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2.1 O PENSAMENTO DE ROBERTO LYRA FILHO

2.1.3 Contra Althusser

Althusser foi um filósofo franco-argelino marxista conhecido, entre outros vários motivos, por ter dividido6 o pensamento de Marx em fases: fase de juventude, fase de ruptura,

fase de maturação e fase de maturidade.7 Poder-se-ia dividir o pensamento de Marx pela simples

6 Segundo Pirola, Althusser adota a noção emprestada de Bachelard de “corte epistemológico” em que se diferencia

o nascimento da verdadeira problemática, que em Marx se dá a partir da Ideologia alemã, dos seus elementos ideológicos ou pré-científicos verificáveis nos escritos de juventude (PIROLA, 2016, p.3). “Uma ciência reconhecida está sempre liberta de sua pré-história e continua (...) interminavelmente se libertando do modo de sua rejeição como erro, do modo daquilo que Bachelard chamou de “a ruptura epistemológica (ALTHUSSER, 1978, p. 87).

7 Althusser designa como obras de juventude todos os textos de Marx de 1840-1844, de sua tese de doutorado aos

Manuscritos de 1844, incluindo a obra A sagrada família. Denomina ainda como obras de ruptura ou de corte as

obras que datam do ano de 1845, isto é, A ideologia alemã e as Teses ad Feuerbach. Como obras de maturação as obras que vão de 1845 a 1857, incluindo nesse grupo o Manifesto do Partido Comunista, Miséria da Filosofia,

Salário, preço e lucro, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, etc. Por fim, como obras de maturidade todas as

obras que vão desde 1857 a 1883, nela, incluindo, a obra mais contundente de Marx, isto é, O capital, mas também

razão de facilitar um estudo sistemático das obras marxianas, por exemplo. Porém, não se resumiu a isso a divisão empreendida por Althusser. O principal critério que rege essa divisão, foi o fato de haver, segundo Althusser, uma ruptura ou corte epistemológico no pensamento de Marx que modificou de tal forma o seu pensamento do filósofo alemão, que é lícito admitir, claramente, a existência dois polos opostos principais na obra marxiana, um polo ou estágio de juventude e um polo ou estágio de maturidade.

Uma primeira fase filosófica, na qual Marx ainda se encontra ligado a um viés jurídico, jusnaturalista, humanista e liberal radical e uma fase de maturidade em que ele rompe com essa perspectiva filosófica, abandonando o estudo sobre o direito e abraçando de vez a análise da economia política. Diante disso, sua obra torna-se científica, e não mais filosófica (NAVES, 2014, p. 17). O corte epistemológico em Marx materializa-se com a obra Ideologia alemã.

Althusser afirma que se procuraria em vão na obra de juventude de Marx os mesmos conceitos que servem de base para a sua teoria econômica (ALTHUSSER, 1978, p. 82). Nos Manuscritos econômicos-filosóficos de 44, obra filosófica, portanto, anterior ao corte epistemológico; são utilizados principalmente três conceitos base: “Essência Humana/Alienação/Trabalho Alienado” (ALTHUSSER, 1978, p. 83), a fase filosófica de juventude de Marx também está marcada por conceitos jurídicos como propriedade, vontade e Estado.

Já a partir de a Ideologia alemã, haveria, para Althusser, uma mudança de terreno, na qual Marx passa a utilizar novos conceitos tais como “modo de produção, relações de produção, forças produtivas, classes sociais enraizadas na unidade das forças produtivas e das relações de produção, classe dominante/classe dominada, ideologia dominante/ideologia dominada, luta de classes, etc.” (ALTHUSSER, 1978, p. 82-83). Esses conceitos pós-corte epistemológico são, segundo Althusser, de natureza científica. A análise marxiana passa, então, a oferecer conhecimentos objetivos. A nova problemática levada a cabo por Marx permitiria levar em consideração os problemas reais da história concreta e os resultados demonstráveis ou verificáveis pela prática científica e política. A obra de Marx se tornara científica porque passou objetivar oferecer conhecimentos objetivos e verificáveis que possibilitassem à classe proletária concretizar a revolução e transpor, assim, o sistema de exploração capitalista.

Com a Ideologia alemã há, explicitamente, uma rejeição das abstrações humanas em geral, uma rejeição do “delírio da ideologia, e muito expressamente da Filosofia, que é então concebida como simples ideologia: melhor, como ideologia por excelência” (ALTHUSSER, 1978, p. 84). Portanto, a história da ciência revolucionária marxiana é uma negação de sua pré- história filosófica. Para Althusser, o intento de ler a obra de Marx como uma continuidade entre

filosofia e ciência, tem como meta justamente impedir a concretização de resultados revolucionários práticos e dar continuidade, através da ideologia filosófica pequeno-burguesa, ao próprio sistema capitalista.

Costumeiramente, também o pensamento de Althusser é associado ao stalinismo. Isso, segundo Motta (2014, p. 35), é devido, em parte, a uma má vontade na leitura da obra de Althusser, diante da inventividade teórica de sua interpretação sobre a obra marxiana, devido ao fato de Althusser também ter reconhecido méritos à ruptura de Stalin com o humanismo teórico da fase filosófica de Marx8 – o que redundou na negação da dialética como negação da

negação e, portanto, na negação da necessidade de influência do hegelianismo na obra madura de Marx –, por Althusser, do mesmo modo, ter reconhecido os méritos históricos da luta de Stalin contra o nazifacismo (ALTHUSSER, 1978, p. 63)9 e por Althusser também ter

reconhecido os méritos intelectuais de Stalin em sua defesa da manutenção da língua.10

Porém, excetuando-se esses casos, Althusser não poupou críticas à política de Stalin. Inexiste em Stalin, conforme Althusser, o entendimento de uma dialética como prática teórica. O dogmatismo stalinista leva em consideração a teoria não pelo seu valor prático de ciência, ou seja, pelo seu valor de guia para a ação prática do proletariado, mas utiliza a teoria como um mero discurso de autoridade a serviço da legitimação da política oficial (MOTTA, 2014, p. 41). Stalin, nesse sentido, não deu a mesma ênfase ao primado do real sobre o abstrato, como Althusser achava necessário. Em Stalin prevalecia o primado das forças produtivas, em Althusser, o primado das relações de produção e a determinação em última instância pela economia é o que tem preponderância (MOTTA, 2014, p. 40).11

Todavia, Lyra Filho critica ferrenhamente Althusser e mesmo o define como stalinista. Lyra Filho é contrário à leitura da obra de maturidade de Marx como resultado de um corte

8 Porém, outros filósofos reconheceram méritos a Stalin e não se tornaram necessariamente stalinistas, por isso

nem mesmo foram tachados como tais. Esse é o caso de Gramsci e Lukács (MOTTA, 2014, p. 36).

9 “Como negar o mérito de Stalin a essa questão?”, indaga Motta (2014, p. 37), a favor da luta soviética contra o

nazifacismo.

10 Na URSS havia um debate político em torno da língua, se a “língua burguesa” deveria ser substituída ou não

por outra língua de matriz proletária. Essa substituição seria acompanhada por um vocabulário novo e por uma gramática nova, bem como pelo total aniquilamento da língua precedente. Os setores que defendiam a substituição da língua, localizavam-na na superestrutura do fenômeno social. Porém, Stalin, discordava desse entendimento de que a língua faria parte da superestrutura e haveria, portanto, uma língua burguesa se a superestrutura e a infraestrutura fossem burguesas e haveria uma língua proletária em um modo de produção socialista ou comunista. Para Stalin, isso se deve à confusão entre língua e cultura. Porém, língua e cultura seriam coisas distintas, a cultura pode ser capitalista ou socialista, mas a língua é sempre um elemento comum a todo o povo servindo, indiferentemente, a antigas e a novas culturas. O enriquecimento de uma língua depende do acúmulo dos séculos, das épocas, das tendências, romper ou negar essa riqueza seria contribuir para o empobrecimento da linguagem (MOTTA, 2014, p. 38).

11 Esse e outros conceitos serão melhor trabalhados no quarto capítulo. Cita-se, nesse momento, essas divergências

epistemológico com sua obra filosófica de juventude. Lyra Filho enxerga a obra de Marx como um inarredável continuum. Nesse viés, o método dialético em Hegel e em Marx deveria ser percebido sob uma mesma linha de parentesco. Para Lyra Filho, “nem no jovem Marx encontra- se uma produção simplesmente ‘especulativo-filosófica’, nem no Marx da maturidade temos um cientificismo que renega sua filosofia dialética” (LEMA, 1995, p. 83).

Parece ser proibido em Lyra Filho utilizar, mesmo que como apenas um método de facilitação de estudo, a divisão em fases da obra marxiana sustentada por Althusser; o que provoca, consequentemente, grande confusão a quem inicia uma interpretação de Marx pelos textos de Lyra Filho.

Lyra Filho admite que Marx e Engels sempre se defenderam contra a ideia de que o seu socialismo científico continuava sendo uma filosofia (LEMA, 1995, p. 84). Mas essa oposição de Marx e Engels é bastante distinta dos marxismos “oficiais”, “vulgares” ou “ortodoxos” que se consolidaram posteriormente. Na verdade, para Lyra Filho, qualquer marxismo era um marxismo oficial e vulgar, porque a teoria de Marx tendia a negar papel revolucionário ao direito, tal como Lyra Filho enxergava.

Para tanto, Lyra Filho não poderia se nomear marxista, pois ele sabia que, preponderantemente, Marx negara importância ao fenômeno jurídico, tanto que nunca elaborou um estudo sobre o direito. Lyra Filho não poderia concordar em sua integridade com esse pensamento, dada a sua certeza do papel revolucionário que o direito poderia exercer, muito embora sua admiração e afinidade com pensamento marxiano fosse algo explícito. Althusser, de acordo com essa linha de raciocínio seguida por Lyra Filho, foi então um pensador que contribuiu, grandiosamente, com o “marxismo vulgar”, porque além de ele não dar crédito ao papel desempenhado pelo direito, Althusser ainda rechaçava totalmente a análise do direito na obra de Marx à fase de juventude, humanista e filosófica. Sabe-se agora que o pensamento de Marx que realmente era digno de nota para Althusser era o pensamento pós-ruptura epistemológica, visto como econômico e científico, e não mais filosófico. Porém, Lyra Filho compreendia que o socialismo real soviético, incluindo a fase stalinista, mas não somente ela, ao fazer oficialmente uma apologia do marxismo como teoria científica, negou os princípios jurídicos humanistas.

Essa atitude, por sua vez, permitiu que historicamente se cometesse inúmeras atrocidades. Suprimiram-se, em nome da ciência marxista, direitos e massacraram-se vidas. A divisão em fases criada por Althusser criou consequentemente um arcabouço teórico de legitimação de toda a “sujeira histórica” perpetrada pelo socialismo soviético. O que causou a indignação e mesmo a cólera de Lyra Filho:

(...) apesar de todas as diferenças superficiais de fundamentação, o althusserianismo, como o Diamat, o marxismo clássico, transformado em pílulas de estalinismo (e similares), acabam convergindo no resultado e substrato de combate a Hegel e castração da dialética. O francês anti-humanista, desdialetizante realiza a mesma operação final, que polarizou o marxismo à la russe, pseudo-humanista, pseudo-dialético e estatólatra: – são ambos traições a Marx. E a identidade a que chegam essas duas vertentes anti-marxianas do marxismo – identidade no efeito, como evidência da idade nos empanamentos ideológicos, forjados para justificá-lo – é, segundo Marx, um critério decisivo para avaliar o alcance das propostas, já que a práxis, nele, é a pedra de toque da teoria, e não vice-versa. Marx era um tipo de pragmático, só separável do pragmatismo capitalista de James (o time is money filosófico) pela dialética, na qual se fundem, ao invés de se perderem no mecanicismo das determinações, a prática da teoria e a teoria da prática. Evidentemente, o resultado que mencionamos (unindo o Diamat e o althusserianismo) é aquele socialismo despótico – a contradição em termos, referida por Bloch. Althusser, tanto quanto os marxistas do Diamat, defende e mantém o autoritarismo (embora de forma astuciosa, solerte e disfarçada). Assim, é que nas suas próprias críticas ao modelo autoritário de organização do PCF, ele se apressa a ressalvar que não pretende alterar o “centralismo” que denomina de “democrático”, mas permanece autoritário o que ofende a democracia, o socialismo e Marx simultaneamente. Além disto, em Althusser, a dominação da práxis pelo partido e pelo governo – isto é, pelos instrumentos de controle e coerção, inclusive estatal – não é menos clara no seu teor burocrático e repressivo, pesando sobre os trabalhadores. Ao invés de preconizar, como queria Marx, o desmantelamento do aparelho estatal, em benefício da res pública autogerida pelos que trabalham, Althusser segue o modelo de Lênin (com a eliminação stalinista do “poder dual”, para controle do Estado e Partido, pelas massas, almejado por Lênin. Noutras palavras, o “socialismo” de Estado, que enrijece e trai, não só Marx, como, até certo ponto, o próprio Lênin, não chega nunca à sociedade sem classes e sem Estado, pois é obstruído pelo poder que diz realizar a “transição” interminável. O que ocorre em Althusser, é que ele nos está querendo, a pretexto de antidogmatismo, passar o velho e desmoralizado conto do vigário stalinista (muito disfarçadamente) (LYRA FILHO, 1983a, p. 79).

Ou ainda:

(...) nunca houve um Marx, feito bloco de mármore, nem dois, com o primeiro a “preparar” o segundo e, sim um só homem, que atravessa, de uma ponta a outra, a existência, buscando a verdade, anotando intuições, desenvolvendo ideias, em giros que compõem a sua própria espiral ascendente. Por isto mesmo, os temas, as teses vêm e voltam, sob diversas eliminações e em formas contraditórias, mas não incompatíveis – se retomarmos o fio da meada, para tentar mostrar como umas reenquadram as outras e, mesmo quando, eventualmente, assumem a parte como todo, não se inutilizam, enquanto parte, esclarecida em caminho (LYRA FILHO, 1983b, p. 36).

Nesse sentido, Lyra Filho relativizou a questão da divisão de Marx em fases. Marx estaria “correto” em pontos distintos e em datas distintas. Portanto, a leitura de Marx de Lyra Filho é continuísta (LEMA, 1995, p. 87). O que leva sua interpretação a se afastar do tipo de interpretação levada a cabo pelo marxismo ortodoxo. Além de ser um motivo a mais para Lyra Filho se intitular como não marxista.

Lyra Filho teve como objetivo elaborar uma leitura não determinista da obra marxiana, no qual infraestrutura e superestrutura se determinariam mutuamente. Essa determinação recíproca anteciparia o melhor sentido de dialética utilizado por Marx que, em verdade, é o encontrado em sua fase de juventude, e não na de maturidade. O melhor sentido de dialética,

delineado de forma mais abrangente na fase de juventude de Marx, é a dialética como co- penetração dos contrários.

Quando abordamos Marx, do ponto de vista dialético, o que emerge é a co- penetração dos contrários, de tal sorte que – por exemplo – a concepção de homem como, essencialmente, liberdade (concebida enquanto potencial de liberação, na práxis, em que cumpre dinamizá-la) não é de nenhum modo incompatível com a visão do “ser humano” e a sua existência histórica então concebidos, não como cabide das relações sociais, porém como lugar da conscientização dessas relações, que o condicionam, sem acachapar-se em “determinações” mecânicas. Assim, é que se poderiam quebrar os elos da cadeia de influxos e modelagens, que nos enformam, para nos recriarmos, livres, em outras formas, superadoras. Nessa tarefa coletiva, o Homem se desideologiza, gradualmente, buscando o processo de desalienação que componha o fragmento possível, a cada instante, do Homem Total (LYRA FILHO, 1983b, p. 36- 37).

Em síntese, para Lyra Filho, negar o pensamento filosófico e humanista em Marx é negar os direitos humanos, é dar brecha às violações de direito. Dividir a obra de Marx em fases e atribuir valor somente à obra de maturidade, que em grande medida ignora a questão do humanismo, é ignorar a dialética. É negar que dialeticamente um pensamento socialista possa se fundir a uma conquista anterior ao próprio socialismo. Para tanto, deve-se tomar em consideração o melhor de dois mundos, o melhor do trabalho de Marx de juventude e o melhor do trabalho de Marx de maturidade.

E ao julgar pelo melhor do pensamento marxiano, Lyra Filho concluiu que o melhor mesmo é considerar o direito sob uma perspectiva dialética (dialética como co-penetração dos contrários), considerando o seu valor de transformação ou de revolucionarização, e não negando, portanto, as conquistas jurídicas históricas das fases anteriores da humanidade.

2.1.4 As limitações do pensamento de Marx e o resgate do pensamento marxiano, por Lyra