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Quando a Amazônia não era Brasil

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 119-125)

O caráter derivado do espaço amazônico remonta o tempo em que boa parte do território hoje identificado como Amazônia sequer fazia parte do então Estado do Brasil. Esse relativo isolamento fez com que a região tivesse uma história diferente daquela vivida pelo resto do país, com a alternância de pequenos períodos de crescimento e longos intervalos de estagnação, como sugere Bertha Becker (2012). Ali,

[...] a expansão do sistema capitalista colonial não se fez mediante um único modelo. Por sua apropriação feita por múltiplos atores por quase dois séculos, o processo [amazônico] aproxima-se mais

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de um modelo caribenho de povoamento, marcado pela pirataria e disputa de poder (Becker, 2012, p. 24).

A conquista definitiva do território pelos portugueses foi iniciada com a derrota dos franceses na Ilha de São Luís do Maranhão, em 161525. Um ano depois, os

lusitanos ergueram o Forte do Presépio, onde seria a cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, às margens da Baía de Guajará. As lutas pelo território, entre índios, portugueses e outros europeus, se estenderam até 1648, quando foi destruída a última posição holandesa, localizada no atual Amapá. O domínio do delta amazônico facilitou a expansão rumo ao interior e, em 1669, surgia o núcleo inicial que deu origem à cidade de Manaus. Estas três cidades, estrategicamente posicionadas, foram os pilares para a hierarquização de uma rede urbana que se formaria: primeiro, a partir das disputas entre São Luís e Belém, capitais político-administrativas; mais adiante, com a inserção de Manaus, que passou a polarizar a porção ocidental da Amazônia, num padrão predominantemente ribeirinho. Durante todo esse período, considera Antônio Risério (2012, p. 121), esteve posto

[...] o longo apartamento amazônico com relação ao Brasil. Uma solidão que vai se estender das primeiras décadas do século XVII até meados do século XX. Até a década de 1960, pelo menos, quando se intensificaram os esforços para incorporar efetivamente a Amazônia ao Brasil, num processo que, por sinal, ainda não se completou.

Tal isolamento, dado pela dificuldade de acesso à região, foi reforçado pela desconexão política e administrativa promovida pela Metrópole. As primeiras fronteiras foram estabelecidas ainda à época da União Ibérica (1580-1640), quando em 1621 o Estado do Maranhão e Grão-Pará formado pela porção

25 A cidade de São Luís havia sido fundada pelos próprios franceses em 1612, três anos antes da

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norte das terras conquistadas pela Coroa Portuguesa e tendo como capital a cidade de São Luís tornou-se uma unidade independente, com governo próprio e ligação direta com Lisboa26. A criação de uma unidade separada do

restante do Brasil pretendia facilitar a comunicação entre as terras ao norte da Colônia e a Metrópole, contribuindo com a ocupação que já vinha sendo feita por meio da fundação de cidades e fortes.

Com o fim da união entre as duas coroas da península europeia, em 1640, Portugal passaria a reivindicar para si as terras antes definidas como espanholas, incluindo a maior parte da região amazônica. Àquele momento, os portugueses já haviam avançado a oeste e ocupado um território que é, grosso modo, a configuração do Brasil contemporâneo. No entanto, seria somente após diversos conflitos que, em 1750, o Tratado de Madri substituiria o Tratado de Tordesilhas, estabelecendo os limites das terras portuguesas na América a partir de acidentes geográficos e do direito de posse27.

Em todos esses anos, a Colônia localizada ao norte permaneceu diretamente vinculada à Coroa, sem ligações maiores com a sede da capital do Estado do Brasil. Com as limitações tecnológicas da navegação à vela, uma viagem do Rio de Janeiro para Lisboa em 1790 durava noventa dias; uma entre Belém e Lisboa na mesma época durava trinta dias; já outra entre o Rio de Janeiro e Belém podia durar até cinco meses (Souza, 2005, p. 87). Assim, as duas colônias se desenvolveram de forma praticamente independente. Ao sul, a porção descoberta por Cabral em 1500 e ao norte a colônia

26 Nesse período, ainda vigorava o Tratado de Tordesilhas, que desde 1492 dividia as terras do

Novo Mundo entre os reinos de Portugal e Espanha.

27 No ano seguinte, a Colônia ao norte passaria a se chamar Estado do Grão-Pará e Maranhão,

sendo sua capital transferida de São Luís para Belém. Mais tarde, em 1772, a contínua expansão do território rumo ao interior fez com que a Colônia do norte fosse desmembrada em duas unidades, o Estado do Grão-Pará e Rio Negro e o Estado do Maranhão e Piauí.

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[...] descoberta por Vicente Iañes Pinzón, em 1498, logo após a terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o rio Amazonas de mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Essa colônia tinha em seu território o equivalente à reunião dos atuais estados do Maranhão, Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Rondônia e parte do Acre. [...] Uma nota curiosa: os habitantes da Colônia do sul eram chamados de brasileiros, os do norte de portugueses-americanos (Souza, 2005, p. 87-88).

No século XVIII, as intervenções do primeiro-ministro português Marquês de Pombal produziram alterações significativas no espaço amazônico. Responsável pela criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão empresa monopolista instalada em 1755 no marco das alianças entre o capital comercial e o rei absolutista , Pombal fez a Amazônia experimentar transformações somente comparáveis às trazidas ao final do século XIX pela Belle Époque da economia da borracha. As ações da Companhia criada durante sua gestão eram pautadas pelas circunstâncias internacionais e visavam inserir a economia amazônica no mercado mundial, numa tentativa de [...] reproduzir, tardiamente, o modelo de acumulação que muito contribuiu para a passagem do capitalismo mercantil para o industrial: acumulação que era em parte dificultada pelo poderio comercial das ordens religiosas Corrêa, , p. 198).

Não por acaso, a cassação do poder exercido pelos missionários religiosos que acabaram expulsos e tendo seus bens confiscados em 1759 foi uma das principais decisões políticas do período, o que permitiu que muitos aldeamentos fossem elevados à categoria de vila. Assim, as ações da Companhia afetaram diretamente a embrionária rede urbana amazônica, possibilitando um relativo desenvolvimento. Mesmo não levando à formação

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expressiva de núcleos urbanos a partir da incorporação de novas áreas, o crescimento produtivo das unidades já ligadas à economia colonial consolidou a expansão do território realizada no século anterior. Essa consolidação dirigida pela administração pombalina, explica Corrêa (2006, p. 200), deu-se, contudo, [...] espacialmente de modo desigual, introduzindo certa diferenciação entre os núcleos de povoamento , levando a uma hierarquização da rede.

Tal diferenciação, orientada pela natureza das funções urbanas exercidas por cada núcleo, fez com que Belém fosse beneficiada em maior grau pelas transformações. A localização no topo da hierarquia político-administrativa permitiu que a capital do atual estado do Pará vivesse, ainda no século XVIII, a liberdade dos ares trazidos pela cidade, como sugere Souza. Acostumada às encenações na Casa de Ópera, inaugurada em 1775, Belém é, segundo a descrição do autor, a expressão de uma modernidade que ainda não havia chegado ao restante do Brasil, onde a [...] a profissão de ator, por decreto oficial, deixa de ser considerada infame, seguindo uma ordenação de 1771, outorgada pelo rei Dom José I, de Portugal Souza, , p. .

A despeito da proposta comparativa do autor e reconhecendo a importância de trabalhos que já destacaram o forte caráter urbano de outras porções do Brasil àquele momento pelo menos a partir da descoberta do ouro nas Minas28 ,

essa descrição da modernidade amazônica no século XVIII tem um papel importante. A imagem de uma [...] cultura urbana bastante desenvolvida, [...] um sopro de ar inovador numa época exclusivamente barroca [...] Souza, 2005, p. 90), nos oferece, pelo menos, a possibilidade de vislumbrar, já àquele tempo, o urbano onde ainda hoje se questiona sua existência.

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Mas a história mostra que o processo de incorporação do norte ao restante do Brasil não ocorreu de forma tranquila, pelo menos não no campo administrativo e político. A notícia da independência do Brasil, em 1822, segundo Souza (2005), ganhou alguns adeptos na Colônia do norte, que ensaiaram repetir o feito do príncipe Pedro Alcântara. Os portugueses, é claro, repreenderam as tentativas de adesão ao Império do Brasil por parte dos nortistas, deportando e condenando à morte os líderes de levantes e perseguindo a imprensa que pregava o corte dos laços com Portugal. A adesão à nova nação aconteceu somente no ano seguinte, quando o soldo do recém-criado império brasileiro ameaçou Belém de um bombardeio naval.

A partir de então, a região viveu um dos períodos mais conturbados de sua história. Insatisfeitos com a posição secundária a que foram relegados com o fim da Colônia, líderes das elites locais se levantaram contra a autoridade do Rio de Janeiro. Os cabanos negros, índios e mestiços pobres , por sua vez, se rebelaram contra as condições miseráveis em que viviam, dando nome ao levante que terminou sem êxito para os insurgentes em 1840. O marco inicial do movimento que ficou conhecido como Cabanagem foi o ano de 1835, quando os cabanos liderados pela elite tomaram o quartel e o palácio do governo de Belém, mas os anos antecedentes foram igualmente difíceis.

Entre 1823 e 1840, a região norte sofre a intervenção política e militar do Império do Brasil, perde suas lideranças históricas e

deixa de ser uma administração colonial autônoma para se transformar numa fronteira econômica. A derrota do Grão-Pará e sua destruição pelo Império do Brasil, se me permitem a comparação um tanto audaciosa, foi, de certo modo, como se o Sul tivesse vencido a Guerra de Secessão, nos Estados Unidos. Dezessete anos de guerra civil levaram a Amazônia a perder 40% dos seus habitantes. A anexação destruiu todos os focos de prosperidade. Entre os políticos do Império do Brasil e as

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lideranças nortistas nenhum diálogo foi possível (Souza, 2005, p. 92-93, grifo nosso).

A adesão ao novo império, segundo Souza (2005), deu-se pelo fato de os amazônidas estarem conscientes de que se continuassem portugueses, numa tentativa de fazer um Canadá português, sofreriam um retrocesso. A administração do ultramar nunca mais seria como antes, nunca mais Portugal teria um Pombal Souza, , p. . A instabilidade da monarquia lusitana não descartava sequer a possibilidade de outros países dominarem a Colônia do norte; tampouco permitia aos nortistas a garantia de manutenção de uma economia que já havia possibilitado aos habitantes locais pelo menos os belenenses letrados experimentar um modo de vida urbano, no qual [...] as noites tropicais eram inundadas de música e canto, que vinham das casas particulares e das bandas a animar as praças repletas de transeuntes Souza, 2005, p. 90). Não lhes restava, pois, outra opção senão se tornarem parte do Império do Brasil.

No documento As (in)constâncias da urbe selvagem (páginas 119-125)