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O eu como polo intencional Os matizes da in-

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 178-183)

2.2 Os Dois Conceitos de Intencionalidade

2.4.1 O eu como polo intencional Os matizes da in-

Um dos resultados mais notáveis da investigação de Pfänder sobre o in- tender reside no apuramento do eu como polo intencional. É de sobejo conhecido como Husserl na primeira edição das Investigacões Lógicas negou a existência de um eu puro, atribuindo a especificidade da re- lação intencional, percepção, recordação, expectativa, etc, unicamente à especificidade dos objectos correspondentes89. Pfänder, ao invés, ao

abordar o problema da intencionalidade a partir do querer verificou o lado egológico da relação intencional. É que o intender, de que o querer é um modo particular, distingue-se das outras formas de visar os objectos pelo sentimento de intender (Strebungsgefühl). A tendên- cia interna ou ou impulso próprios ao intender consistem num senti- mento. Ora os sentimentos não são objectos da consciência como as sensações ou representações, antes estados de como o eu se relaciona com os seus objectos.90 A modificação do eu no sentimento do inten-

88 “Und zwar wollen wir nicht wissen, was zufällig gerade bei diesem individu- ellen Menschen und in diesem einzelnen Fall vorhanden ist, sondern welche Be- standteile immer und notwendig zu dem Bewußtseinszustande des Strebens nach einem Geschmacke gehören.” PFÄNDER 1900, p. 12,13.

89HUSSERL 1984, p. 375: “...so hängt doch die Weise, in der sich die Inhalte in die Erlebniseinheit einfügen, durchaus von der Besonderheit der Inhalte ab, ganz so wie bei der Einfügung von Teilen in Ganze überhaupt.”

90 Já na conferência de 1895 sobre os sentimentos Pfänder acusara a singular re- lação entre os sentimentos e o eu em oposição à relação entre o eu e as sensações. “Die Gefühle stehen in eigenartiger enger Beziehung zum Ich, oder vielmehr das Ich

der é pois um elemento essencial constitutivo do próprio intender. Mais ainda, o estatuto de objectivo específico ao objecto do intender depende dessa modificação do eu. Pfänder não podia deixar de acentuar o papel indispensável do eu na intencionalidade precisamente porque os sen- timentos enquanto modificações do eu são um elemento essencial do querer.

A descrição que Pfänder faz da intencionalidade é mais rica que a traçada por Husserl na medida em que não se limita a analisar os modos como os diferentes objectos são visados pela consciência, mas também toma em conta as modificações da consciência que as diferentes for- mas de relação intencional implicam. Ao distinguir três momentos nos actos psíquicos: eu, relação do eu a um conteúdo e objecto, Pfänder declara que o estado do eu e o modo como o objecto é visado se impli- cam mutuamente e que um não é dado sem o outro.91 A existência de

um conteúdo psíquico pode ser considerado sob dois pontos de vista: o lado objectivo e o lado subjectivo. A preocupação de Pfänder em tomar em conta os dois aspectos leva-o a dar um colorido afectivo à in- tencionalidade. A maneira como o eu se reporta aos objectos é sempre matizada pelos sentimentos. Esta é a razão pela qual a relação inten- cional é diferente de todas as relações dos objectos entre si. Estas po- dem ser espaciais, temporais, causais, de analogia ou de diferença. Só a relação intencional, porém, é impregnada de sentimentos. Ou seja, o eu ao relacionar-se com um objecto encontra-se sempre num determinado estado afectivo.

O carácter egológico da intencionalidade manifesta-se nos altos e baixos da corrente da consciência. Há conteúdos a que o eu presta mais atenção e a outros menos. A relação do eu com os seus conteúdos ob-

des unmittelbaren Bewußtseins ist nichts weiter als der Einheits- oder Zentralpunkt der Gefühle. Empfindungen dagegen treten erst vermnittelst der Gefühle in eine Beziehung zu unserem Ich.” PFÄNDERIANA C V 2, (p. 27).

91 Cf. PFÄNDER 1900, p. 16: “Ichgefühl und ‘gegenständlicher’ Inhalt sind immer zugleich gegeben, und dabei involviert das Ichgefühl schon de Beziehung des Ich auf den Inhalt.”

jectivos embora seja semelhante é desigual.92 Uns conteúdos vêm mais à superfície da consciência, outros ficam escondidos na retaguarda. Houve quem tentasse ver nessa inconstância da corrente da consciência uma propriedade dos conteúdos psíquicos. Assim identificou-se con- teúdos notados com conteúdos “mais intensos”, “mais fortes” ou “mais vivos”. Pfänder rejeita tal explicação que apenas tem em conta o lado objectivo da intencionalidade.93 A atenção sobre um conteúdo psíquico não depende exclusivamente deste. Num conjunto de vozes que se fazem ouvir ao mesmo tempo é possível prestar atenção a uma das mais baixas. A condução voluntária da atenção é um fenómeno por demais comum e que indica que não são apenas os conteúdos a determinarem- na. Certas qualidades de conteúdos provocam, sem dúvida, que estes se tornem objecto da atenção, mas essas qualidades não se identificam com a atenção. Aliás, há que distinguir entre uma atenção voluntária ou activa e uma involuntária ou passiva. Neste último caso são os conteú- dos que puxam sobre si a atenção. Mas, mesmo neste caso, a atenção prestada não é feita sem a participação do eu. Se este se encontrar de- primido, mais dificilmente um conteúdo consiguirá ser notado por mais intenso ou vivo que ele seja. Porque a atenção é o modo muito espe- cial como o eu se debruça sobre um conteúdo parcial da consciência e apenas por isso o distingue dos outros conteúdos, há que ter em conta o estado do eu nessa relação. Esse estado é um estado de tensão.94 A prova encontra-se nos casos em que a atenção está presa a algo (atenção passiva) ou quando procuramos manter a atenção sobre determinado conteúdo (atenção activa). Em ambos os acasos deparamos com um sentimento de tensão do eu que o mantém preso ao conteúdo notado.

O sentimento de tensão é específico e não se identifica nem com os sentimentos de prazer ou desprazer nem com o sentimento de intender.

92Cf. ibid. p. 17. 93Cf. ibid. p. 17.

94Cf. PFÄNDERIANA C III 1,(p. 57): “Ein Spannungsgefühl ist im Zustande des Aufmerkens immer vorhanden. In dem Dasein eines Spannungsgefühls zugleich mit dem Bewußtsein des Gerichtetseins auf einen Teilinhalt besteht das Bewußtsein des Aufmerkens auf diesen Inhalt.”

Estes sentimentos podem muito bem ser a causa de o eu prestar atenção aos conteúdos que lhes correspondem; não existe contudo uma relação necessária entre eles e a atenção. Nem sempre os objectos de prazer ou desprazer são particularmente notados. Muitas vezes é necessário uma reflexão posterior a fim de detectar as causas de um sentimento de alegria ou de tristeza. Há pois que reconhecer a atenção como um modo específico de o eu se relacionar com certos dos seus conteúdos, de os demarcar dos restantes conteúdos e, portanto, de lhes conferir um lugar predominante no todo psíquico.

O papel constitutivo da atenção não se esgota, todavia, na inter- venção activa no decurso da consciência. Porque a maneira como a atenção visa os seus objectos não é uma única, os objectos alteram- se consoante as diferentes possibilidades em serem notados. Dito de outra forma, a atenção não conhece apenas graus quantitativos segundo os quais se presta mais ou menos atenção a certo objecto, modifi- cando desse modo a corrente psíquica no seu conjunto. Ela possui também diferentes formas de visar o mesmo objecto, formas a que correspondem então objectos diferentes. Pode-se prestar atenção de muitas maneiras à mesma peça musical. Uma vez é sobre o todo que se concentra a atenção, uma outra vez sobre as partes que o compõem, o ritmo, a melodia, a instrumentalização, etc. Face a um todo, a atenção pode centrar-se nele enquanto todo ou enquanto soma das diferentes partes. Ora a par dessas modificações da atenção ocorrem modificações do objecto. O todo que é visado na totalidade é diferente da soma das partes quando são elas o objecto primeiro da atenção.95 Não se trata só de uma variação subjectiva da perspectiva em que um objecto é visado, mas também de uma modificação do objecto, isto é, não é apenas sub- jectivamente que o todo não se reduz à soma das suas partes, também objectivamente (gegenständlich) há uma diferença entre ambos.

De certo modo é um paradoxo o que aqui se nos depara. Prestar

95 “Das Ganze, das nur als Ganzes beachtet ist, ist gegenständlich in nicht näher beschreibbarer Weise verschieden von der Gesamtheit seiner Teile, wenn diese geson- dert gleichzeitig beachtet sind.” PFÄNDER 1900, p. 22.

atenção à mesma coisa não significa necessariamente prestar atenção à mesma coisa. “Quem se apercebe do coro de várias vozes unica- mente como um todo ouve efectivamente o mesmo e, por outro lado, não ouve o mesmo que aquele que, ao escutar, presta atenção sobretudo às vozes. Do mesmo modo, quem presta atenção à palavra como um todo, vê o mesmo e não vê o mesmo que quem presta atenção em espe- cial às letras que a compõem.”96 Nada melhor que este paradoxo para realçar o papel constitutivo da atenção. Os elementos primeiros dados à consciência não são sensações puras anteriores a toda a actividade egológica como pretende o monismo sensualista. Sob o ponto de vista do sensualismo o todo não se distinguiria da soma das suas partes e, portanto, qualquer diferença que se verificasse entre ambos seria ape- nas uma consequência da apreensão subjectiva. O monismo sensualista não admitiria o paradoxo apontado. Quem lesse uma palavra não teria apreendido objectivamente mais que quem se desse apenas conta das letras que a compõem. O facto de apenas o primeiro ter percebido o sentido da palavra atribuílo-ia a teoria sensualista a um acto associa- tivo posterior e não a uma diferença dos conteúdos objectivos origi- nariamente apreendidos. A explicação sensualista vai, porém, contra o testemunho directo da experiência. O sentido da palavra não resulta de uma acto associativo posterior à sua percepção, antes é dado com um certo modo da percepção da palavra. O que está em causa é o modo como se presta atenção à palavra e não as associações a que ela pode dar lugar. O paradoxo acima referido existe pois. Quem lê o texto pres- tando atenção ao fio do pensamento lê a mesma coisa e, no entanto, “lê mais” que quem o lê apenas à procura de gralhas tipográficas. A solução do paradoxo não está em negá-lo, antes em percebê-lo à luz das diferentes formas de atenção e das correspondentes funções consti- tutivas.

96“Derjenige, der den Zusammenklang mehrerer Stimmen nur als Ganzes auffaßt, hört zwar dasselbe, andererseits aber auch nicht dasselbe, was derjenige hört, der diese Stimmen gesondert beachtet. Ebenso, wer das Wort nur als Ganzes beachtet, sieht zwar dasselbe und doch auch wieder nicht dasselbe, wie der, der die Buchstaben des Wortes gleichzeitig gesondert beachtet.” PFÄNDER 1900, p. 22.

Na conferência de 1987 “Zur Theorie der Aufmerksamkeit” Pfän- der distinguira entre uma atenção sensível e uma atenção intelectual ou representativa. No primeiro caso o objecto da atenção situar-se- ia no âmbito das sensações, ao passo que no segundo caso o objecto seria uma representação. Exemplos da atenção intelectual seriam a au- dição de uma melodia ou do discurso de um orador. A atenção sen- sível consistiria na apreensão de um conteúdo sensível enquanto tal e a atenção intelectual na apreensão dos seus elementos e relações.97

Trata-se, como é bem de ver, de uma distinção ainda demasiado sim- ples, assente na distinção dos objectos, e, talvez por isso mesmo, Pfän- der atribui-lhe pouca importância. Constitui, no entanto, o embrião da teoria representativa que Pfänder desenvolve na conferência psicoló- gica posterior “Das Beachten” (1898) e sobretudo no capítulo I,3 “Das ‘Meinen’ oder die Beziehung des Ich auf etwas NichtGegenwärtiges” da Phänomenologie des Wollens.

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 178-183)