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Por uma outra reprodução

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 67-77)

2.1 O urbano como espaço da reprodução

2.1.2 Por uma outra reprodução

Nesse ponto, já é possível voltar ao estudo da reprodução no urbano, à necessidade de superar seu entendimento exclusivamente diante do capital e, consequentemente, de compreender a reprodução como fato que transcende a reprodução da força de trabalho. Parece ter ficado claro que a força de trabalho é apenas um momento do sujeito no ciclo do capital. Apesar de se mostrar categoria útil ao debate, o trabalhador ou produtor mas, principalmente, sua trajetória isolada não é suficiente para que se possa atingir, por completo, a

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reprodução. Isso se deve ao fato de que muitos jamais se constituirão como tal, por escolha, impedimento, incapacidade ou, simplesmente, por serem os próprios capitalistas. Entretanto, sua posição no interior do capitalismo e a teia de relações que esse lugar articula proporciona os meios necessários para o entendimento dessa reprodução, seja porque é a partir do trabalhador como força de trabalho e, portando, detentor de uma mercadoria que a produção se organiza, seja porque é o valor gerado por ele que permite a reprodução daqueles que não estão incluídos entre as forças produtivas, com privilégio neste conjunto para o capitalista.

Uma síntese das principais contribuições de Christian Topalov (1979) é essencial ao desenvolvimento dessa ideia. Pode parecer curioso, já que o autor foi um dos maiores críticos da ênfase dada por Manuel Castells (1983) à questão reprodutiva nos estudos urbanos, como vimos aqui. Entretanto, sua dedicação em esclarecer as diversas nuances do consumo especialmente sob o domínio do capital são extremamente úteis para ampliar a inversão iniciada por Castells ao interpretar o espaço urbano a partir da perspectiva da reprodução. E isso se dá não apenas porque Topalov insere o consumo no marco mais amplo das condições gerais de produção, mas também porque a sua própria concepção de reprodução no urbano envolve um conjunto de relações mais complexo que a definida pelos meios de consumo coletivo, exibindo o quão interligados estão os elementos reprodução-produção nesse processo.

Resgatando Marx e Patrice Grevet, Topalov inicia mostrando como a transformação dos produtores em mercadorias apresenta uma contradição do capitalismo, uma vez que a forma-mercadoria da força de trabalho é antagônica às suas exigências de reprodução. Como é de fácil observação, o salário pago ao

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trabalhador não corresponde ao montante da força de trabalho empenhada na produção, caso contrário o capitalista não conseguiria auferir lucro. O valor da força de trabalho também não é determinado pela satisfação das necessidades dos produtores, pelo menos não pelo conjunto completo dessas necessidades. O que permite calcular o salário pago ao trabalhador é apenas uma parte desse volume, a qual é capaz fazer dele o criador do mais-valor esperado pelo capitalista e necessário à reprodução do capital, ou seja, apenas aquilo que lhe garanta a sobrevivência. Essa perspectiva tomada pelo próprio capital de que existe um crivo que define algumas necessidades como objetivas e outras como subjetivas é a responsável pelo ponto de tensão em destaque, pela contradição que envolve a reprodução ampliada do trabalhador.

O resultado é uma tendência à crise do sistema de manutenção e reprodução dos trabalhadores. Para os produtores em seu conjunto, esta crise é ressentida permanentemente sob a forma das necessidades não satisfeitas. Em contraste, para o capital, esta crise só aparece nos períodos históricos particulares, quando está em jogo o abastecimento de mão de obra (Topalov, 1979, p. 39).

Se o preço pago pela força de trabalho corresponde somente às demandas que estão diretamente relacionadas à utilização produtiva, dois pontos merecem mais atenção: o que fica fora dessa cesta básica e como os sujeitos se organizam na tentativa de suprir essas necessidades não associadas à produção. A resposta ao primeiro ponto indica um amplo espectro de bens e serviços que podem ser incluídos ou não nesse volume básico de itens de sobrevivência, variando conforme o contexto social e histórico. Em geral, esses itens excluídos da porção mínima são aqueles bens e serviços que estão associados aos períodos não produtivos da vida, como a infância e a velhice. São ainda aqueles que empreendem grande quantidade de tempo para o consumo, como a educação e

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a moradia, já que não interessa a cada capitalista em particular pagar por aquilo que não representa o dia trabalhado estritamente (Topalov, 1979).

É inegável, contudo, o quanto essa vocação do capitalismo em oferecer à força de trabalho salários abaixo do seu valor real tem sido tensionada, sobretudo quando as economias ocidentais contemporâneas se voltam cada vez mais para o consumo de faixas etárias não produtivas, como as crianças, e para a criação intensiva de demandas supostamente subjetivas, que começam a ser reconhecidas ou anunciadas como imperativos na reprodução da vida pela publicidade e o marketing. Os mais novos media, a alta tecnologia que se torna obsoleta em pouquíssimo tempo, as modas efêmeras que dão ao cotidiano o ar de um passeio contínuo por uma infinita loja de departamentos: tudo surge necessário à sustentação da vida, dizem os publicitários e os consumidores dos produtos por eles anunciados. Compreender a reprodução do capitalismo nessas situações e a reprodução dos sujeitos que vivem sob ele parece ser um desafio que brinda o consumo desses itens como campo privilegiado de investigação.

Quanto ao segundo ponto, o modo como os sujeitos se organizam para suprir as necessidades não associadas à produção e, portanto, não computadas ao valor da força de trabalho, Topalov dirá que é o consumo não-mercantilizado o que responde a essas exigências da reprodução. Nos termos do autor, esse consumo pode ser privado ou coletivo. No primeiro caso, ele ocorre como [...] o autoabastecimento de valores de uso no interior da unidade de consumo [...] (Topalov, 1979, p. 42). Trata-se, portanto, do consumo oferecido pelo trabalho doméstico ou reprodutivo , que está fora da relação capitalista, mas tende a sofrer alterações significativas com o avanço do capital, como a

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dessincronização progressiva dos ritmos de trabalho e descanso dos membros da família, transformando a divisão de tarefas na esfera privada. Mas o mais conflitante é que, na mesma medida em que há uma tendência a transformar parte dessas atividades de autoabastecimento em serviços mercantilizados uma vez que o tempo para o trabalho assalariado compete com o tempo dedicado à autossuficiência , a manutenção do consumo doméstico contribui para o rebaixamento do salário pago à força de trabalho e, consequentemente, para o aumento da taxa de mais-valor na produção capitalista (Topalov, 1979).

Já o consumo coletivo não-mercantilizado pode aparecer sob a forma de socializações espontâneas a exemplo de redes de vizinhos e parentes que se organizam para a realização de distintas atividades , de cooperativas estruturadas ou ainda em sistemas estatais de manutenção da força de trabalho. Estes últimos são, segundo Topalov , p. , os principais [...] testemunhos das contradições entre a força de trabalho mercantilizada e as exigências objetivas da reprodução e se dividem em duas categorias, uma monetária e outra que implica o fornecimento direto de valores de uso. As transferências monetárias por parte do Estado, como subsídios, financiamentos e assistências, acabam por derivar no consumo mercantilizado, pois oferecem renda que se converte em aquisição de bens e serviços, na maioria das vezes. Elas não são as únicas capazes de realizar essa conversão, mas são, de fato, potencialmente mais propensas. Em contrapartida, o fornecimento direto de valores de uso atua naqueles setores que, geralmente, não interessa ao capital investir, como equipamentos de serviços de esgoto e abastecimento de água ou energia. Esses setores que, ao fim, representam os meios de consumo coletivo anunciados por Castells (1983) são igualmente necessários à produção

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(capitalista, inclusive), à reprodução da força de trabalho e à reprodução de modo mais amplo (Figura 2).

Figura 2 - Consumo em C. Topalov Fonte: Elaborado a partir de Topalov, 1979.

Essa inserção dos meios de consumo coletivo em um quadro mais geral contribui para o caminho rumo à ampliação da ideia de reprodução no urbano, uma vez que reforça e oferece maior gama de detalhes sobre a interdependência entre o consumo privado e o consumo coletivo (mercantilizados ou não) e também porque permite vislumbrar possíveis alternativas à reprodução para além da oferecida pelo capital. Para completar essa trajetória, parece ser imprescindível uma revisão da própria noção de consumo e das relações que ele é capaz de gerar na vida dos sujeitos. Isso implica ir em direção oposta à linguagem vulgar, em que o consumo aparece como ação frívola e manipulada. Demanda reconhecê-lo, nos termos de Néstor García Canclini (2010), como um

processo sociocultural , que envolve aspectos econômicos, políticos, simbólicos e comunicativos. Ou seja, o consumo é o lugar em que se completa a produção fazendo expandir o capital e reproduzindo a força de trabalho , mas também é o palco de disputas políticas no cotidiano, cada vez mais

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articulado por consumidores que decidem reafirmar suas cidadanias por meio desse canal. O consumo é o que permite estabelecer classificações e diferenças, mas isso não exclui sua natureza integrativa e sua capacidade de gerar trocas não comerciais. Por isso tudo, consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora Canclini, , p. .

Tal percepção é devedora da complexidade presente no mundo dos objetos consumíveis e também das relações que eles podem estabelecer. Como partes visíveis da cultura, os bens e o consumo que se faz deles, dirão Mary Douglas e Baron Isherwood (2009, p. 108), têm como função principal dar sentido ao mundo as mercadorias são [...] como um meio não verbal para a faculdade humana de criar . Por isso qualquer teoria utilitarista do consumo esbarra em nuvens cinzentas na tentativa de explicar as motivações para o dispêndio ou a poupança que o coloca como projeto futuro, ignorando o fato de que [...] dizer de um objeto que ele está apto para o consumo é o mesmo que dizer o objeto está apto a circular como marcador de conjuntos particulares de papéis sociais (Douglas; Isherwood, 2009, p. 41).

Quanto às formas alternativas de reprodução e, consequentemente, de produção, já que a distinção entre os termos é praticamente nula a elaboração de Topalov nos leva diretamente ao conceito de reprodução ampliada da vida formulado por José Luis Coraggio (1998; 2003) para designar a orientação de uma economia em que o trabalho não está subordinado ao capital. Essa outra economia , proposta pelo autor, requer uma nova posição para a força de trabalho, que deixa de ser condição para viabilizar a acumulação capitalista e se torna fim das atividades econômicas. Ampliada, a reprodução da vida não se trata [...] meramente de quantidade (consumo de bens e

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serviços , mas de qualidade de vida em sociedade Coraggio, , p. . Em síntese, ela congrega a distinção feita por Castells (1983) entre as reproduções simples equipamento material mínimo, como moradia e infraestrutura e ampliada da força de trabalho espaços verdes, equipamentos sócio-culturais, políticos e jurídicos. Entretanto, diz mais que isso: é a unidade entre reprodução e produção dada pelo novo lugar ocupado pelo trabalho que permite construir uma economia que incorpora

[...] conhecimento como força produtiva indissociável do trabalho e da reprodução ampliada da vida de todos. Essa afirmação teórico- prática da centralidade do trabalho marca como direito em si e como condição material, junto com o respeito aos equilíbrios ecológicos, para definir e exercer todos os demais direitos humanos um programa estratégico que pode orientar ações e gerar situações de aprendizagem com base na prática e na reflexão em várias escalas (Coraggio, 2003, p. 19).

É preciso destacar que a economia popular defendida por Coraggio não deve ser confundida com a economia solidária, também majoritariamente encontrada entre os setores populares. A economia solidária, como apresenta Paul Singer (2002), está entre os grupos cooperados e as organizações autogestionadas formalizadas ou não, em que os meios de produção e distribuição são ditos socializados. Sua unidade básica é, portanto, a cooperativa de produção e, nela, os trabalhadores são os únicos a possuírem o capital da empresa. Enquanto isso, Coraggio (1998) trabalha com a ideia de unidade doméstica de reprodução e produção, que, embora possa ter algum grau de exploração quanto ao gênero ou idade, por exemplo , ainda está longe da exploração da mais-valia própria ao capitalismo. A principal fonte de recurso da unidade doméstica e também seu fim é o fundo de trabalho de seus membros, ou seja, o conjunto das capacidades de trabalho dos seus integrantes.

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É fato que, na prática, essas duas propostas podem aparecer bastante embaralhadas, o que dificulta o discernimento entre uma e outra. No entanto, mais complicado do que essa indistinção é o assalto do capital sobre ambas, gerando zonas borradas e que encobrem a brutalidade da acumulação capitalista. Alguns estudos têm mostrado que muitos desses grupos cooperados acabaram por adotar o caminho reverso já denunciado por Singer (2005), uma vez que, adaptando-se tão bem ao modo de produção hegemônico do capitalismo, abandonam sua origem solidária, ganham estrutura hierarquizada e formas de assalariamento convencional. Em certos casos, apoiados por instituições do terceiro setor ou mesmo por políticas públicas, sequer chegam a nascer a partir desse princípio, embora carreguem consigo a marca da solidariedade desde o berço slogan banalizado pelos programas supostamente virtuosos de geração de renda. São achados como esses que aparecem nas pesquisas de Cibele Rizek (2012) junto aos circuitos de catadores de material reciclável e costureiras na periferia da cidade de São Paulo. Cooperados ou trabalhando em domicílio, suas experiências têm se mostrado mais próximas do capitalismo do que podemos imaginar. Apesar de viverem sob o rótulo da autonomia, os sujeitos pesquisados pela autora representam a exploração das camadas mais vulneráveis da população e são reféns de uma precarização do trabalho, que vai da ausência total de direitos a uma tentativa frágil de formalização, para a qual são transportadas não só as práticas de contratação do capitalismo, mas também elementos típicos de seu processo de produção, como linhas e esteiras de montagem usadas para acelerar o ritmo do trabalho e a produtividade.

Tudo isso não significa dizer que a economia popular de Coraggio e também a economia solidária de Paul Singer sejam alternativas inviáveis ao modo de

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produção capitalista. Sugere apenas que, talvez, ainda não tenhamos chegado lá, que as armas usadas pelos setores populares precisam ser mais poderosas do que as que têm sido normalmente empregadas e que os hibridismos e interdependência entre os circuitos da economia o superior e o inferior, tal como classificou Milton Santos (2008) merecem maior atenção. Essa acuidade em relação às trocas entre um nível e outro não tem como objetivo demarcar dualidades, mas parece ser parte da condição necessária para garantir aquilo que interessa a esse trabalho e que, ao fim, é o objetivo de uma produção que ocorre para além do capital: a reprodução, conduzida pela busca de uma melhoria na qualidade de vida sem limites impostos pela produção, como argumenta Coraggio (1998). Essa perspectiva, dirá o autor, requer uma economia que ultrapassa o economicismo e que, mesmo quando em relação com a ordem econômica hegemônica do capital, não coloca o equilíbrio macroeconômico acima

[...] dos equilíbrios psico-sociais que requer a vida humana, dos equilíbrios sociais que facilitam a convivência em paz da humanidade, nem dos equilíbrios naturais, sendo o respeito por todos esses o que faria sustentável o desenvolvimento da vida social neste planeta. Supõe também assumir como contradição dinâmica a contraposição entre a lógica da reprodução do capital e a lógica da reprodução da vida humana. E finalmente, implica ver o conjunto de trabalhadores que podem existir dentro ou fora das relações capitalistas imediatas como base social do sujeito histórico possível para esse desenvolvimento sustentável (Coraggio, 1998, p. 65).

É diante disso que o urbano como espaço da reprodução, indo além do capital ou mesmo emergindo de suas brechas, ultrapassa o sentido fordista da cidade como lugar da reprodução da força de trabalho, assim como supera a condição produtivista do industrial. O espaço de reprodução, nessa perspectiva, congrega aquilo que John Friedmann chama de unidade de opostos , os

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espaços de vida e os espaços econômicos. O espaço de vida é, ao mesmo tempo, o teatro da vida, entendido como uma vida de convívio, e a expressão dela. O espaço econômico corresponde mais estreitamente às condições de subsistência, ou à manutenção da vida Friedmann, 002, p. 96). Mas vale dizer que, para isso, o caráter econômico do espaço não se restringe ao produtivismo capitalista, como tem ocorrido nos dois últimos séculos. Trata-se de uma economia radical, das leis que gerem a casa e, a partir dela, garantem a manutenção da vida em coletividade.

Também é por conta disso, que a ruptura entre reprodução e produção, como alerta Monte-Mór , p. , é uma falsa dicotomia [...] construída conjunturalmente segundo alguns interesses e modos de organização econômica dominantes, e está condenada à superação, cedo ou tarde . A fase industrial do capitalismo põe em conflito a lógica de produção própria ao capital e a lógica de reprodução, sujeitando esta àquela. Nesse sentido, espaços de produção (o industrial) se opõem a espaços de reprodução (o urbano), ou ainda, estes se subordinam àqueles. Entretanto, são as brechas entre esses dois polos que sugestionam a superação da dicotomia, são as crises do modelo industrial dominante que colocam a necessidade de novos paradigmas de organização socioespacial. E esses novos arranjos, como indica o autor, são potencialmente emancipatórios se articulados a partir do urbano, como projeto e práxis.

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