tem sobretudo um significado de demarcação do campo estritamente psi- cológico. Com este termo pretende ele traçar as fronteiras do propri- amente psíquico através de uma exclusão dos pressupostos metafísi- cos e de uma recusa de reduzir os fenómenos psíquicos aos seus even- tuais condicionalismos fisiológicos. Psicologia pura designa, por con- seguinte, o estudo dos fenómenos psíquicos enquanto tais, vale dizer, da vida psíquica na sua especificidade própria. Tal estudo, porém, faz- se sob o pressuposto de que há uma autonomia do psíquico, isto é, tal estudo apoia-se primeiramente na convicção de que há leis especifica- mente psicológicas, que à vida psíquica cabe uma peculiaridade que só uma ciência especial pode ter em conta. O atributo “pura” cumpre uma tarefa de delimitação da área a que a psicologia genuína se há-de

70ibid., p. 29: “Ich stelle ein Objekt vor, indem ich ein Bild von ihm erzeuge und “vor mir hinstelle". In der Erzeugung des Bildes oder, wie wir im vorigen Kapitel sagten, des ideellen Objektes besteht die Vorstellungstätigkeit”.

71 ibid., p. 29: “Von diesem Bilde sage ich, daß es nicht da sein könne, ohne bewußt zu sein, weil sein Dasein eben in dem Bewußtsein von ihm bestehe”.

72ibid., p. 31: “Nun steht fest, daß wir von einem Bewußtsein neben den Inhalten kein Bewußtsein haben”

ater. Pouco diz, todavia, acerca do modo como a investigação se há-de realizar no que toca ao conteúdo. É aqui que Lipps introduz o termo de psicologia associativa. Obviamente não significa isto uma diferença de assunto ou de método e, portanto, a existência de duas psicologias. A psicologia pura, como Lipps a entende, é associativa e, vice-versa, a psicologia associativa é pura.73 O que está em causa são as duas faces da mesma medalha. A psicologia como estudo das associações especí- ficas em que consiste a vida psíquica, das leis a que obedecem essas associações, vem justificar a reivindicação que faz enquanto psicologia pura a um estudo autónomo do psíquico face às pretensões redutoras da psicofisiologia.

A acepção lippsiana das associações psicológicas é a de um “meca- nismo psicológico”. Com o termo mecanismo, que utiliza frequente- mente74, não pretende Lipps reduzir o psíquico a “puxões e empur-

rões”, mas tão só designar um sistema de conexões.75 O que o termo visa é, antes de mais, assegurar uma objectividade ao campo psíquico. Com efeito, a possibilidade de uma ciência delimitada ao puramente psicológico poder-se-ia contestar com o argumento de que ela incidiria sobre um reino arbitrário de elementos subjectivos, o que não oferece- ria qualquer perspectiva de uma abordagem objectiva. Não admira pois que Theodor Lipps comece a sua averiguação dos factos psíquicos com a eliminação da vontade como factor interveniente (causal) no decurso das representações. Ele volta-se contra a teoria da atenção que vê nesta uma intervenção voluntária no fluxo da consciência.

73 LIPPS 1892, p. 556: “Das eigentliche Ziel der Psychologie, ich meine der reinen, die das Physiologische außer Betracht läßt, ist kein anderes als dies, nach Möglichkeit reine Assoziationspsychologie zu werden.”

74 LIPPS 1883, p. 34: “das Getriebe des psycologischen Mechanismus”; p. 35: “seelischer Mechanismus”; p. 45: “Vorstellungsmechanismus"; p. 49: “willenloser psycologischer Mechanismus”; p. 56: “unbewußt arbeitender Mechanismus des seel- ischen Geschehens”.

75 ibid., p. 58: “Mechanisch nennt man das Willenlose und von Mechanismus haben wir selbst gesprochen. Wir wollen aber damit nicht das Psychische auf Stoß und Druck reduzieren, sondern nur ein in sich zusammenhängendes Geschehen mit einem geläufigen Namen bezeichnen.”

Entende-se a atenção como uma incidência do olhar da consciência sobre este ou aquele objecto consciente. Para o caso é indiferente a distinção entre atenção activa e passiva, entre a atenção motivada pelo livre arbítrio do sujeito, e a atenção que determinados objectos pela sua natureza ou intensidade fazem chamar sobre si. Importante é o facto de se atribuir à atenção uma intervenção no decurso da consciência. Ao fazer incidir a atenção sobre este ou aquele objecto presentes na cons- ciência, o sujeito determinaria arbitrariamente a sequência e a ligação das representações. A concepção da atenção como um raio da cons- ciência incidindo sobre os objectos é metafórica, tirada do campo vi- sual sensível, onde o olhar cai sobre estes ou aqueles objectos, fazendo aparecer uns e desaparecer outros. Apelando para a experiência ime- diata do que se nos apresenta à consciência, como critério último das divergências acerca da verificação e interpretação correctas dos fenó- menos psíquicos, Theodor Lipps mostra que a vontade, entendida num sentido muito amplo que inclui a atenção, não interfere no decurso das representações.

O que se designa por vontade é também um conteúdo da consciên- cia. Não vale pois aqui recorrer a conceitos metafísicos da vontade, antes há que que interpretar o querer à luz do que se depara na própria consciência quando nela se encontra o conteúdo específico a que se dão os nomes de vontade, querer, desejar, ambicionar etc. Relativa- mente ao problema aqui em foco poder-se-ia dizer: uma representação A surge porque faço incidir sobre ela a minha vontade.76 O que isto sig-

nifica antes de tudo é que há uma relação temporal entre dois conteúdos psíquicos concretos: o querer e o surgir de A. Um é anterior ao outro. Isto, porém, não equivale à afirmação de que há uma relação causal entre uma representação (também o querer é uma representação!) e a outra.77 Como se pode querer A se esta representação ainda não se en-

76ibid., p. 47.

77 ibid., p. 47: “Nun wissen wir schon, daß dem Richten im unmittelbaren Be- wußtsein nur ein zeitliches Verhältnis zwischen dem Wollen und dem Auftauchen der Vorstellung entspricht und nichts darüber hinaus, auch nichts, was den Namen einer ursächlichen Beziehung tragen könnte.”

contra na consciência? Atribuir a causa do surgimento de A ao acto vo- luntativo anterior, seria comparar a vontade a um atirador que, de olhos tapados, visasse o alvo.78 O que acontece efectivamente é que o surgir da representação A se deve às circunstâncias psíquicas que a envolvem. Mesmo que agora pretendesse de repente, supostamente por livre von- tade, dar origem a representações que de modo algum estivessem rela- cionadas com as circunstâncias psíquicas presentes, o resultado não se- ria outro senão aquele a que o meu presente estado psíquico daria azo. Isto é, o facto de arbitrariamente chamar conteúdos à luz da consciên- cia não significa senão que há uma disposição psíquica que origina tais conteúdos. A representação mais estranha, pretensamente escolhida ao acaso, não seria mais que um produto psíquico de anteriores fac- tores psíquicos. O caso não muda de figura, segundo Lipps, quando a representação pretendida se insere numa relação consciente. Um e- xemplo ajudará a compreender o determinismo psíquico de Lipps. Se pretendo trazer à memória o cognome do rei D.Dinis, então não faço incidir a memória sobre o cognome pois que ele ainda não se encontra presente no meu espírito, mas tenho que tão somente me concentrar na representação actual, na representação que o nome “D.Dinis” em mim provoca e em tudo o que com ela se relaciona, esperando que a própria força das relações psíquicas me traga o cognome do rei à memória, através de leis psíquicas. Pode ser que surjam vários nomes: o povoador, o sábio, o lavrador, o príncipe-perfeito. Mas é o meca- nismo das representações que leva a aceitar o cognome de lavrador e a rejeitar todos os outros. Ora não influenciando a vontade as repre- sentações, são estas que se provocam, rejeitam, estorvam, apoiam e excluem. “As representações movem-se segundo leis psicológicas que nenhuma vontade é capaz de quebrar.”79 Visto então que a vontade não desempenha qualquer função causal no decorrer psíquico, mais não so-

78ibid., p. 48: “Der Wille wäre dem Schützen vergleichbar, dem man mit verbun- denen Augen auf den Schießplatz führte und ihm zumutete, ein ihm unbekanntes Ziel zu treffen.”

79 ibid., p. 49: “Vorstellungen bewegen sich nach psychologischen Gesetzen, die kein Wille durchbricht.”

bra do que considerá-la como um produto secundário que, sob certas condições, acompanha o mecanismo psíquico.80

O mesmo vale para as sensações de prazer. Também estas não tem qualquer possibilidade de interferir no mecanismo psíquico. Daí que Lipps acabe por designar as sensações acessórias da vontade, do prazer, como um luxo da vida psíquica, sendo a consideração das mes- mas perfeitamente dispensável ao estudo das leis pelas quais se rege o psíquico.81

De certo modo a par da rejeição da vontade e do prazer como princípios causais da vida psíquica encontra-se a rejeição por Lipps de representações inconscientes e de diferentes graus de consciência. Representação para Lipps significa a produção de uma imagem do ob- jecto. Representar um objecto é produzir uma imagem dele e tê-la pre- sente. Esta imagem não existe sem ser representada pois que a sua existência consiste unicamente em ser representada. Uma lembrança só é lembrança enquanto lembrada, uma percepção enquanto percep- cionada, uma sensação enquanto sentida, e uma expectativa enquanto esperada, etc., pelo que uma representação inconsciente é uma con- tradição. O ser de uma representação consiste precisamente em ela ser consciente, isto é, em ser um conteúdo da consciência.82 Também

não há representações semiinconscientes ou obscuras. A representação que temos de uma árvore na penumbra do anoitecer é tão clara e cons- ciente como a representação que temos da mesma árvore no pino do dia. O que varia sim é a adequação delas ao objecto real; sendo a re- presentação tida durante o dia mais adequada que a tida à noite. Mas os

80 ibid., p. 56: “Da es nicht Ursache der so und nicht anders Sein des Vorstel- lungsverkaufs sein kann, so bleibt nur übrig, es als einen Nebenerfolg zu betra- chten, der unter gewissen Umständen den unbewußt arbeitenden Mecanismus des seelischen Geschehens begleitet, oder als ein Phänomen, durch das sich gewisse beim Ablauf dieses Mechanismus stattfindende Vorgänge oder Besonderheiten von Vorgängen dem Bewußtsein anzeigen.”

81ibid., p. 63. 82ibid., p. 29.

objectos reais não estão aqui em causa.83 O conteúdo da representação da árvore vista à noite é tão nítido como o conteúdo da representação diurna. São conteúdos diferentes, mas os dois são do mesmo modo conscientes.

Inconscientes na maioria dos casos são os estados psíquicos ou as actividades a que estes dão origem. Só num sentido demasiadamente lato de representação, em que coubessem também os estados psíquicos insconscientes ou as actividades psíquicas deles decorrentes, é que se poderia afirmar que há representações inconscientes. Tal sentido lato, porém, iria contra o sentido habitual e próprio em que o termo repre- sentação é tomado, como nos casos “represento uma casa", “sinto uma dor".84 Quer isto dizer que os produtos da actividade psíquica são sem- pre conscientes, ao passo que essa actividade se furta em muitos casos à observação da consciência. Estados de espírito inconscientes devem- se entender como produtos inacabados da actividade representativa que podem vir a desembocar em representações.85 A rejeição por parte de Lipps de representações inconscientes e de graus de consciência é im- portante na medida em que o levam a uma fixação de conceitos em desacordo com o significado a eles atibuido pela escola psicológica de Brentano. Exemplo é o conceito de fusão (Verschmelzung) que desem- penha um papel de primeira ordem na psicologia de Stumpf e na mor- fologia de Ehrenfels. Lipps contesta que duas ou mais representações se possam fundir numa única, ficando as representações componentes inconscientes.86 O significado que Lipps dá a este conceito é o de uma

ligação de diversos factores inconscientes em ordem à produção de um

83ibid., p. 33. 84ibid., p. 36.

85ibid., p. 33: “Die unbewußten Zustände sind unfertige Erzeugnisse der Vorstel- lungstätigkeit, Stufen auf dem Wege zur Produzierung eines Vorstellunginhaltes. Dies kann veranlassen, sie selbst Vorstellungszustände, nur auf niedrigerer Stufe ste- hen gebliebene Vorstellungszustände zu nennen.”

86ibid., p. 44: “Eine Vorstellung, die verschiedene Vorstellungen in sich enthielte, nur verdunkelt und nicht in ihrer Besonderheit hervortretend, ist in jedem Fall ein undenkbarer Gedanke.” Cf. LIPPS 1886 e LIPPS 1892.

único resultado consciente. O mesmo vale para o conceito de síntese. Lipps nega que seja possível a união de representações em que os ele- mentos percam a sua subsistência.87 Serve isto também para dizer que Lipps rejeita a acepção de psicologia como química psíquica, acepção cara à escola psíquica inglesa, adoptando ao contrário a noção herbar- tiana de mecânica para explicar a conexão causal entre os fenómenos psíquicos. Significativamente Lipps não emprega o termo análise para designar o trabalho de verificação dos últimos elementos constitutivos da vida psíquica. Não se trata pois de distinguir, à maneira do químico, os elementos que se encontram presentes num composto, antes de in- ferir, à maneira do físico, as forças que estão na origem da represen- tação actual.

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 59-65)