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O conceito fenomenológico de intencionalidade

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 153-164)

2.2 Os Dois Conceitos de Intencionalidade

2.2.1 O conceito fenomenológico de intencionalidade

A opinião de Ludwig Landgrebe de que é “fácil ter uma visão de con- junto sobre as relações entre a fenomenologia de Husserl e a escola de Göttingen”20 e, mais ainda, de que essa época do movimento fenome-

nológico se encontra encerrada, assenta na convicção de que os primei- ros discípulos de Husserl apenas aproveitaram temas isolados do pen- samento do mestre, sem se aperceberem da tendênciabase a eles subja- cente.21 Landgrebe contrapõe a essa fase encerrada para a fenomeno- logia de Husserl a necessidade de esta enfrentar a filosofia de Martin Heidegger na medida em que representa um desafio precisamente à sua tendênciabase. Ora, ainda segundo Landgrebe, o motivo base de todo desenvolvimento fenomenológico de Husserl reside na concepção de intencionalidade que lhe é específica. Só por desconhecimento desta especificidade é que os primeiros discípulos de Husserl puderam de- senvolver diferentes aspectos da fenomenologia, tais como a intuição das essências e a análise intencional como método psicológico, mas re- jeitando as consequências posteriormente tiradas por Husserl nas Ideias do que já nas Investigações Lógicas dava a profunda unidade ao todo das investigações epistemológicas ali realizadas. Em boa parte deve- se esse desconhecimento ao facto de Husserl ter adoptado o termo e o conceito de intencionalidade do seu mestre Brentano e de o próprio Husserl, ao início, não ter notado a especificidade da sua concepção. O

20 Cf. LANDGREBE 1949, p. 58. Esta afirmação data de 1949, ainda antes de SPIEGELBERG 1960, obra em que é apresentada pela primeira vez a fenomenolo- gia dos primeiros discípulos de Husserl! Landgrebe usa as expressões “escola de Göttingen” e “discípulos de Husserl” ainda num sentido indistinto que engloba os fenomenólogos de Munique.

21 ibid. Trata-se de uma convicção na medida em que, apesar de Landgrebe escr- ever que isso se deixa demonstrar, tal demonstração ainda está por realizar.

que constitui, porém, o impulso filosófico de Husserl é o que distingue o seu conceito de intencionalidade do de Brentano.

Para Brentano22a intencionalidade indica a relação específica entre os actos psíquicos e os objectos mentais ou intencionais. No centro do interesse de Brentano está, a partir da relação de intencionalidade, em chegar a uma classificação dos fenómenos psíquicos e, depois, avançar para um estudo das relações entre as diferentes classes apuradas. A sua concepção é a de que a cada acto corresponde um objecto inten- cional. A expressão husserliana de “intencionalidade da consciência” não é por ele utilizada e a questão relativa a vários actos poderem ter o mesmo objecto intencional era-lhe estranha. Brentano deixa em aberto os problemas epistemológicos que se prendem com a intencionalidade como sejam a questão sobre a relação do objecto intencional com o objecto real e, ligada a esta, a questão da evidência, por considerar que tais questões eram indiferentes a uma psicologia descritiva unica- mente interessada nos elementos imanentes da consciência. A posição de Brentano é a de um realismo epistemológico que atribui às ciên- cias da natureza a competência de decidir sobre os objectos realmente existentes.

Logo em Philosophie der Arithmetik a concepção de intenciona- lidade diverge substancialmente daquela de Brentano. Nessa primeira obra de Husserl a intencionalidade reveste já o sentido de uma activi- dade produtiva da consciência. Essa produtividade consiste no preen- chimento de uma representação que ao princípio pode surgir vazia. Só assim é possível com o sinal numérico ter uma representação vazia ou cheia, ou mais ou menos preenchida. A representação preenchida do número é aquela que pela via produtiva obtemos pouco a pouco pela contagem.

Intencionalidade significa nesta acepção um visar (Vermeinen) de algo ainda não presente. A representação não se fica pelo que é ime- diatamente dado, antes através dele ela visa algo mais ainda não pre-

22Trata-se aqui de apresentar o conceito de intencionalidade de Brentano tal como é visto por Landgrebe. Não está aqui em causa a rectidão desta interpretração.

sente. Há que distinguir pois entre um visado não genuíno e um visado genuíno. Ao escutar a conversa de alguém o que primeiramente ouvi- mos são sons, estes são o primeiro conteúdo da percepção. Porém, não são os sons o que a audição tem por fim, mas sim a captação do sentido das palavras ouvidas. O visado genuíno é o sentido da conversa. A in- tencionalidade da representação não é pois mais entendida no sentido estático de Brentano, antes ela significa o dinamismo da representação em indicar mais do que nela está imediatamente presente. Intenciona- lidade é tomada no sentido literal de que a consciência tende para o objecto genuinamente visado, de que procura (Streben) preencher a sua intenção. Ora nesta passagem de uma representação não genuína a uma representação genuína, da intenção ao seu preenchimento, temos uma actividade (Leistung) que tem por finalidade a constituição (Herstel- lung) da representação genuína. Esta actividade constitutiva da cons- ciência é o laço que une os diferentes actos psíquicos de modo que os actos vazios ou de simples intenção indicam os actos de intuição ou de preenchimento. Com esta concepção de intencionalidade Husserl ultra- passa definitivamente o sensualismo atomista psíquico que ainda se faz sentir na classificação espartejante dos actos psíquicos por Brentano. A afirmação posterior de Husserl de que a essência da consciência é actividade sintética (synthetische Leistung) é simplesmente o desen- volvimento consequente da ideia de intencionalidade já presente na sua primeira obra.

2.2.2

Os manuscriptos husserlianos de 1893 e 1894

Esta exposição de Landgrebe merece algumas correcções à luz da pu- blicação em 1979 de importantes manuscritos de Husserl23, datados de 1893 e 1894, sobre o tema da intencionalidade. Segundo o editor desses textos, Bernhard Rang, eles mostram que Husserl aborda o problema da intencionalidade de duas perspectivas diferentes, chegando também

23 HUSSERL 1979. “Anschauung und Repräsentation, Intention und Erfüllung” de 1893, pp. 269-302, e “Intentionale Gegenstände” de 1894, pp. 303-348.

a dois conceitos diferentes de intencionalidade que de comum pouco mais têm que o nome.24 Ocupando-se do problema das representações

sem objecto Husserl determina, por um lado, intencionalidade como relação das representações ao objecto, ao passo que na averiguação das ligações entre intuição e representação define intencionalidade como a intenção de certas representações dirigida às intuições correspondentes de preenchimento. Este duplo sentido de intencionalidade encontra-se ainda nas Investigações Lógicas e o próprio Husserl dá-se conta dessa ambiguidade.25

Em “Anschauung und Repräsentation” de 1893 e em “Psychologis- che Studien zur Elementaren Logik” de 189426, Husserl desenvolve o

segundo conceito de intencionalidade referido por Rang e que é aquele que Landgrebe tem em mira. O problema que Husserl tenta resolver no manuscrito de 1893 com este novo conceito de intencionalidade é o mesmo que Ehrenfels expõe no artigo “Über Gestaltqualitäten” de 1890. Como é possível perceber a unidade de um conteúdo complexo como é o caso da melodia ? O que é dado imediatamente à consciência são intuições sucessivas de diferentes sons. Trata-se pois de saber em que consiste a unidade do todo que constitui a melodia e de mostrar que o todo não se reduz à soma das suas partes. Husserl aborda o pro- blema sob o ponto de vista de que há um único acto virado para o todo da melodia. “Uma melodia não é uma soma de intuições isoladas na medida em que a sucessão ou o desenvolvimento dos seus sons ocorre num único acto permanente. Ainda que a cada som corresponda um acto singular, terá que haver um acto que abarque a unidade do todo na medida em que faz parte em cada momento da matéria da atenção.”27

24Cf. RANG 1979, p. XLIX.

25Cf. HUSSERL 1984, p. 393; cf. RANG 1979, pp. L-LI. 26Cf. HUSSERL 1979, pp. 92-123.

27“Eine Melodie ist auch insofern nicht eine Summe gesonderter Anschauungen, als die zu ihr gehörigen Folgen bzw. Auseinanderentwicklungen von Tongestal- ten in einem (zeitlich dauerden) Akte verlaufen. Mögen den einzelnen Tönen und Gebilden auch besondere Akte entsprechen, ein Akt muß dasein, der übergreifend die inhaltliche Einheit umspannt, soweit sie in jedem Momente Inhalt eines Bemerkens

Husserl acha então que é inevitável dar dois sentidos ao termo in- tuição, um restrito e um lato. Em sentido restrito intuição é o conteúdo imanente e primário de uma representação. Em sentido lato é o con- teúdo de um acto prolongado, mas único, da atenção. Assim a melodia é uma intuição em sentido lato, ao passo que os diferentes sons fazem parte de intuições restritas. A primeira abarca as segundas. Mas, não só relativamente a objectos extensos no tempo se encontra esta distinção de intuições. Também um objecto da visão é dado numa sucessão de intuições momentâneas (em sentido restrito) englobadas por uma única intuição prolongada (em sentido lato). De uma mesa vemos de cada vez ou em cada momento apenas uma parte, o tampo, as pernas, etc. No entanto, dizemos, que o objecto da nossa percepção é a mesa e não as suas partes embora sejam estas o objecto imediato da visão ou do tacto. A conclusão tirada por Husserl deste estado de coisas é que o objecto é uma síntese de múltiplas intuições.28

No acto momentâneo é o todo que é intendido e não o conteúdo parcial efectivamente presente. Quer isso dizer que do todo temos uma representação.29 Neste sentido não visamos propriamente o que

é dado imediatamente à consciência, antes encontramo-nos voltados para algo não presente, significando-o e mesmo determinando-o.30 O

ist.” HUSSERL 1979, p. 269.

28 “Einen Gegenstand überhaupt, eine objektive Einheit zur Anschauung bringen, das heißt aus der ideellen Vereinigung von Bestandstücken, deren gedanklicher Syn- thesis er seine Einheit dankt, diese Bestandstücke (Teile oder Merkmale) successive in einer unser Interesse befriedigenden Vollständigkeit zur Anschauung bringen.” ibid., p. 274.

29 Husserl introduz o termo de origem latina “Repräsentation” para designar uma “uneigentliche Vorstellung” ou “bloße Vorstellung”. Como em português dispo- mos apenas do termo “representação” para traduzir “Repräsentation” e “Vorstellung” recorreu-se a uma distinção ortográfica para traduzir a diferença terminológica alemã. Cf. FRAGATA, 19832, p. 58.

30 HUSSERL 1979, p. 284: “Vorstellen in diesem zweiten Sinne der Repräsen- tation (...) bedeutet nicht das einfache Hingewendetsein auf einen präsenten Inhalt, sondern ein Hinweisen auf ein durchaus nicht immer Präsentes, dasselbe meinen, es passend bestimmen, für dasselbe als Ersatz stehen.”

juízo “a mesa é castanha” reportase à mesa no seu todo e não apenas às partes que realmente vejo. No entanto, assim como este juízo se baseia numa intuição efectiva, mas incompleta, assim também todas as re-presentações se baseiam em intuições.

Representação é uma relação entre representante e representado. A função do representante é representar o representado. Ora esta relação tem diferentes formas. Husserl distingue no manuscrito em causa en- tre uma representação simbólica e uma representação conceptual. A primeira é aquela em que um conteúdo funciona como um sinal ou símbolo de um outro conteúdo. Ou seja, a função do primeiro é desviar a atenção para o segundo quando este se encontra presente ou, no caso da sua ausência, de o tornar presente ou então de lhe encontrar um substituto. A representação simbólica não é necessariamente analó- gica. Entre um relâmpago e um trovão não há qualquer analogia e o primeiro representa geralmente o segundo. A visão de um relâmpago cria a expectativa da audição do trovão e se este não for ouvido – o caso de uma trovoada longínqua – então a expectativa pode ser satis- feita com um substituto fantasiado.

Na representação conceptual temos dois modos. Um em que o con- ceito é dado com uma representação concreta intuitiva. É habitual- mente o caso dos conceitos dos objectos sensíveis. O outro em que o conceito não é dado com a intuição correspondente. Aqui o conceito origina um processo que tem por finalidade a reprodução da intuição por ele visada. Este processo pode decorrer por etapas. Os passos de uma resolução algébrica, por exemplo, são o preenchimento do passo anterior e significam (meinen) o passo seguinte até atingirem a solução final em que a intenção inicial será plenamente realizada.

Digno de nota neste estudo de 1893 sobre a intencionalidade é o de- senvolvimento do binómio intenção-preenchimento a partir do binómio da psicologia herbartiana da produção e reprodução de representações.

31 Husserl utiliza mesmo conceitos herbartianos para explicar a sig-

nificação de certas representações por outra.32 Vejamos: Toda a re- presentação assenta em intuições.33 A função representativa é uma “re-

lação disposicional” entre a representação e a intuição.34 Uma pequena sequência de sons desperta em nós uma determinada melodia graças à “disposição” que uma audição passada criou em nós. É na base desta disposição que agora os sons ouvidos nos impelem à “reprodução” da melodia. Em nós surge a expectativa de ouvirmos os sons que “dis- posicionalmente” se seguem aos sons ouvidos. Temos o “sentimento” de que aquela sequência de sons se encontra incompleta. Queremos ouvir o que falta. O objecto agora verdadeiramente visado é a melodia no seu todo e não a sequência de sons que realmente foi ouvida. Esta tornou-se um símbolo do todo. Pode suceder, no entanto, que esses sons façam parte de uma outra melodia e não daquela que julgávamos. A expectativa é gorada. Gera-se um “impedimento” para levar a cabo a reprodução iniciada. A expectativa dá lugar à insatisfação.35 Com efeito é próprio a toda a disposição ser vivida. Ela tende para a repro- dução e a reprodução é a sua realização. Daí surge o sentimento de satisfação.

A importância desta afinidade entre a teoria da intencionalidade de Husserl e a a teoria da reprodução das representações na psicologia tradicional, ou melhor, a mostragem de que Husserl desenvolve o seu conceito específico de intencionalidade a partir da psicologia herbar- tiana tem um grande significado no objectivo que aqui nos move pois que também os fenomenólogos de Munique desenvolveram a sua teoria da significação à luz do binómio da produção e reprodução de repre- sentações como à frente se provará. Aliás o terreno comum às duas doutrinas da intencionalidade, à de Husserl e à dos fenomenólogos de

32 Neste manuscrito encontra-se uma referência a Lipps a propósito da proximi- dade do seu conceito “Fortsetzungstrieb” relativamente ao carácter presente em certas intuições de continuarem ou finalizarem-se em outra intuições. Cf. HUSSERL 1979, p. 271.

33HUSSERL 1979, p. 275: “Alle Repräsentation beruht auf Anschauung.” 34Cf. ibid., p. 279.

Munique, não se ficará por aqui. Daqui a necessidade de apresentar preliminarmente com um certo detalhe o caminho trilhado por Husserl na determinação do conceito de intencionalidade.

No artigo de 1894 “Psychologische Studien zur Elementaren Lo- gik” Husserl aprofunda a noção de intencionalidade como caracterís- tica de uma dada espécie de actos psíquicos, a saber das re-presenta- ções. Aqui surge efectivamente uma divergência decisiva entre Husserl e Brentano. Este último vira precisamente na intencionalidade o ele- mento específico dos actos psíquicos. As classes de actos psíquicos, representações, juízos e actos de interesse, isto é, de amor e de ódio, são todas elas determinadas pela relação intencional com o objecto re- spectivo. Husserl, ao contrário, toma aqui intencionalidade no sentido literal do termo. A intuição não intende o objecto pois que já se encon- tra dado. Ela não o re-presenta ou apresenta, o objecto já se encontra presente e, por isso, não há margem para um movimento em direcção a ele.36 O sentido de intencionalidade é agora o de visar o que não está presente, de o tornar presente, de o re-presentar. A função da intuição é, sob este ponto de vista, a de vir realizar a tenção existente na re- presentação, o mesmo é dizer, de preencher a sua intenção. É nesta or- dem de ideias que Husserl define as representações em sentido restrito como as vivências psíquicas que através de certos conteúdos presentes à consciência visam conteúdos não presentes, vivências, em suma, cu- jos objectos não são imanentes à consciência, mas apenas intendidos. As intuições, por seu lado, são as vivências que não intendem sim- plesmente os seus objectos, mas que os abarcam efectivamente como conteúdos imanentes.37

Também o problema tratado neste artigo se centra na questão de como através de um conteúdo presente se visa um não presente. À semelhança do que já fizera no manuscripto de 1893, Husserl volta a abordar esta questão a partir do conceito fringes de William James. Todo o objecto intuído é-o num determinado contexto, num cenário de

36RANG 1979, p. L; FRAGATA, 19832, p. 58. 37Cf. HUSSERL 1979, p. 107.

fundo. O livro que agora vejo está em cima da secretária, ao lado de outros livros, junto ao ficheiro e está mesmo em frente do tinteiro. É possível, no entanto, abstrair destes objectos e fixar o livro, centrar nele a atenção. A intuição é um acto delimitado e delimitante. O que intuo é tão-só o livro que, por seu lado, é sempre situado. O campo (Hof ) do conteúdo intuído pode ser notado e, circunstancialmente, intromete-se mesmo no olhar da consciência. Mas só o primeiro objecto, o livro, é o conteúdo imanente da intuição.38 A diferença entre a re-presentação

e a intuição não é quantitativa. O conteúdo da re-presentação não é maior que o da intuição que lhe está na base. O que distingue a re- presentação da intuição é a diferente forma de consciência, a partici- pação psíquica (das Zumutesein39), específica a uma e outra. Um ex- emplo tornará clara esta diferença. A mesma coisa pode ser objecto de uma intuição e de uma re-presentação. Um arabesco é visto sob um ponto de vista puramente estético. Trata-se de um objecto da in- tuição. De repente notamos que se trata de um símbolo, por exemplo de uma palavra. O que é visado agora não é o arabesco em si, mas o que ele representa. Materialmente nada se acrescenta ao conteúdo, antes há uma nova forma de o visar. O que anteriormente estava no centro da atenção passa agora para a periferia. Porém, o representante não se esgota na sua função representativa. Ao lermos um livro não no- tamos habitualmente a configuração gráfica; o tipo de letra passa-nos geralmente despercebido. Mas a função representativa pode ser per- turbada por uma inofensiva gralha ortográfica. Então damo-nos conta do representante. A representação também possui as suas “franjas". É que a re-presentação ocorre através de meios de re-presentação e estes meios são as intuições que estão na base daquela. Há que distinguir entre as duas vivências psíquicas simultâneas que têm lugar numa re- presentação. A leitura de um livro pressupõe a sua visão, mas de modo algum se reduz a ela. Um leitor do livro não vê mais que um analfabeto que não seja cego. Importa pois salientar que o conteúdo imanente da

38Cf. ibid., p. 114. 39Cf. ibid., p. 115.

re-presentação não é intuído.40

Husserl faz notar no fim do artigo a importância fundamental destas análises sobre a intencionalidade para a psicologia em geral e em par- ticular para a psicologia do conhecimento e para a lógica. Para a psi- cologia, na medida em que é essencial a uma série de actos extrema- mente importantes, como aos do desejo e do querer, terem por base re-presentações.41 Ou seja, Husserl reconhece neste artigo a importân- cia desta acepção de intencionalidade para uma psicologia do querer. Veremos à frente que é precisamente este motivo que levará Alexander Pfänder na Phänomenologie des Wollens a desenvolver o conceito de intencionalidade como função simbólica.

A outra pista seguida por Husserl na determinação do conceito de intencionalidade prende-se com o problema das representações (Vors- tellungen) sem objecto. No manuscrito “Intentionale Gegenstände” de 189442, onde Husserl discute a teoria exposta por Twardowski em Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen, intencionalidade é entendida como a relação entre as representações em sentido lato, isto é, englobando também as intuições, e o seu objecto. Como as razões desta incursão pelos escritos do primeiro Husserl se prendem sobretudo com o sentido acima exposto de intencionalidade como re-presentação, bastará agora uma breve exposição do conceito de intencionalidade de- senvolvido em “Intentionale Gegenstände".

Segundo Bolzano há representações sem objecto. Não há nenhum objecto que corresponda às representações “um quadrado redondo” e “o actual rei de França”. Elas possuem um sentido, de contrário não as entenderíamos, mas não têm um objecto ao qual se reportem. O seu significado, portanto, é de que representamos um objecto que é redondo e quadrado ao mesmo tempo, mas esse objecto não existe. A posição de Brentano é diferente. Como acto psíquico a representação terá de ter necessariamente um objecto.43 Uma representação sem objecto não é

40Cf. ibid., pp. 116-117. 41Cf. ibid., p. 120. 42Cf. ibid., pp. 303-348.

representação. Twardowski tenta resolver o dilema com a distinção en-

No documento O Realismo da Fenomenologia de Munique (páginas 153-164)