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Bandos, cacicados e polities: outras urbanidades?

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 125-132)

Os estudos no campo da Arqueologia mostram que os amazônidas foram autores de complexos processos socioespaciais muito antes do imbróglio na relação entre o antigo Estado do Brasil e a atual Amazônia. Esses achados foram importantes para o processo de reconhecimento da complexidade dos ameríndios em dois sentidos. Primeiro, serviram para contrariar a ideia de que os ocupantes das terras amazônicas e do Brasil, de modo mais geral enquadravam-se entre as populações mais primitivas das Américas à época da conquista. Segundo, começaram a tornar possível o questionamento de um

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modelo classificatório fechado para definir esse suposto grau de primitivismo das sociedades.

Esse mito do primitivismo foi sustentado, durante décadas, pela classificação de Julian Stewart sobre os povos da América do Sul. Autor da tese que classifica os ameríndios em quatro categorias a partir, principalmente, da associação entre meio físico, organização sociopolítica e modo de produção, Stewart contribuiu para a miopia que fez com que ele e outros estudiosos [...] lessem a floresta tropical com as lentes andinas Fausto, , p. . No modelo elaborado nos anos 1940, os Andes Centrais e a Costa do Pacífico teriam sido os ambientes propícios para a formação das sociedades mais complexas que a América do Sul conheceu, sendo a produção agrícola e o aparelho estatal inca os exemplos mais completos. Abaixo desse patamar, estariam os povos circuncaribenhos e os Andes Setentrionais, que desenvolveram centralização política e religiosa suficiente para ultrapassar os laços de parentesco que marcavam o igualitarismo da floresta tropical, dominada por povos que embora se fixando em aldeias e praticando a agricultura careciam de instituições políticas. Por fim, encontravam-se os ditos povos marginais, caçadores-coletores nômades que habitavam o Brasil Central, o Cone Sul e o Chaco. Esses quatro tipos em ordem crescente: tribos marginais, cultura de floresta tropical, cultura circuncaribe e civilização andina foram os ingredientes para a formulação, em 1962, da sequência evolutiva de Elman Service para os ameríndios: bando, tribo, cacicado e estado (Fausto, 2000).

Dentro desse quadro classificatório, os índios da Amazônia brasileira estariam agrupados nas duas primeiras categorias. Enquanto a várzea teria favorecido o surgimento de tribos assentadas, bandos nômades haviam percorrido as terras

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firmes da região durante séculos. Essa perspectiva enviesada reforçou o determinismo geográfico de muitos estudos, bem como a demarcação de limites entre os dois espaços amazônicos (várzea e terra firme) e entre a região da floresta tropical e as demais áreas sul-americanas. Segundo Fausto (2000), mesmo vestígios de complexidade social, como as elaboradas cerâmicas e os aterros artificiais encontrados na Ilha de Marajó, foram encarados como heranças exógenas aos habitantes locais, sendo considerada a hipótese de uma migração andina para a Amazônia brasileira. Essas sociedades migrantes, anteriormente estruturadas em cacicados, teriam abandonado esse padrão de organização social e se adaptado ao meio a partir de um modelo tribal ao chegarem no Brasil.

Na década de 1980, Anna Roosevelt (1992) confrontou-se com esta tese, defendendo um desenvolvimento autóctone das populações da várzea amazônica. Em pesquisa realizada nas terras inundáveis dos rios Amazonas e Orenoco, Roosevelt contribuiu para distanciar a imagem da organização social não estratificada dos povos das terras baixas brasileiras. Segundo a autora, a várzea foi ambiente favorável à formação de sociedades complexas, que dominavam territórios extensos a partir de uma organização social hierárquica e intensas redes de comércio, que desapareceram por volta dos séculos XVII e XVIII. Esses cacicados, belicosos e expansionistas, nos termos de Roosevelt, colocavam, em certa medida, os índios brasileiros em proximidade com os incas, dirimindo as dicotomias entre as terras baixas e os Andes no que diz respeito à estrutura social. Sobre a organização do espaço, vale destacar que os trabalhos da arqueóloga e outros relatos etno-históricos que ela apresenta dão conta de que, para ordenarem esses densos agregados demográficos, essas sociedades realizaram complexas obras de terraplanagem, desviaram cursos de

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rios para o cultivo e construíram estruturas multifuncionais, com [...] áreas específicas de artesanato, áreas cerimoniais, aterros defensivos, cemitérios e amontoados, além de [...] estruturas domésticas e utilitárias, como habitações e fornos Roosevelt, , p. .

As descrições de Roosevelt permitem pensar, portanto, que a floresta tropical socialmente produzida e, principalmente, em uma escala surpreendente é uma realidade anterior à conquista europeia. No entanto, como alerta Fausto (2000), falar em cacicados complexos no interior de um molde tipológico de baixa complexidade, como faz a autora, reforça o sistema classificatório de origem eurocêntrica, permitindo apenas que os povos da várzea subam um degrau no modelo evolucionista de Stewart e Service. A etnografia mostra, contudo, que as formas de complexificação social escapam a esses quadros esquemáticos e lineares para o passado e indicam que diversas formas de articulação, em escalas local e regional, faziam parte do continente à época da conquista, culminando não só em processos migratórios, mas também em fusões de diferentes grupos e tradições, em organizações sociais e espaciais que não se enquadram em modelos fechados29.

Para os estudos urbanos na Amazônia contemporânea, esse reconhecimento não é secundário. Ao contrário, para a visualização do urbano possível, parece

29 O modelo de Stewart não se mostrou insuficiente apenas para explicar os habitantes da

Amazônia, mas para classificar os ameríndios de forma geral. Entre os Jê do Cerrado, considera Fausto (2000), ele chega a trazer para os estudos da Antropologia resquícios do imaginário predominante no período colonial. Dentro do sistema evolutivo, eles seriam parte do grupo mais primitivo, do mesmo modo como eram descritos pelos Tupi-Guarani que dominavam a costa brasileira [...] gente bárbara, desprovida de aldeia, agricultura, canoa, rede e cerâmica [...] Fausto, , p. . No entanto, os Jê contradizem, por completo, a associação proposta pela ecologia cultural entre ambiente e características sociais, políticas e econômicas. Os Jê reúnem o que deveria estar separado: são móveis e possuem grandes aldeias; a tecnologia de subsistência é simples, mas os adornos corporais são elaborados; não há chefes supremos, embora haja uma economia política do prestígio [...] Fausto, , p. .

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ser imprescindível a compreensão de que aquelas organizações comumente chamadas de civilizações menores ou cacicados , como lembra Michael Heckhenberger , p. , [...] representam caminhos alternativos de desenvolvimento sociopolítico e não simplesmente estágios anteriores ao estado em termos de um esquema evolutivo . A organização do espaço empreendida por esses povos indica uma relação mais adequada com o meio do que os modelos ocidentais incorporados ao longo do processo de conquista. Pelo menos é isso o que tem mostrado pesquisas realizadas pelo próprio Heckhenberger a partir dos anos 1990 no Alto Xingu, porção sul do território amazônico.

Os achados de Heckhenberger fornecem os dados mais significativos no campo do que o autor chegou a denominar de urbanismo pré-colombiano na América do Sul. Em um dos trabalhos assinado com outros cientistas e o líder indígena Afukaka Kuikuro o conjunto xinguano é comparado às cidades- jardim propostas por Ebenezer Howard, em 1898. De acordo com os pesquisadores, o modelo de Howard para o futuro do urbanismo, com suas pequenas unidades dispostas de modo radial e envoltas por áreas de cultivo que uniriam o melhor do campo e da cidade, teria sido antecipado pelos antigos habitantes da Amazônia Oriental. As sociedades complexas pré-colombianas do Alto Xingu desenvolveram um sistema desse tipo, exclusivamente adaptado aos ambientes florestais do sul da Amazônia Heckhenberger et al., 2008, p. 1.217). No lugar onde hoje está o Parque Indígena do Xingu, criado em 1961, uma infraestrutura composta por fossos, aterros e pontes dava suporte a grandes aldeias circulares e interligadas por estradas que convergiam para praças centrais. Sustentadas por uma economia baseada na pesca e no cultivo da mandioca, 30 ou 50 mil pessoas chegaram a viver em diversos

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assentamentos, que começaram a sofrer brutal decadência a partir do final do século XV.

Para se referir à organização de tais assentamentos, Heckhenberger (2011) usa o termo polities, que em alguns momentos é traduzido, pelo próprio autor, como sociedades complexas pré-modernas . Cada polity se estruturava a partir de um padrão multicêntrico, um conjunto galáctico regido por uma unidade principal e a partir da qual orbitavam centros de grandezas distintas e precisamente distribuídos no espaço. Essa unidade articuladora, assim como nas aldeias xinguanas contemporâneas, é a praça circular, que ainda hoje organiza as demais construções de modo a formar um caminho no eixo leste- oeste. Mas se hoje cada aldeia tem entre 100 e 500 índios, no passado, esse número era dez vezes maior. Além disso, se a comunidade máxima contemporânea é o grupo local estruturado pela praça, no passado o grupo máximo era multicomunitário. Estima-se que cerca de 20 ou 30 polities regionais e independentes politicamente estiveram integradas a um agrupamento hierárquico, denominado peerpolity, num padrão de territorialidade incomum e que se estendeu por uma área de mais de 20 mil quilômetros quadrados na bacia do Rio Xingu. Essas múltiplas comunidades de praça estavam ligadas a um centro exemplar e orientavam-se em três blocos (leste, oeste e norte), onde viviam os ancestrais dos atuais xinguanos Kamayurá, Aweti, Wauja, Mehinaku, Yawalapiti, Kuikuro, Matipu, Kalapalo e Nahukwa (Heckhenberger, 2011).

De algum modo, sugere Heckhenberger, parte da complexidade hierárquica na organização espacial pré-colombiana entre os povos do Alto Xingu pode ser vista a luz dos princípios que definem a construção e a orientação de pessoas, casas e praças de aldeias ainda nos dias de hoje. Entre os Kuikuro, a

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organização espacial em níveis distintos é atravessada por valores e práticas que definem posições sociais claras. Os chefes, por exemplo, ocupam tal posição porque são os administradores dos rituais e da arquitetura pública na própria aldeia, como a praça central e a casa dos homens, chamada por esse grupo de

kuakutu.

Não há dúvida, neste mundo dividido, sobre quem é quem, mas, se houvesse, também existe uma fórmula fácil para se seguir. [...] Do lado direito, ao entrar na casa, está o dono, üneoto, perpendicular à porta e, se ele for um chefe de hierarquia alta, à sua direita deveria estar a primeira esposa; na esquerda da casa estará o dono secundário. Ao entrar na aldeia, ao longo do caminho formal, esta geometria é mantida, já que à direita (ou às vezes à esquerda) se encontra a tajühe, a casa do chefe. [...] O eixo longo do kuakutu é perpendicular à linha leste-oeste marcada pela estrada formal (tanginhü) e cria um eixo norte-sul fixo, marcando, assim, a estrutura básica da aldeia, que é espelhada pelas casas, numa escala menor, e, no passado remoto, por conjuntos regionais, numa escala ainda maior (Heckhenberger, 2011, p. 259-260, grifos do autor).

Mas a contribuição de maior peso do urbanismo pré-colombiano trazido por Heckhenberger, como já mencionado aqui, talvez seja sua inserção em um conjunto de trabalhos que questionam o próprio modelo de cidade adotado pela cultura ocidental. Isso ocorre em, pelo menos, dois sentidos. O primeiro, como crítica à universalização de parâmetros para aproximação de realidades particulares, ao seja, aos modelos que têm se mostrado deficientes quando em contato com outras estruturas que fogem dos princípios gerais estabelecidos para a classificação. Acostumada com ambientes erguidos à pedra e, mais recentemente, forjados no aço, a tradição ocidental vê-se, no mínimo, embaraçada diante da complexidade articulada pelo corpo entre os ameríndios. Para esclarecer qualquer dúvida, Heckhenberger (2011, p. 272) argumenta que, [...] em termos de desenho, planejamento e integração regional, os padrões

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xinguanos antigos aparecem até mais elaborados, rígidos, do que vários casos urbanos clássicos [...] e indica que, se observada a

[...] domesticação da paisagem sofisticação e a intensidade do manejo de recursos naturais , vale a pena considerar os sistemas antigos do Xingu como os de outras regiões das terras baixas neo- tropicais, como variações amazônicas dos sistemas que, em outras regiões do mundo, são considerados sócio-politicamente complexos, urbanismo, ou até civilizações pré-modernas (Heckhenberger, 2011, p. 272).

Nesse aspecto a domesticação elaborada da paisagem natural xinguana , reside o segundo questionamento que a abordagem do autor permite ao modelo exógeno de cidade ocidental impresso na região amazônica ao longo dos anos. As polities do Alto Xingu conseguiram equilibrar a relação homem- natureza de modo singular, em grande escala, e, ao que tudo indica, garantindo a reprodução da vida de modo menos conflituoso como vem acontecendo hoje, seja na relação entre homens, seja na conexão entre os homens e o meio. Reconhecer isso não implica dizer que os xinguanos construíram um arranjo que sirva de modelo para a Amazônia contemporânea já que modelos não têm se mostrado alternativas favoráveis para as cidades ou o estudo das sociedades em geral , mas possivelmente abra espaço para prospectar uma Amazônia urbana em que a alteridade, de qualquer ordem, não se imponha como limite.

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 125-132)