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A gênese (e a dominação) do abstrato

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 89-104)

2.2 O lugar da fronteira

2.2.1 A gênese (e a dominação) do abstrato

O nascedouro da abstração, segundo Lefebvre (1991b) está no momento em que a paternidade se impõe sobre o solo, sobre os bens e a família, estabelecendo propriedades e leis. Em oposição à figura feminina comandada pelo imediato e a reprodução da vida , o poder paternal somente é possível a partir dos signos, das mediações abstratas, e é esse poder que resultará, mais adiante, na laicização e racionalização da vida, na liberação das obrigações político- religiosas, na decodificação do mundo e, por fim, na constituição dos Estados nacionais. Trata-se de um processo crescente de abstração que não se deve a eventos ou instituições específicos, embora muitos deles tenham contribuído consideravelmente para isso.

De acordo com o autor, esse processo de predomínio da abstração começa a tomar fôlego na Europa Ocidental do século XII, quando a sociedade passa a trocar os costumes pelo contrato e, então, a oferecer luz às sombras próprias do subterrâneo. Apesar de definir um ponto de ruptura, esse espaço ainda não é abstrato, garante Lefebvre. A condição destruidora do dinheiro e da mercadoria não se manifesta nesse momento. Ao contrário, é a função libertadora e dessacralizadora que prevalece na praça de mercado.

Uma grande parte mesmo que em declínio da "cultura", das impressões e representações, permanece crípitica, ainda vinculada a lugares sagrados, condenados ou assombrados cavernas, grutas, vales sombrios, túmulos e santuários subterrâneos (Lefebvre, 1991b, p. 267, grifos do autor).

Somente com o século XV, quando os pintores do Quattrocento italiano irão anunciar a passagem do críptico ao decodificado, e seus desdobramentos no século seguinte, quando o campo se renderá à cidade na Europa Ocidental, será

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possível, segundo Lefebvre, falar de um código do espaço . Grosso modo, esse código composto de um alfabeto formal e prescrições de ordenação estilística, entre outros elementos tem como base os trabalhos de Vitrúvio, tratadista romano da Antiguidade Clássica que, redescoberto na Renascença, ofereceu os pilares para a arquitetura e a engenharia modernas.

No entanto, essa linguagem, composta de planos e vistas que se multiplicam, concebe e escreve a cidade em um momento no qual a propriedade mobiliária e o comércio prevalecem sobre a propriedade do solo e a produção agrícola. Esse tempo, marcado pela ascenção da cidade de base comercial e a instituição dos sistemas urbanos do século XVI a rede de cidades que se estende pelo território dominado , permite que a cidade se manifeste como entidade unificada, ou nas palavras de Lefebvre (1991b, como sujeito . É exatamente nesse fato que reside o novo em relação à Roma de Vitrúvio. Se nos tratados clássicos a cidade não passava de um ajuntamento de monumentos e casas, na Renascença, o que Lefebvre denomina efeito urbano faz com que ela se constitua em [...] um conjunto harmonioso, um organismo mediador entre a terra e o céu Lefebvre, 1991b, p. 271).

Tal poder de mediação da cidade e do sistema urbano esclarece o porquê de a abstração ainda não ter completado, nesse momento, seu projeto de destruição da natureza e de negação da história, fato que ocorrerá mais à frente, quando um grau de abstração superior, dado pelo poderio do Estado, irá se firmar. Originado das revoluções e em meio à acumulação de riquezas garantida pela violência das guerras, o Estado moderno se ergue a partir do pressuposto de sua soberania, solapando o que encontra pela frente e tudo que o antecede: o poder religioso, as classes e grupos diversos, qualquer contradição que ameace

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seu domínio sobre o espaço. O homogêneo é seu alvo, a busca por uma sociedade unificada e aparanetemente isenta de contradições se transforma em uma meta. É com sua glorificação, portanto, que o espaço abstrato se constitui definitivamente (Lefebvre, 1991b).

O que, de fato, merece antenção é que esse limiar já foi cruzado, que o espaço abstrato está aí, a espera de iniciativas que o decifrem, ou melhor, que revelem o que há por detrás de sua falsa transparência, camada a camada. Lefebvre seguirá esse caminho em sua obra, esmiuçando esse espaço, caracterizado por ele como fálico-vídeo-geométrico e organizado a partir desses três elementos formantes. Nesse sentido, o espaço abstrato é geométrico, ou seja, euclidiano em busca da redução da natureza e da história à homogeneidade, do tridimensional ao plano bidimensional [...] uma folha de papel em branco, um desenho sobre essa folha, um mapa ou qualquer outra representação gráfica ou projeção Lefebvre, b, p. . . Quanto ao seu formante ótico ou visual, é ele o responsável por exilar os objetos, colocá-los à distância, reduzindo a uma imagem passiva. É, portanto, um espaço visual não simbolicamente, mas de fato. O predomínio do reino visual implica uma série de substituições e deslocamentos por meio dos quais o visual conta de todo o corpo e usurpa o seu papel Lefebvre, b, p. . Por fim, o formante fálico é o que preenche o espaço para além das imagens, é o símbolo da violência e força masculinas com todos os seus meios de repressão.

Mas se a instalação do abstrato não significa a eliminação completa do que o precede, seria oportuno tentar compreender as relações e os desdobramentos desse conjunto de conceitos rumo à construção de uma utopia necessária: o espaço diferencial lefebvriano. Se para o autor não existe um espaço vazio a

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tábula rasa sobre a qual é possível partir de um instante nulo , são as precedências que permitem a edificação de um novo momento e o que permanece é o material constituinte e base da nova realidade. Assim, o espaço diferencial não emerge de outra realidade senão das contradições próprias do espaço abstrato, este, por sua vez, uma negação daquilo que lhe serve de sedimento e suporte, ou seja, os espaços absoluto e histórico. Assim, o espaço abstrato lefebvriano emerge como zona crítica, lugar de tensão entre o que poderá nascer e o que já está posto e definido. Ele se define como um estado de turbulência instaurado entre o espaço diferencial e os espaços absoluto e histórico. Sua marca é a negatividade, a negação daquilo que o sucede em potencial e de tudo o que o precede. O que pode vir a partir dele? O retorno às diferenças esmagadas e apresentadas pasteurizadas. O que lhe serve de base? A natureza e a história transformadas em nostalgias.

Mas se a transparência do espaço abstrato é enganosa e exige especial atenção, as dualidades inerentes ao espaço absoluto o tornam tão fugidio quanto instigante. Religioso e político, o espaço absoluto tem sua origem no conjunto de lugares nomeados e trabalhados pelo homem. É o espaço do qual o homem toma posse, domina e se apropria em suas atividades cotidianas. Ele apresenta, portanto, uma existência social, uma realidade específica, ao mesmo tempo em que seu caráter mítico e próximo faz dele o gerador dos tempos e dos ciclos, conferindo-lhe uma existência mental e fictícia . O espaço absoluto, em Lefebvre, desenvolve-se entre esses dois polos, nas confluências entre a ficção e a realidade, ou melhor, na transcendência dessa oposição, [...] trata-se de um espaço, de uma só vez e indinstintamente, mental e social, que compreende toda a existência do grupo [...] Lefebvre, 1991b, p. 240).

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Quanto à forma, geralmente ele é definido por um contorno que o distingue na paisagem e, simultaneamente, permite articular toda a vida e estabelecer relações. Como define Lefebvre, o espaço absoluto é o guardião da unidade cívica, do laço entre os membros de um grupo. Assim são os templos, os monumentos, os palácios, mas também podem ser os espaços somente indicados ou sugeridos, ou ainda, um espaço que não se situa em lugar algum, mas reúne todos eles. No entanto, não é somente porque o mental se realiza por meio dessas atividades sociais como o imaginário que se converte em realidade em templos e palácios que o espaço absoluto é, ao mesmo tempo, fictício e real. Esse espaço é vivido, é ao corpo que ele se dirige, especificamente ao [...] interstício irrenunciável entre o espaço do corpo e os corpos no espaço

o interdito Lefebvre, b, p. .

Desse espaço absoluto é que procede o espaço histórico, no qual a historicidade esgarça a naturalidade e instaura a acumulação de riquezas, recursos, conhecimentos, técnicas, símbolos e objetos diversos. Não por acaso, seu centro é a cidade sujeito que domina o território e detém o poder de concentrar e reunir em torno de si e para si tudo e todos. Nesse processo, o espaço absoluto não desaparece, mas sobrevive como alicerce do espaço histórico e suporte de espaços de representação religiosos, simbolismos mágicos e política (Lefebvre, 1991b, p. 48). Essa organização do espaço na história, constituindo redes e centros econômicos e de informação, é o que servirá de apoio à abstração do espaço, à distinção completa entre a produção e a reprodução. A cidade, lócus privilegiado da acumulação, é o que reunirá as condições necessárias para o domínio do espaço abstrato, fato que resultará na sua própria explosão.

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Contudo, é também a negatividade inerente ao espaço abstrato que tornará possível a insurgência do espaço diferencial anunciado pelo autor. São as contradições próprias do espaço e o nascimento de novas contradições que levarão à corrosão da abstração, cavando o seu fim. Algumas delas são históricas, outras surgem da dissolução de velhas relações, mas a todas o espaço abstrato tenta escamotear e apresentar em homogeneidade. Em oposição, o espaço diferencial restaura as diferenças outrora negadas pela abstração, não somente as diferenças dadas pela natureza e pela história, mas também as diferenças entre os corpos, sexos, gerações e etnias. Ele irá reunir a unidade destruída pelo espaço abstrato: as funções, os elementos e momentos da prática social. Ele vai exterminar essas localizações que destroem a integridade do corpo individual e social [...] Lefebvre, 1991b, p. 52). Afinal, sua insurgência só é possível quando se põe em evidência as diferenças e, sendo o espaço diferencial desdobramento de outras realidades, necessariamente, ele contém todas as demais que o precedem e é construído a partir dos sedimentos deixados por cada uma delas.

2.2.2 (Re)unindo as diferenças

Diante da sobreposição de diferenças que é própria à concepção da fronteira, uma das imagens mais promissoras para pensar suas relações internas e também entre ela e o mundo que a envolve pode ser encontrada em Michel de Certeau (1998), para quem a fronteira funciona como um terceiro elemento, que não pertence a nenhum dos seus lados limítrofes e, ao mesmo tempo, carrega traços de todos eles. A fronteira em de Certeau é um lugar entre dois ou

entredois, termo que também aparece na antropologia de Michel Agier (2011, p.

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demasiado fora e, exatamente devido a essa condição intermediária, capazes de ligar polos distintos ainda que pela via do conflito. Assim, aqui entendida como entredois, a fronteira é ponto de contato entre racionalidades diversas e inerentes a sua lógica de povoamento. Como terceiro elemento e diante do capital, é síntese do que está sob o seu jugo e do que não está.

A (dis)junção entre esses dois ou vários outros polos distintos em grande parte se dá graças a origem dos sujeitos que ali se estabelecem nas sucessivas levas de migração. Esse aspecto demográfico da fronteira é o que põe em cena o estranho (Martins, 1993). Personificação da ameaça frente ao mundo previsível, o estranho sempre esteve associado ao sujeito que transgride as fronteiras, que não se adapta aos mapas formulados pelo grupo do qual se origina, como define Zigmunt Bauman (1998). Entretanto, para além dos tipos desviantes que parecem dominar o pensamento de Bauman aqueles que toda sociedade produz e também de algum modo cria os instrumentos de sua anulação , o estranho em questão é o que se constitui como outro diante do eu na relação entre os diferentes ou na criação das diferenças entre semelhantes. Embora não haja a pretensão aqui de desenvolver esse debate sobre a instauração da alteridade, ao qual tem se dedicado ciências como a Psicologia e a Filosofia19,

seria importante apenas explicitar a importância das (dis)junções entre esses sujeitos na fronteira ora eu, ora outro para o entendimento desse espaço como campo de forças. Afinal, explica José de Souza Martins (1997), é a produção dessas diferenças, que ocorre pelos mais diversos motivos, o que faz da fronteira o lugar privilegiado da alteridade.

19 Uma extensa discussão sobre o lugar da alteridade pode ser encontrado em Sartre e em torno

de sua obra. A famosa frase do autor francês na peça teatral Entre quatro paredes, O inferno são os outros Sartre, , p. 125) e sua discussão sobre o olhar externo na construção desse nexo entre o eu e o outro num intenso processo de afirmação e negação (Sartre, 2003) são exemplos de sua contribuição para o debate.

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Tomando a expressão da fronteira no Brasil, e a observando a partir de uma perspectiva rural, Martins (1997) propõe um esquema que permite visualizar com certa facilidade essas lógicas de ocupação distintas em dois movimentos: a frente de expansão e a frente pioneira. Ambas são concepções de referência em estudos da Antropologia e Geografia respectivamente, e que, além de expressarem o debate sobre a fronteira, evidenciam as fronteiras científicas e os pontos de contato de cada disciplina com o próprio fenômeno estudado. Concepção mais próxima da Antropologia, a frente de expansão surge como o avanço do capital a partir de uma forma que não pode ser qualificada como caracteristicamente capitalista, baseada em [...] rede de trocas e de comércio, de que quase sempre o dinheiro está ausente, sendo mera referência nominal [...] Martins, , p. -157), em um mercado que opera pela mediação de relações pessoais. Já a frente pioneira que aparece nos estudos da Geografia é, segundo o autor, uma das dimensões da reprodução capitalista do capital, [...] sua reprodução extensiva e territorial, essencialmente mediante a conversão de terra em mercadoria e, portanto, em renda capitalizada [...] Martins, , p. 156). Assim, enquanto a primeira linha de pesquisa se refere a uma fronteira demográfica, ou seja, a fronteira da civilização , a segunda dá destaque a uma fronteira econômica, à entrada definitiva das relações sociais de produção próprias ao capitalismo.

É fato que, ao fim, as duas frentes representam o movimento do capital; são momentos históricos distintos e combinados de diferentes modalidades de sua expansão territorial. Entretanto, algumas distinções, sobretudo vinculadas às temporalidades dos sujeitos, são necessárias e tornam perceptível a datação histórica elaborada pelo autor para o caso brasileiro: o esquema é composto por

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duas linhas de fronteira (uma demográfica, outra econômica) e três situações socioespaciais (a zona de ocupação antiga, a frente de expansão e a frente pioneira). Entre a zona de ocupação antiga e a frente de expansão, impõem-se a fronteira demográfica. Entre a frente de expansão e a frente pioneira, está a fronteira econômica. Na fronteira demográfica estão os conflitos entre populações indígenas e aqueles agentes da civilização que ainda não são os agentes típicos da produção capitalista. Nela, a caça ao índio por seringueiros e seringalistas chegou a dizimar aldeias inteiras até os anos 1960, pelo menos. Ao mesmo tempo, são os sujeitos da frente de expansão que, diante de uma fronteira econômica, confrontam-se com os que incorporam a frente pioneira, aqueles que são, de fato, os agentes da economia capitalista . É ali o lugar onde, por exemplo, posseiros e grandes latifundiários se desencontram, onde o pequeno agricultor próspero e o camponês dedicado ao que Martins chama de

economia de excedentes 20 vivem temporalidades diferentes (Figura 3).

20 O raciocínio que organiza a atividade produtora, neste caso, inclui desde o início, a ideia de

que parte da produção será consumida pela família e outra parte destinada à troca ou venda. O excedente não é a sobra do que o grupo familiar consumiu, mas um elemento concreto do qual o agricultor tem consciência antes mesmo da sua produção. A economia de excedentes não é, portanto, uma economia de subsistência, assim como também se diferencia da prática do pequeno produtor capitalista, uma vez que este não tem consciência do que vai constituir o excedente destinado à sua acumulação ou à apropriação feita pelo capital (Martins, 1997).

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Figura 3 - Fronteira em J. de S. Martins Fonte: Elaborado a partir de Martins, 1997.

Essa abordagem que distingue a fronteira a partir de suas dimensões demográfica e econômica tem algumas limitações, como observa Donald Swayer (1984), pois não faz sentido falar em ocupação demográfica isenta de atividade econômica, mas sim perceber que algumas atividades da economia demandam baixa ocupação demográfica. Segundo o autor, a fronteira é definida principalmente por suas atividades produtivas, ou ainda, pela organização econômica das diversas frentes que nela se instalam. O entrecruzamento dessas frentes, com suas combinações específicas de forças produtivas e relações de produção, é o que confere concretude ao espaço da fronteira e lhe garante heterogeneidade.

Nesse sentido, a fronteira poderia ser considerada um espaço que oferece condições para a expansão de atividades econômicas antes ausentes, ou presentes em escala menor. O oposto da fronteira, que seria uma espécie de antifronteira, corresponderia a um espaço em que as condições favorecem a retração de atividades econômicas antes presentes em escala maior (Sawyer, 1984, p. 5-6).

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É fato que a dimensão econômica não pode ser dissociada dos processos demográficos, como alerta Sawyer, mas a abordagem de José de Souza Martins (1997), inspirada por estudos clássicos sobre a fronteira, parece permanecer útil para o entendimento ao menos de que a clivagem desses sujeitos sociais que integram cada uma dessas frentes está na diferença entre os tempos históricos vividos por eles. A situação de contato e a alteridade construída pelas diferentes temporalidades, no limite, põem em xeque o lugar do humano nessa zona de desencontro. É na fronteira que se pode observar melhor as contradições entre o humano e o não-humano elaboradas teoricamente; é na fronteira que se pode apreender

[...] como as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem. É lá que melhor se vê quais as concepções que asseguram esses processos e lhe dão sentido. Na fronteira, o Homem não se encontra se desencontra. Não é nela que a humanidade do Outro é descoberta como mediação da gestação do Homem (Martins, 1997, p. 12).

De acordo com o autor, essa fronteira da humanidade é prioritariamente percebida nos (des)encontros entre a zona de ocupação antiga e a frente de expansão, na qual a dimensão econômica é secundária. Parece, no entanto, pouco provável que essa (dis)junção seja privilégio de um ou outro território e que o predomínio de uma dimensão econômica (ou de uma economia do capital) seja capaz de liquidar distinções entre o humano e o não-humano. Reconhecer a existência de outras humanidades que podem ser descobertas por qualquer tipo de contato talvez seja mais adequado. Afinal, essa distinção entre o humano e o não-humano, é o que tem permitido, por exemplo, a subordinação desses outros à racionalidade de quem promove a colonização da fronteira e, no Brasil, isso vai da preação do índio nas primeiras bandeiras ao trabalho escravo que subsiste em fazendas espalhadas pelo interior. Ou seja, em

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uma determinada abordagem o não-humano são aqueles que estão do outro lado da margem, os que não têm humanidade, ou pelo menos não a mesma humanidade.

A etnologia indígena mostra o quão diferente pode ser a constituição dessas humanidades, a partir de que lugar elas se constroem e em torno de quais elementos. Sobre o lugar dessa construção, como define Viveiros de Castro (1996, p. , grifos do autor , enquanto [...], a cosmologia construcionista pode ser resumida na fórmula saussureana: o ponto de vista cria o objeto , o perspectivismo trazido pelos ameríndios ao autor [...] procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito; será sujeito quem se encontrar ativado ou agenciado pelo ponto de vista . A respeito do que é acionado para essa construção, uma explicação dada também pela Antropologia, a partir das relações iniciais entre brancos e índios, parece útil. Os métodos de averiguação da humanidade postos em prática pelo europeu nas Américas revelam a assimetria entre dois mundos, que só recentemente têm sido desveladas. O grande diacrítico, o marcador da diferença de perspectiva para os europeus é a alma (os índios são homens ou animais?); para os índios, é o corpo (os europeus são homens ou espíritos? Viveiros de Castro, , p. .

Indo além da humanidade entre humanos, a Antropologia apresenta ainda que, em algumas sociedades, são atribuídas intencionalidade a animais e outros seres não-humanos e que, nessas condições, o outro responde não como uma simples força física de reação, mas porque é dotado de intenções. É o caso dos próprios ameríndios estudados por Viveiros de Castro (1996, p. 119), que, na contramão da cosmologia evolucionista ocidental, informam que a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a

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humanidade . Assim, se o antropocentrismo de base cartesiana é o responsável pelo divisor que estabelece os limites entre natureza e cultura, para os ameríndios a diferenciação do humano não ocorre a partir do animal. Seus [...] mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais Viveiros de Castro,

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