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A GENERALIZAÇÃO DA CIRCULAÇÃO MERCANTIL DESCONECTADA DA

MERCANTIL SIMPLES

Imagine-se a seguinte hipótese. Há muito tempo, havia uma sociedade mercantil simples de possuidores de mercadorias. Esses possuidores de mercadorias, todavia, tinham sua liberdade de troca de mercadorias limitada por um desposta ou soberano que os liderava através da força, pois dispunha de armas, de um exército e, com isso, detinha o poder político daquela pequena comunidade. Assim, eles somente poderiam trocar entre eles produtos se esses produtos fossem o resultado de um excedente na produção, isto é, se se extrapolasse o somatório de produtos que eles precisariam repassar tanto ao déspota quanto os produtos relativos ao seu próprio sustento e de sua família.68 Sem falar na autorização expressa que era preciso obter

desse soberano para realizar a mais simples permuta. A liberdade nessa comunidade era bastante limitada e com a limitação da liberdade, a circulação era bastante limitada. Essa época se chamava feudalismo.

Agora imagine que na transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, não houvesse ocorrido tudo o que na prática ocorreu, que a história tivesse sido diferente. Que o trabalhador não tivesse sido expulso do campo, que não tivesse sido ele expropriado de suas terras e seus meios de trabalho nem submetido a uma legislação sanguinária para que se submetesse à nova disciplina de trabalho fabril. Que tudo o que de fato ocorreu tivesse sido um mero deslize na história da transição para o capitalismo, e que esse deslize nem de longe configurasse condição sine qua non para a fundação do capitalismo. Que o capitalismo tivesse se formado de uma expansão gradual da esfera da circulação, com a concomitante expansão gradual da liberdade e da igualdade que antes não atingia ninguém, mas que, com o decurso do tempo, passou a atingir todos. Antes poucas pessoas podiam participar da circulação, pois a liberdade dessas pessoas era limitada, porém com o passar do tempo e a queda de todos os despostas ao redor do mundo, essa liberdade, aos poucos, tivesse sido concedida aos indivíduos. Ao ponto de que um dia, no ápice da história humana, a liberdade já tivesse sido concedida a absolutamente todos os indivíduos. E já que é da esfera negocial da circulação que surge a necessidade de liberdade e de igualdade, que, por sua vez, tornam todos os indivíduos sujeitos de direito com capacidade negocial, então, a essa época, no ápice da liberdade e da

68 “Nos estágios iniciais da circulação das mercadorias, apenas o excedente de valores de uso é transformado em dinheiro” (MARX, 2013, p. 272).

igualdade, no ápice da história, absolutamente todas as pessoas, e não apenas aquelas daquela pequena comunidade, já poderiam ser consideradas sujeitos de direitos.

Essa hipótese é nomeada por Kashiura Jr. como hipótese da generalização da circulação mercantil. Nessa hipótese, a circulação iniciaria em uma sociedade mercantil simples, ampliando-se linearmente com o passar do tempo. Essa perspectiva se desconecta das exigências específicas constatadas na transição para o modo de produção capitalista. Diante disso, “a generalização da circulação mercantil proporcionaria, tão somente, a generalização da circulação mercantil”, que já não seria o resultado isolado da prática de alguns indivíduos, mas englobaria todos os indivíduos como potenciais detentores de mercadorias, alcançando a todos. Assim, a exploração do trabalho apareceria “posteriormente como ‘acidente’ ou ‘momento secundário’ que adere a uma esfera de troca já perfeitamente determinada em si” (KASHIURA JR., 2014, p. 182), ou seja, a expropriação do trabalhador dos meios de seu trabalho e a exploração de sua mão de obra por uma minoria de não produtores acabam sendo vistas como mero deslize no percurso da circulação mercantil, e não como parte imanente do que define o próprio ser do modo de produção capitalista.

Desse modo, as formas da equivalência mercantil e os princípios que regem, no mundo dos homens, essa equivalência, isto é, a liberdade e a igualdade, acabam por serem alçados à condição de leis eternas ou naturais do intercâmbio e deixam de ser vistos como o produto histórico de um modo de produção específico. O circuito econômico do capital e o modo de produção capitalista passam a ser vistos como resultado de uma evolução ou generalização gradual do modo de produção imediatamente anterior, no caso do capitalismo, o feudalismo, e não como o resultado da ruptura com as relações de produção anteriores.

As consequências principais desse tipo de concepção são duas: i) naturaliza-se, até um certo grau, a figura do sujeito portador de direitos: “a forma mesma do sujeito, igual e livre, proprietário em potencial, atende às exigências também naturalizadas do intercâmbio equivalente” (KASHIURA JR., 2014, p. 182-183) e ii) mesmo que não se recaia no extremo da naturalização sobrecitada, ainda assim, corre-se o risco de perder a natureza histórica do direito e do sujeito de direito. O sujeito de direito poderia ser identificado tanto dentro quanto fora do capitalismo, “encarnado no indivíduo que realiza a troca na ‘sociedade mercantil simples’” (KASHIURA JR., 2014, p. 183). Nesses casos, a historicidade do sujeito de direito é vista como linear. Como uma linha em que a passagem do feudalismo para o capitalismo difere apenas que, naquele primeiro momento, a troca de mercadoria era acidental e restrita e, num segundo momento, o momento capitalista, ela generalizou-se e todos se tornaram trocadores e sujeitos de direitos.

A naturalização da subjetividade jurídica permitiria que a figura do portador abstrato de direitos atravessasse indiferentemente formações sociais completamente distintas. Isso, por sua vez, permitiria que os limites históricos da sociedade e do modo de produção capitalista fossem totalmente ignorados e o caráter transitório do modo de produção capitalista seja, igualmente, totalmente esquecido.

A análise científica do modo de produção capitalista demonstra (...) que ele é um modo de produção de caráter peculiar, com uma determinação histórica específica; que ele, como qualquer modo de produção determinado, pressupõe certo nível das forças sociais produtivas e de suas formas de desenvolvimento como condição histórica: uma condição que é, ela mesma, o resultado e o produto histórico de um processo anterior e do qual parte o novo modo de produção como sua base dada; que as relações de produção correspondentes a esse modo de produção específico, historicamente determinado – relações em que os homens entram em seu processo de vida social, na criação de sua vida social –, têm um caráter específico, historicamente transitório; e que, finalmente, as relações de distribuição são essencialmente idênticas a essas relações de produção, sendo um reverso delas, de modo tal que ambas partilham o mesmo caráter historicamente transitório (MARX, O

capital, III, 51, 5, p. 312, apud KASHIURA JR., 2014, p. 184).

A transição de um modo de produção para outro guarda em si não a marca de uma mera descontinuidade, mas sim a marca de uma ruptura fundamental. De uma ruptura do sistema capitalista com as relações feudais de produção, de sua superação pelo modo de produção capitalista, “que nada tem de automática, espontânea ou simples” (KASHIURA JR., 2014, p. 184). Para que a forma mercadoria e a forma sujeito de direito constituam o ponto de partida para a investigação da economia política na sociedade de capital e para uma investigação sobre os fundamentos do direito, é necessário que o trabalho abstrato tenha alcançado plena realidade, é necessário a concretização fática, contextual portanto, ou seja, que se tenha concretizado a histórica expropriação em massa dos trabalhadores dos meios de produção e que esses mesmos trabalhadores tenham sido obrigados, diante do acontecido, a vender a única propriedade que lhes restara, a sua força de trabalho, para um pequeníssimo número de detentores dos meios de produção. Portanto, é desse modo que “o pressuposto para que o sujeito de direito surja é, antes de tudo, a existência de uma grande massa de trabalhadores expropriados e a concentração dos meios de produção em unidades autônomas e concorrentes” (KASHIURA JR., 2014, p. 185).

Essa nova forma de organizar a produção exigiu que o trabalhador fosse “libertado” de todos os vínculos de dependência social e se tornasse livre igualmente de todas as condições de produção de seu próprio trabalho.69

69 Vale lembrar ainda que essa liberdade imposta, não foi aceita sem resistência. “Foi preciso esperar séculos para

que o trabalhador ‘livre’, em consequência de um modo de produção capitalista desenvolvido, aceitasse livremente, isto é, fosse socialmente coagido a, vender a totalidade de seu tempo ativo de vida, até mesmo sua própria capacidade de trabalho, pelo preço dos meios de subsistência que lhe são habituais, e sua primogenitura por um prato de lentilhas” (MARX, 2013, p. 433).

Em um mesmo movimento, o trabalhador é destituído dos meios de produção necessários a sua subsistência, bem como é alçado à condição de proprietário de sua força de trabalho. Assim o trabalhador, ao mesmo tempo expropriado e proprietário, vende a sua capacidade de trabalho para o detentor dos meios de produção, como sua única chance de sobrevivência.

É dessa maneira que a sociedade burguesa é fundada na existência de indivíduos formalmente iguais e livres. Iguais por serem todos considerados proprietários, uns dos meios de produção outros apenas de sua capacidade de trabalho. Livres por não transparecerem qualquer vínculo pessoal de subordinação e hierarquia entre eles.

A forma sujeito de direito não é algo acidental aprimorado gradativamente, mas sim, é uma determinação de um contexto histórico específico.

O problema central dessa linearização, dessa transformação gradual de todos em sujeitos de direito, antes considerada condição de poucos e posteriormente de muitos e de todos, é que a “passagem de uma sociedade pré-capitalista para uma sociedade capitalista poderia, nesse aspecto, ser pensada como uma passagem gradativa, na qual a condição de sujeito de direito se estende progressivamente para abranger todos os indivíduos” (KASHIURA JR., 2014, p. 186). E já que o direito surgiu de uma extensão passada, de um conceito de direito anterior, nada obstaria que esse mesmo direito se estendesse para o futuro, para outras formas sociais pós-capitalistas. No entanto, estender a figura do sujeito de direito é estender o próprio capitalismo, e estender o capitalismo é perpetuá-lo, inviabilizando a extinção dele e o surgimento de outras formas sociais.

A inespecificidade do sujeito de direito que o arrasta do passado para o presente e do presente para o futuro promove a redenção do sujeito de direito, criando um sujeito de direito humanizado, um sujeito de direito adjetivado. O adjetivo criado para pacificar o lado obscuro do sujeito de direito serve apenas para elidir a questão fundamental da extinção da forma jurídica.70

70 Como explicar o sujeito adjetivado? O adjetivo, gramaticalmente falando, tem por função qualificar ou indicar um atributo, bem como também precisa se encontrar ligado a um substantivo, qualificando-o. Assim, pode-se dizer “fruta madura”. O adjetivo “madura”, então, vive em função ou está subordinado ao substantivo “fruta” que lhe altera ou molda a natureza. Essa qualificação ainda pode funcionar como um predicado quando acrescida de um verbo “a fruta é madura”. Segundo Fausto, filósofo que parte da perspectiva contrária àapresentada, e que aposta na influência do hegelianismo na teoria marxiana, o homem, em Marx, ocupa um lugar semelhante ao espírito na

Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Assim como somente no final da Fenomenologia o espírito é posto, em

Hegel; somente no final o homem é posto, em Marx. A consciência a respeito do espírito só é posta no final do processo, logo, até esse término, o espírito está ausente. Para consciência filosófica, entretanto, o espírito está lá, mesmo que somente através de lampejos e fulgurações, o espírito está somente em forma de opinião (FAUSTO, 2015, p. 44), ou melhor, em forma de pressuposição. Antes de chegar ao comunismo, o homem é o operário, o homem é o capitalista, o homem é o cidadão grego ou romano, o homem é o servo, o homem é o senhor feudal,

Há um aparente paradoxo entre a circulação e as determinações da produção, portanto. Isso porque se por um lado, há uma necessária igualdade entre os sujeitos de direito, há, por outro lado, uma desigualdade latente no que tange a produção capitalista. “A equivalência na esfera da circulação parece então chocar-se com a exploração do trabalho” (KASHIURA JR., 2014, p. 188). O choque, contudo, é apenas aparente. “Daí que a forma original da relação (dos produtores de mercadorias iguais em direito que se enfrentam no mercado) não subsista

tal qual a função que exerce o adjetivo e o predicado na gramática, o homem não equivale a si próprio, (homem ≠ homem), ele é sempre limitado por um predicado (grego, romano, burguês, etc.) – nem todos os homens são homens, apenas o homem ateniense e cidadão grego é homem. O sujeito é reconhecido através de seus predicados, predicados esses que, na verdade, negam o sujeito homem. No entanto, essa negação também possui um caráter positivo ou ativo. O sujeito, ao ser negado pelo predicado, conserva-se enquanto sujeito negado. Assim, o capitalismo somente surge enquanto sujeito, porque ele, um dia, foi negado pelo feudalismo e porque foi negado (e simplesmente porque não era sujeito). O presente acaba sendo visto, segundo essa visão, como o englobamento de todas as negações anteriores, hoje afirmadas (postas). Nessa interiorização cumulativa, a consciência vive e experimenta os ecos das essências anteriores através da presença alusiva das formas históricas correspondentes ou, ainda, um passado suprimido conservado em seu próprio presente (ALTHUSSER, 2015, p. 79). Fausto argumenta que o sujeito era negado no feudalismo, no capitalismo o sujeito existe, mas ainda de forma limitada, adjetivada (o homem é o capitalista ou o operário), e que somente no socialismo o sujeito se concretiza. Para Fausto, entretanto, esse sujeito que é concretizado no comunismo não é o sujeito de direito, pois, para ele, o jurídico também funcionaria como um adjetivo; para o filósofo, então, no socialismo, simplesmente, “o homem é”, o sujeito é sujeito. No feudalismo, não havia sujeito; no capitalismo, o sujeito negando a negação total da existência do sujeito no feudalismo, surge como sujeito adjetivado ou limitado; no socialismo,o sujeito existe de forma total, pois negou as limitações do capitalismo. Todavia, a forma dessa argumentação pode ser apropriada de uma outra maneira. Assim, quem por ventura viesse a defender a tese da superveniência do direito ao fim do capitalismo, poderia defender que somente com o socialismo o sujeito de direito existiria sem a negação de um adjetivo ou predicado, se, ao contrário da interpretação de Fausto, o sujeito de direito não fosse visto meramente como um adjetivo. Muito embora a concretização dos princípios jurídicos se dê apenas com o comunismo, segundo o discurso da superveniência, a luta pela “concretização” de direitos deve acontecer desde antes da aurora de um modo outro de produção, deve iniciar com a reivindicação de direitos no próprio capitalismo. No capitalismo, as reivindicações de liberdade, de igualdade e de democracia devem obedecer aos princípios de liberdade, de igualdade e de democracia. Somente se pode reivindicar liberdade sem interferir na liberdade de outrem, igualdade sem interferir na igualdade de outrem, somente se pode lutar por democracia democraticamente. Nomeia-se esse discurso como humanismo jurídico. Fausto argui que é exatamente esse o objetivo do humanismo jurídico, concretizar, através do socialismo, os princípios jurídicos burgueses que no capitalismo apenas existem em forma de pressuposição (de maneira pressuposta, como adjetivo, como predicado). O pretenso humanismo jurídico, da diplomacia, ordem e negociação – da liberdade, da igualdade e da democracia – é essa eterna contradição entre meios e fins, exige-se meios humanos (o jurídico) em contextos inumanos (de violação através do capitalismo). No entanto, pôr o indivíduo à mercê de um discurso humano em um contexto não humano é tornar-se cúmplice da violência, o direito e o discurso jurídico são cúmplices da barbárie, quando não atores efetivos. O discurso jurídico não é a única forma de reivindicação, muito menos a única forma de linguagem. Dessa forma, estranhamente Fausto, contrariando a tese da superveniência, não elabora uma defesa de um direito concretizado, de um direito socialista, pelo contrário, Fausto, muito embora sob um viés hegeliano-marxista, elabora uma crítica do humanismo jurídico e do direito.

Falar em humanismo – no qual se objetivam meios humanos em contextos inumanos, como os contextos capitalistas, evidenciando uma contradição entre meio e fins, meio humanos e fins inumanos – é o mesmo que falar em reformismo. Pôr o homem à mercê de um discurso humano em um contexto não humano é torna-se cúmplice da violência do capitalismo. Nem por isso, entretanto, a crítica endereçada ao humanismo recairia numa defesa do anti-humanismo. Pois o anti-humanismo, por sua vez, é a tautologia. Se por meio da negação da negação, o discurso humanisma (jurídico, por exemplo), pode transformar-se em seu contrário (o antijurídico); o anti- humanismo, a exemplo do stalinismo, seria a violência pela violência. A violência que é incapaz de se interverter, é a barbárie. O stalinismo se afasta do que era a finalidade da violência revolucionária, o universo da não violência.

doravante senão como aparência” (EDELMAN, 1976, p. 147). A circulação capitalista é para a produção também capitalista, não a sua antítese, mas sim sua mais contundente realização. A desigualdade na propriedade é efeito da expropriação do trabalhador dos meios de produção e isso é condição fundamental para que o trabalhador se submeta ao capital. Se, por um lado, expropria-se o trabalhador dos meios de produção, por outro, concentra-se esses meios nas mãos de poucos; consequentemente, para se obter a força dos trabalhadores livres, reduz-se a condição de mercadoria essa força de trabalho, elevando à condição de sujeito de direito o portador da mercadoria, o próprio trabalhador. A parte jurídica, ou seja, a parte subjetiva da circulação mercantil, tem na desigualdade da propriedade sua mais profunda realidade. No fundo, o que constitui o fundamento das relações capitalistas é o encontro determinante e necessário no mercado dos possuidores da força de trabalho e possuidores dos meios de produção (EDELMAN, 1976, p. 148). Edelman (1976, p. 145) conclui, desse modo, que “a circulação já não é mais está região relativamente autônoma onde os indivíduos levavam ao mercado o excedente da sua produção, mas o lugar onde o capitalista vem em pessoa comprar o que lhe permitirá aumentar o seu capital: o trabalho humano”

Somente é possível opor a dinâmica da circulação àquela da produção se se tomar a primeira como independente, capaz de um aperfeiçoamento autônomo e como esfera perfeita de trocas de equivalentes antes e independentemente de quando a força de trabalho ingressou nela como mercadoria; porém, retoma-se, dessa forma, como já analisado, a hipótese da evolução da sociedade mercantil simples. Essa hipótese, como já visto, não leva em consideração o contexto capitalista e as especificidades da fase de acumulação primitiva, na qual o trabalhador foi expropriado da terra e dos seus meios de trabalho. Sob esse ponto de vista, o ingresso do trabalho na circulação mercantil poderia ser visto como uma distorção, como uma violação das leis naturais da circulação (liberdade e igualdade), mas não é o que de fato e historicamente aconteceu.

Como afirma Edelman, a circulação mercantil só se torna universal através da circulação do homem como mercadoria. “Isto quer dizer, para nós marxistas, o pôr em circulação a força de trabalho” (EDELMAN, 1976, p. 149). A esfera universal de trocas não é uma realidade independente, a circulação é uma determinação do próprio modo de produção capitalista. Portanto, foi impossível historicamente a existência de uma esfera universal de trocas independente da produção capitalista. Dessa forma, a propriedade da força de trabalho não é um acidente, mas sim é constitutiva da própria forma sujeito de direito, como propriedade de si próprio, “porque a forma sujeito de direito não é senão ‘a forma-mercadoria da pessoa’” (KASHIURA JR., 2014, p. 190).

O indivíduo despojado dos meios de sua subsistência é lançado no mercado como portador de uma única mercadoria, a sua força de trabalho. A mercadoria força de trabalho, que não é nada mais do que o próprio trabalhador, é alçada ao patamar de única propriedade de um grande contingente de indivíduos. E já que a força de trabalho é o próprio homem, todo esse processo acaba por reduzir o indivíduo ao patamar de mercadoria. É desse modo que a redução do homem à mercadoria força de trabalho permite, de modo simultâneo, que o indivíduo seja visto também como portador (sujeito) de direito. No caso, o direito de ser dono de si próprio, de sua força de trabalho. Na verdade, o indivíduo passa ser tomado como sujeito de direito, exatamente porque foi reduzido à condição de mercadoria. Isso porque segundo Marx, toda mercadoria precisa de seu guardião, de seu representante.71

Todas as pessoas são classificadas como dignas de serem proprietárias, não obstante, poucas realmente sejam proprietárias. Há uma oposição “entre igualdade na propriedade como potência e desigualdade na propriedade efetiva” (KASHIURA JR., 2014, p. 188), ou seja, mesmo que haja uma universalização (formal) da capacidade de ser proprietário, isso não