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Marx foi adepto do jusnaturalismo e com base nesse jusnaturalismo defendeu todo um conjunto de garantias ao cidadão em relação ao Estado prussiano. Marx, desse modo, segundo Naves, baseou-se em “uma teoria racionalista do Estado em que este tem por finalidade a realização da liberdade” (NAVES, 2014, p. 18), de clara influência hegeliana. Nesse momento de sua vida ainda, Marx explicitamente compartilhava a noção hegeliana da possibilidade de emancipação humana por via da Constituição do Estado moderno (BELTRAME, 2009, p. 9).

A intervenção de Marx no Gazeta Renana possui um caráter teórico e político e representava um programa de reforma do Estado prussiano. A colaboração de Marx no Gazeta Renana, assim, pressupunha um programa prático implícito de união da filosofia à política (BELTRAME, 2009, p. 12). Há, dessa maneira, em Marx, nesse período, uma determinação positiva do Estado e da política. Na participação política no Estado, era depositada todas as esperanças na possibilidade da realização do humano como um todo (BELTRAME, 2009, p. 17).

Marx, contudo, também se distanciou de Hegel, pois ao contrário desse filósofo, Marx não identificava no Estado prussiano o Estado racional e acabado proposto por Hegel (BELTRAME, 2009, p. 17). Para tanto, era necessário indicar iniciativas para a reforma do Estado real. Marx, todavia, supunha que a crítica era arma suficiente para desfazer os nódulos da irracionalidade estatal. A crítica seria arma suficiente para que o Estado pudesse voltar aos eixos dos ditames da razão.

Marx parte, então, do conceito de Estado ideal como medida para o Estado real. Diante desse modelo de Estado baseado na razão e na liberdade, o Estado é visto como a realização plena da política e do direito. Esse modelo de Estado pleno, por seu turno, é que deveria servir como medida para o Estado real prussiano (NAVES, 2000b, p. 22). No mesmo sentido da busca real pela plenitude ideal do Estado, o Estado é tomado como locus da universalidade. Os interesses particulares deveriam, portanto, sempre se encontrar, na esfera do Estado, subsumidos ao interesse geral. O Estado, para essa perspectiva, funcionaria, assim, como uma totalidade ética.

No Gazeta Renana é igualmente evidente a preocupação de Marx de que o interesse particular não viesse a subjugar o interesse universal do Estado. Um dos focos proeminentes de

Marx nesse período era a crítica de toda e qualquer pretensão de transformação do Estado em um instrumento do interesse privado. Na maior parte dos artigos dessa época há afirmações da superioridade do espírito sobre a matéria, da superioridade do Estado, representante do interesse geral, frente ao interesse particular (BELTRAME, 2009, p. 14-15). Em Debates sobre a lei castigando o roubo de lenha Marx denunciou essa submissão do interesse geral ao interesse particular da propriedade. Não restava dúvida para Marx de qual interesse deveria ser sacrificado. Somente assim a liberdade e a racionalidade triunfariam.

(...) A imparcialidade é apenas a forma, nunca o conteúdo do julgamento. O conteúdo é anterior à lei. E se o processo não é mais do que uma forma carente de conteúdo, as minúcias formais são desprovidas de valor (...). O processo e o direito não podem ser indiferentes entre si, como não é, por exemplo, a forma das plantas e dos animais em relação sua carne e seu sangue. É necessário um só espírito animando tanto o processo quanto as leis, pois o processo é somente a forma de vida da lei e, portanto, aquilo que manifesta sua vida interior.

(...) Quando o direito, materialmente, incorpora um interesse privado, que não suporta a luz da publicidade, há que se dar também a ele uma forma adequada, o procedimento secreto, para que ninguém crie ilusões tolas e perigosas. Consideramos um dever de todos os renanos, especialmente os juristas, dedicar neste momento uma atenção especial ao conteúdo jurídico, para que não se cubra simplesmente o rosto com uma máscara vazia. Pois a forma não tem nenhum valor quando não é a forma de um conteúdo.

A proposta da comissão a que acabamos de nos referir e o voto aprobatório da Dieta são o ponto principal de todo o debate, pois aqui se mostra a consciência da própria Dieta da colisão de interesses entre os proprietários de bosques e os princípios de direito, princípios sancionados pela nossa própria lei. A Dieta tinha por função votar ou a favor de que os princípios jurídicos fossem sacrificados em relação aos interesses privados dos proprietários de bosques ou, o inverso, a favor de que os interesses desses últimos devessem triunfar sobre o direito. Na votação o interesse triunfou sobre o direito. Nem sequer se oculta que toda lei é uma exceção à lei (...).

A Dieta, portanto, cumpriu plenamente a sua missão. Tem defendido, e por isso foi criada, um determinado interesse especial, considerado como um fim em si mesmo. E se para isso ela teve de pisotear o direito, não é mais do que simples consequência da sua missão, já que o interesse é por sua própria natureza cego, desmedido e unilateral; em uma só palavra, um instinto natural distante de qualquer lei (...). O interesse privado não adquire a capacidade de legislar pelo fato de sentar- se no trono do legislador (...).

O cidadão renano deveria triunfar sobre os estamentos privados, o cidadão deveria impor-se em relação aos proprietários dos bosques. A Dieta não está destinada pela lei somente ao interesse privado, mas sim ao interesse da coletividade. Sendo esses interesses incompatíveis entre si, não se deveria duvidar em nenhum só momento em sacrificar a defesa do interesse individual ao do coletivo (MARX, 1982a, p. 281-283).

Esses posicionamentos de Marx, de evidente influência hegeliana, baseiam-se em um esquema político-filosófico que toma por base duas esferas: a esfera da matéria, do interesse privado ou do interesse burguês e a esfera do interesse geral, do interesse do Estado e do cidadão. É de Hegel que Marx herda a noção de preponderância do interesse coletivo em detrimento do individual. Isso é possível observar mais objetivamente nos Princípios da Filosofia do Direito, de Hegel:

288 – Os interesses particulares das coletividades que fazem parte da

sociedade civil e se encontram situadas fora do universal em si e para si do Estado

são administrados nas corporações (§ 251°), nas comunas e outros sindicatos e classes, e pelas autoridades: presidentes, administradores, etc. Os assuntos de que cuidam são, por um lado, a propriedade e os interesses privados desses domínios particulares, e neste aspecto a sua autoridade assenta na confiança dos companheiros e concidadãos, mas, por outro lado, tais domínios devem estar subordinados ao interesse superior

do Estado de tal modo que, para a designação destes pontos, deve conjugar-se a eleição pelos interessados e a confirmação pela esfera superior.

289 – A conservação do interesse geral do Estado e da legalidade entre os direitos particulares, a redução destes àqueles exigem uma vigilância por representantes do poder governamental, por funcionários executivos e também por autoridades mais elevadas com poder deliberativo, portanto colegialmente organizadas. No seu conjunto, as autoridades elevam-se à proximidade imediata do monarca.

Nota – Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre este interesse geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado, entre as duas espécies de interesses reunidas e o ponto de vista mais elevado do Estado e suas determinações.

O espírito corporativo, que nasce da legitimidade dos domínios particulares, no interior de si mesmo se transforma em espírito do Estado, pois no Estado encontra o meio de alcançar os seus fins particulares. Esse é, deste ponto de vista, o segredo

do patriotismo dos cidadãos: reconhecem o Estado como sua substância, pois conservam os seus interesses particulares, sua legitimidade, sua autoridade e seu bem- estar. No espírito corporativo, que imediatamente implica a ligação do particular ao universal, é onde se verifica como o poder e a profundidade do Estado radicam-se nos sentimentos. A administração dos assuntos das corporações pelos seus próprios

chefes muitas vezes se revelará inepta, pois se eles conhecem bem os assuntos próprios das corporações já não conhecem tão bem a relação deles com condições mais afastadas e com o ponto de vista geral (HEGEL, 1997, p. 266-267, grifo meu).

Contudo, para Marx, o indivíduo somente deve respeito às leis do Estado na medida em que elas são a representação ou a personificação máxima das leis naturais da razão humana. A partir do momento em que elas, as leis, já não puderem mais executar essa função, o direito do Estado torna-se um não direito. Portanto, para Marx, uma lei poderia ser ilegal. Mesmo que uma lei para existir tenha cumprido todos os requisitos formais para sua promulgação, ela ainda assim será a expressão de uma ilegalidade se, caso contrário, ela não for também o reconhecimento positivo da lei natural que a antecede. Mesmo a lei não é lei por si mesma, a lei, de maneira geral, não se encontra “isenta do dever jurídico geral de dizer a verdade”, devendo ater-se à natureza jurídica das coisas existente antes dela. “O Estado é o grande organismo em que se deve realizar a liberdade jurídica, moral e política e onde o indivíduo cidadão obedecendo às leis do Estado obedeça às leis somente de sua própria razão, a razão humana” (MARX, 1982b, p. 236, grifo meu).

A lei não está desvinculada do dever geral de dizer a verdade. A lei possui duplamente esse dever, pois é o porta-voz geral autêntico da natureza jurídica das coisas. Por isso, a natureza jurídica das coisas não pode comportar-se segundo a lei, mas sim é a lei que deve comportar-se segundo a natureza jurídica das coisas. Porém, se a lei denomina furto de madeira uma ação que nem sequer constitui uma contravenção penal referente à madeira, está a lei, portanto, mentindo e o pobre é sacrificado por causa de uma mentira legal.

“Há dois gêneros de corrupção”, diz Montesquieu, “um deles quando o povo não observa absolutamente as leis; outro quando é corrompido pelas leis: trata-se de um mal incurável, porque encontra-se inserido no próprio remédio”.

Quanto menos lograreis fazer prevalecer a crença de aqui existir um crime, onde, de fato, nenhum crime existe, tanto mais havereis apenas de conseguir transformar o próprio crime em ato jurídico. Haveis obliterado as fronteiras diferenciadoras, porém equivocai-vos se acreditardes terem sido elas obliteradas tão somente no vosso interesse (MARX, 2007, p. 5).

Nesse período dos trabalhos de Marx, liberdade e igualdade possuíam uma existência natural. O Estado, por sua vez, seria a realização máxima da razão humana, o Estado deveria ser, efetivamente, um Estado de direito. Para tanto, uma lei que não observasse o direito natural, de ser livre e igual, do indivíduo, não seria uma lei verdadeira. A lei para corresponder ao direito natural dos seres humanos deveria ser o reconhecimento positivo da natureza jurídica das coisas.