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A invenção da fronteira em São Félix do Xingu

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 34-47)

Se esse conjunto de textos múltiplos é o que parecia nos permitir experimentar uma tentativa de apreensão das narrativas que constituem a fronteira, a sobreposição desses discursos no tempo e no espaço foi responsável por alguns outros deslocamentos na trajetória repleta de desvios que percorremos. A situação de contato colocada pela fronteira confere, ao espaço sobre o qual ela avança, condições privilegiadas para a manifestação da alteridade em suas formas mais agudas. Essa zona de encontros e desencontros de forças assimétricas é o que permitiu, ao longo da história, que determinados grupos fossem subjugados ou mesmo exterminados por completo. Esse lugar atravessado por racionalidades distintas é o que ainda leva, hoje, a disputas pelo território e também pelos recursos que a terra a conquistar pode oferecer.

12 Como explicam Limonad e Lima , p. , a partir de Henri Lefebvre, [...] a ordem

próxima e ordem distante contrapõem-se e interpõem-se de maneira incessante em um constante ir e vir da vida cotidiana no mundo moderno às determinações gerais .

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Essa situação nos é lembrada a todo o momento em São Félix do Xingu, inclusive, pela própria fala de seus habitantes. Mas um caso específico ocorrido em um começo de tarde na cidade chamou a atenção, após alguns dias de entrevistas, puxando conversa com um ou outro morador e me apresentando como pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais. Olga13, uma

empresária e fazendeira local com quem eu havia conversado há poucos dias e tinha se mostrado muito desconfiada quanto à pesquisa, logo após se servir, sentou-se à minha mesa no restaurante da cidade. Perguntou se eu ainda estava trabalhando. Respondi que havia acabado de retornar de uma rápida visita a uma das aldeias dos Mebêngôkre e, então, começamos a conversar.

A jovem senhora que havia policiado sua fala frente às minhas perguntas sobre a cidade agora conversava com naturalidade e sem receios em relação aos índios da região. Uma de suas empresas prestava serviços à parte das aldeias do Sudeste Paraense e ela passou a narrar alguns episódios vividos durante os últimos anos de contato com os Mebêngôkre. Mostrava-se enfurecida com a forma como o Estado os tratava, favorecendo a procriação dos índios ao lhes garantir um monte de benefícios . Para ela, isso era

um absurdo, pois a cultura deles não é de pecuária! A cultura deles não é de agricultura! Vivem de uma coleta insignificante de castanha, que não cobre nem o frete da aldeia até o hospital quando ficam doentes! (Olga, nascida no Paraná, no Sudeste Paraense desde 1980, em São Félix do Xingu desde 2007).

A conversa com Olga se destacou não só pela ausência de constrangimento em discutir a relação permeada de hostilidade com os índios, mas também por outros fatores. Primeiro porque, em relação àquela entrevistada, aquele tema e aquela situação pareciam ter permitido o cruzamento da fronteira de sombra

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moral ou metafísica da qual fala Clifford Geertz sobre a relação entre o pesquisador e a sociedade estudada. A cena me lembrava, ainda que de longe, a célebre experiência do antropólogo norte-americano entre os balineses, tão retomada em muitos trabalhos para ilustrar os percalços do pesquisador para se inserir em campo. Ainda que eu não tivesse sido ignorado pelos nativos e tratado como ausente até descobrir as chaves para me aproximar do universo pesquisado e ser aceito entre a comunidade, como ocorreu com Geertz, a desconfiança inicial de Olga e sua eloquência repentina era sinal de que, de fato, uma certa barreira poderia ter sido cruzada.

A travessia desse limiar a partir de um tema específico que despertou a eloquência de Olga também serviu como alerta para o conteúdo de sua fala. Tínhamos a hipótese de que as novas diferenças estavam sendo construídas exclusivamente a partir da distinção dos grupos sociais que se estabeleciam na cidade a partir dos anos 1980 em relação aos habitantes de São Félix que haviam chegado às décadas iniciais da conquista do território. Imaginávamos, pois, que as batalhas entre índios e não-índios haviam permanecido em um passado distante, inclusive o embate que se dava nos discursos. Olga nos mostrava que estávamos enganados e que o lugar que havíamos destinado inicialmente à construção das diferenças entre índios e não-índios e também internamente a esses dois grupos era excessivamente acanhado diante de uma questão fundamental à fronteira: a alteridade e sua constante reativação.

Por fim, a fala de Olga serviu ainda para repensar todo o trabalho que estávamos fazendo em campo e o lugar de fala desses sujeitos para a construção de uma pesquisa sobre a fronteira que haveríamos de elaborar. Em que medida tudo aquilo não passava de uma criação ocorrida diante da figura de um

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pesquisador? Se não estivesse investido desse papel, a criação teria sido outra? Ou ainda, será que chegaria a ocorrer? Nesse momento, a jovem senhora de São Félix nos ensinou mais uma vez que, inevitavelmente, o pesquisador faria parte de sua pesquisa, estaria integrado às construções sobre aquela fronteira as minhas construções e as dos meus entrevistados. Foi então que me lembrei de um texto de Roy Wagner (2010), que me permitiria como arquiteto e urbanista participar dessa construção e reconhecer, nos sujeitos com quem eu estava convivendo nos últimos dias, o poder da invenção e, principalmente, sua validade.

Ao discorrer sobre a experiência de contato com o outro, Wagner oferece uma proposição no mínimo instigante para pensar a alteridade: diante do estranhamento, o eu cria o outro, os sujeitos se (des)conhecem e inventam o vivido por aquele que lhes é diferente. O sujeito em questão é, de início, o antropólogo, que inventa a cultura que ele imagina estudar. Não se trata de uma fantasia livre, de imaginação descabida de qualquer sentido. Aceitar a invenção é reconhecer que [...] a relação por consistir em seus próprios atos e experiências é mais real do que as coisas que ela relaciona Wagner, 2010, p. 30, grifos do autor). Essa relação entre dois mundos ou entre muitos outros, como é assumido aqui é o que permite tornar visível a diferença, fazer concreto o que escapa ao observador de imediato. É um processo sem o qual não se pode adentrar no universo do outro, mas também um movimento duplo que leva à concepção da própria cultura daquele que dá partida ao ato inventivo.

O efeito dessa invenção é tão profundo quanto inconsciente; cria-se o objeto no ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo se criam (por meio de extensão analógica) as ideias e formas por meio das quais ele é inventado (Wagner, 2010, p. 41).

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Mas se antropólogos são sujeitos que se especializaram em inventar culturas, essa não é uma atividade restrita a iniciados. Os muitos outros são surpreendentemente inventivos. E é isso que torna factível o caráter reverso da Antropologia proposta por Wagner , p. nela [...] todo ser humano é um antropólogo , um inventor de cultura [...] . É isso também que admite pensar a fronteira como lugar de (des)encontros, mas também das muitas falas desses outros e de todas as suas invenções. E, por fim, é o que talvez enseje propor a fronteira como ponto de inflexão para a construção entre diferentes, para além da construção de diferenças.

O reconhecimento desses diferentes acabou sendo o que, ao final, estruturou a organização deste trabalho. Além desta introdução e das considerações finais, outros quatro capítulos compõem a tese. O primeiro deles procura fornecer a base teórico-conceitual para a compreensão da fronteira do capital e do urbano como espaço da reprodução coletiva. Nesse capítulo, não chegamos à Amazônia propriamente dita, mas pretendemos construir o campo para compreendê-la como fronteira, espaço por onde o capital se estende, salta por sobre obstáculos, induz a ressignificação de processos e, porque não, deixa o germe da transformação. Partimos de uma aproximação entre a Economia Política e a Antropologia, questionando a separação imposta pelo capital ao par reprodução-produção, e atingimos o urbano como espaço privilegiado para essa observação.

No capítulo seguinte, fazemos uma viagem em busca da Amazônia, de sua constituição como fronteira na história do Brasil e da reativação dessa situação ao longo das últimas décadas principalmente. Finalizamos essa parte do

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trabalho apresentando duas cenas do Sudeste Paraense, que nos servem de exemplos das múltiplas realidades urbanas presentes na região. A primeira é Parauapebas, cidade marcada pela presença de uma grande empresa mineradora. A segunda é São Félix do Xingu, o recorte espacial ao qual dedicamos os dois últimos capítulos da pesquisa.

As trajetórias presentes em São Félix do Xingu são o elemento basilar desses dois últimos capítulos, nos quais os caminhos percorridos pelos sujeitos na fronteira nos conduzem ao debate sobre as formas de ocupação do espaço amazônico. No capítulo 4, discutimos o urbano que surge da relação entre índios e não-índios, ou como definem alguns dos moradores mais antigos de São Félix, entre caboclos e cristãos. O capítulo 5 traz a construção de algumas diferenças entre a cidade de São Félix do Xingu e o conjunto maior de realidades urbanas que a envolve, ensaiando um roteiro que vai das vilas às sedes de distritos e que se abre para a discussão das diferenças entre beiradeiros e cidadãos na fronteira contemporânea.

Como será possível notar ao longo do trabalho, a organização desses dois capítulos é fruto da síntese das trajetórias encontradas em São Félix e das diferenças que elas estabelecem entre si. Ali temos antigos seringueiros, ribeirinhos, pescadores, grandes produtores de gado, índios e garimpeiros, só para citar alguns dos personagens mais emblemáticos do Sudeste Paraense. O convívio de todos eles é marcado por uma grande escala de tons, mas também delimitado por contrastes agudos nos modos de vida. Nossa experiência em campo como explicitado anteriormente sugeriu que um desses contrastes mais significativos ainda estava na relação entre índios e não-índios e, de fato, essa discussão foi fundamental para a compreensão da alteridade na fronteira e

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também para o entendimento dessa porção do Sudeste Paraense que se dá além do espaço citadino. Outro contraste de extrema importância era dado pela relação entre as múltiplas racionalidades que passaram a chegar à fronteira desde o início do século XX, quando frentes de exploração da borracha atingiram a região do Xingu. As diferenças entre beiradeiros e cidadãos sintetizam, de forma geral, essa passagem de São Félix de nucleação ribeirinha amazônica para terra de pujante produção pecuária.

Para se aproximar de todas essas trajetórias foi preciso trilhar uma rota tortuosa, que vai do encontro com os Mebêngôkre às fazendas de gado, que passa pela sede municipal e se estende por todo o urbano. Trata-se de um percurso cheio de voltas e que, sem pressa para atingir um ponto determinado, procura reconstruir a narrativa da fronteira em São Félix do Xingu. Essa multiplicidade de temas e a profusão de detalhes que eles trazem , por vezes, parece obliterar o objeto (e o objetivo) da tese. É apenas uma aparência. Todos esses elementos são fundamentais para uma aproximação dessa Amazônia que procuramos documentar, são marcadores das (in)constâncias presentes na urbe selvagem e não estão apresentados aqui por acaso. A rota percorrida não poderia ser outra senão essa, tamanha a complexidade do urbano que ali se constrói.

Todo esse conjunto tem como objetivo apresentar a constituição da fronteira em São Félix do Xingu realidade tomada como metonímia da fronteira do capital neste trabalho e, por isso, sugestiva para a discussão da Amazônia na contemporaneidade. Nesse caminho, interessa a este estudo, entre outras coisas, retomar sua formação histórica e discutir seu papel no espaço social, bem como sua inserção geográfica, procurando entender quão relacionados estão todos

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esses fatores. Faz parte ainda de suas intenções perceber como as particularidades dessa formação socioespacial estão (ou não) carregadas de universalidades, buscando problematizar as singularidades do urbano que ali se estabelece, pautado pelas constâncias e inconstâncias dessa fronteira, expressas na produção e reprodução que nela ocorre. Quais são as manifestações do urbano entendido como espaço da reprodução coletiva e ambiente capaz de ensejar o novo na fronteira do capital, território privilegiado para a produção e, na maioria das vezes, percebido como lugar da escassez e da penúria? Como todo o possível-impossível lefebvriano (2008b; 2008c) pode emergir de uma Amazônia constantemente percebida como eldorado e, nesse sentido, transformada em lugar de apenas algumas possibilidades? Eis os problemas (e as utopias) que nos guiam.

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O urbano, a fronteira e a reprodução:

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Antes de chegar à Amazônia brasileira recorte deste trabalho , é preciso desenvolver melhor a concepção da fronteira como lugar da convergência de diferentes e também sua posição no mundo dominado pelo capital. O que significa ser fronteira do capital? O que informa a fronteira território em catequização pela produção diante da reprodução da vida? Que urbano se manifesta ali e quais possibilidades ele traz para uma nova realidade? O urbano, a fronteira e a reprodução são, desse modo, os termos que lançamos mão para a compreensão do espaço amazônico e os quais pretendemos alinhavar ao longo deste capítulo, oferecendo uma primeira aproximação dos conceitos e entre eles.

Propomos realizar esse debate a partir de dois desvios teórico-conceituais: (1) a observação do urbano como espaço de reprodução, estruturado a partir da relação dialógica entre o espaço de vida e o espaço econômico, e (2) a discussão da fronteira como lugar privilegiado para o (des)encontro de racionalidades distintas e, portanto, insurgência de práticas alternativas. O primeiro orienta-se pelo debate da reprodução (e de seus espaços), indo além da ruptura entre reprodução e produção colocada pelo capital, uma dicotomia que pode ser superada, sobretudo, se postas em evidência as fissuras entre esses dois polos e a necessidade de novos paradigmas de organização socioespacial emancipatórios. O segundo busca explicitar como as fronteiras do urbano (ou da urbanização capitalista) indicam, ao contrário do modo como têm sido tratadas, o surgimento do novo. Tradicionalmente encaradas como lugar da escassez e das impossibilidades, essas fronteiras e o ponto de contato entre diferentes mundos que elas definem têm se mostrado território pertinente à reflexão sobre as (dis)junções entre o espaço de vida e o espaço econômico e, portanto, sobre a reprodução e as revoluções cotidianas que ela enseja.

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Como podemos notar, esses dois ensaios para uma reorientação do olhar estão intimamente imbricados. A fronteira, território em estado de construção, favorece a tensão entre o par reprodução-produção, não dissolvendo de imediato por incapacidade ou oportunismo os vínculos entre o espaço de vida e o espaço econômico, entre o que constrói sujeitos e o que garante a subsistência orgânica. De igual modo, o urbano, como espaço da reprodução, surge como confluência de cursos. Isso implica compreender o urbano não a partir de sua condição de par dicotômico ao industrial lugar tão somente da reprodução da força de trabalho ou polo oposto ao ambiental encarado pela racionalidade ocidental como matéria-prima que antecede qualquer ação , mas sim em sua forma plena e indutora de transformações, como revolução para uma nova sociedade.

Reconhecer e aceitar essas relações são fundamentais para o entendimento daquilo que Lefebvre (2008b; 2008c) encarou como o possível-impossível de uma sociedade urbana, ou seja, a urgência que não é realidade hoje, mas que poderá ser amanhã; o vir a ser ou a virtualidade emergente que já tem lançada sobre o território sua base de construção. Como toda necessidade, esse virtual demanda um exercício de elaboração mental necessariamente livre das determinações deixadas pelo real, ainda que desse lastro não se despregue e a partir dele os desvios sejam desenhados. É, desse modo, um exercício que Lefebvre chamaria de utopia experimental , um estudo sobre o terreno e uma [...] exploração do possível humano com a ajuda da imagem e do imaginário, acompanhada de uma incessante crítica e uma incessante referência à problemática dada pelo real Lefebvre, , p. , grifo do autor .

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Para a realização de tal exercício, ensaiamos aqui uma breve aproximação que merece ser verticalizada em trabalhos futuros entre a Economia Política e a teoria antropológica. Essa articulação entre campos distintos é sugestiva para organizar, ainda que de modo preliminar, esse movimento lefebvriano em direção à virtualidade necessária e no qual possibilidade e impossibilidade deixam de ser duas unidades opostas para se tornarem perspectivas a partir das quais o real pode ser construído. Desse modo, cotejar o concreto dado pela economia política o capital, seus espaços de reprodução da vida e todos os constrangimentos que eles ensejam e a concretude das ações humanas diante de outras matrizes de organização do mundo às quais tem se dedicado a Antropologia pode tornar visíveis imagens do impossível, ou ainda, de outras possibilidades. Ir além do concreto, mas a partir dele mesmo, é o que leva prospectar a imagem do possível-impossível, nesse caso, forma e conteúdo urbanos construídos por e capazes de construir efetivamente os sujeitos da ação, aqueles, como bem define Ana Clara Torres Ribeiro (2014), que são os protagonistas num determinado campo da ação social.

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 34-47)