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3 A NARRATIVA DAS MULHERES: IDENTIDADES DE GÊNERO E NAÇÕES

3.2 A GEOGRAFIA FIGURATIVA DO NACIONAL: DESCONSTRUINDO

PIRÂMIDES

A escolha de fazer a leitura do par estado-nação, no universo narrativo, a partir das vozes literárias das escritoras compartilha com Scott (1988) a imagem da resistência e interage com uma abertura à temática, por colocar no foco da atenção a recriação de uma nação com uma certa independência da ideia abstrata de Estado, inclusive por apresentar-se como uma proposta micro-sentida, em uma escala espacial afetiva e de tensões que são as relações de família e por ilustrar, como já sinalizara Saffioti (2009), ao abordar as relações e as distribuições diferenciadas de quotas de poder, a capacidade da negociação feminina:

E você, Odete, preocupa-se com o Brasil? Envergonhada, Odete não sabia onde pôr as mãos. O que havia no Brasil que merecesse tantos cuidados ou uma resposta firme, naquela hora? Acaso deveria falar de Getúlio, de Chico Alves? Como se fosse de fato possível alguém falar do seu país, dele dizer coisas parecidas ao que se diz, por exemplo, a uma pessoa de quem se gosta? Não sei dona Eulália. Acho que sim. Só que eu não sei bem como o Brasil é. É sempre difícil entender o país da gente. A senhora não acha? (PIÑON, 1984, p. 432).

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No original: “Para producir la nación que sirve de fundamento para el estado-nación, la nación

119 Apresenta esta autora algum compromisso com a ideia de nação? Ou devemos assumir que, ao intencionar-se sua denúncia como uma estrutura enraizada em uma situação desfavorável à participação feminina, em ambas as dimensões – construção e institucionalização sócio-cultural do conceito inicial de “fundação” –, essa visão das narradoras parte de outros questionamentos. Como poderiam ocupar-se em pensar a nação dentro de suas narrativas, se, atendendo a esta tradição, as mulheres não foram originalmente convocadas para pensá-la? O que foi lhes permitido sentir com respeito a esta ideia? Será que é plausível colocar a questão em termos de sentimentos? Ainda que, no romance de fundação ficcional da América Latina, a retórica erótica e sentimental tenha desempenhado um dos principais papéis152, aparece a interessante pergunta de se isto também se reflete com esse impulso nas autoras que analiso. Sobretudo quando a personagem Odete é convidada a responder e a sua resposta lhe gera uma ansiedade profunda e desconhecimento das palavras, das regiões. Porém, ela consegue sentir no corpo uma chamada, um engajamento com a definição como se fosse uma definição de seus próprios ossos, mas produzindo uma reação de vergonha e tentando localizar em um outro corpo, naquele de quem se gosta e, principalmente, em um corpo anterior, original e precedente, a resposta esperada.

Odete, como personagem de literatura, indica a situação posicional na qual pode se movimentar uma mulher quando é afastada da possibilidade de pensar a nação (porque as tentativas anteriores de afastá-la da possibilidade de pensar fracassaram). Quando se lhe proíbe a primeira intenção, produz-se uma ausência, cria-se uma alteridade à necessidade, ou não, em termos operativos, de um conceito que lhe resulta incoerente e ambíguo à sua existência, e que pode chegar a ser detonado ou destruído quando o ausente (essa mulher/mulheres) ocupa seu lugar ativamente, gerando uma consciência alternativa de negociação ou resistência.

Assim, a/as ausente/s conseguem também ausentar, de seu novo espaço dotado de sentido crítico, as produções e as imposições que as deslocaram, podem operar em sua falta, desde sua falta e recriar a realidade a partir de outro ponto simbólico consensuado, de sua condição alterada, com sentidos de estranhamento (sócio-cultural), e, por isto, com ímpetos de ruptura.

“A casa...” e a “República...” ao tempo em que mantêm a ideia do nacional como ficção, permitem uma leitura da nacionalidade e das identidades que ajuda a desmontar os

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Segundo o trabalho de Doris Sommer (1991), Fundational fictions. The national romances of

120 constructos legitimados pela criação falologocêntrica de se pensar sobre o assunto. No intuito de recriar a outridade a partir de uma leitura oblíqua153, convertem-se em instrumentos úteis para a compreensão da aparição das seguintes metáforas explicativas, “a afinidade da imaginação nacionalista”, e as “fantasmagóricas imaginações nacionais”, construções que estão na contracorrente do pressuposto “[da] nacionalidade como essência meta-histórica” (MELO MIRANDA, 1994)154.

Igualmente, os romances encenam como foi que, de maneira coexistente aos processos de sedimentação do pensamento nacionalista, a relação poder-saber se converteu, mediante a linguagem e a escrita, em um mecanismo de exclusão e de criação da subalternidade de gênero e racial. Por que, senão, Eulália perguntaria a Odete o que ela acha sobre a nação? Justamente a Odete? Cabe a esta mulher negra falar? Pode o subalterno falar? (SPIVAK, 1985). Neste momento, seguindo a lógica de Martiatu (2008), mostra-se uma dupla consciência ao interno das relações coloniais assim como dos vícios da desvalorização do oposto racial e etnicamente diferente. Sendo, neste caso, Odete e Getúlio os personagens do romance A República dos Sonhos, mencionados no início do capítulo, síntese do par: o biográfico pessoal e a história macro, sobretudo quando pensamos em uma pirâmide imaginária de hierarquias na qual Odete fica na base e o representante do poder oficial no topo. É interessante observar que a configuração positivista e binária desta estrutura assim como a sua reprodução estão ligadas entre si em uma outra pirâmide imaginária na qual a casa fica na base e a República no topo. De igual forma, os matizes que caracterizam os personagens conseguem caracterizar o grau em que se manifestam as distintas opressões.

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Em oposição à ideia do perpendicular. 154

Anos 80: O que se pensa de América Latina como um todo: um panorama da América Latina em sua literatura, patrocinado pela Unesco no final da década de 1970. Na introdução, o organizador, César Fernández Moreno, aponta a diretriz central do trabalho: “considerar a América Latina como um todo, integrado pelas atuais formações políticas nacionais” (MELO, 1994, p. 35).

Espaço nação. Nesse caso, cabe investigar o que chama de “espaço-nação” como uma forma liminar de representação social, internamente marcada pela diferença cultural que assinala o estabelecimento de novas possibilidades de sentido e novas estratégias de significação. É o que ocorre, por exemplo, com a emergência e a afirmação do discurso das minorias  mulheres, negros, homossexuais  que introduzem processos de negociação por meio dos quais nenhuma autoridade discursiva pode ser estabelecida sem revelar sua própria diferença. “[...] Daí a importância delegada às contra-narrativas marginais ou de minorias, na medida em que, ao evocarem a margem ambivalente do espaço-nação, intervêm nas justificativas de progresso, homogeneidade e organização cultural próprias à modernidade. Modernidade esta que racionaliza as tendências autoritárias e normativas no interior das culturas, em nome do interesse nacional e das prerrogativas étnicas” (MELO, 1994, p. 36).

121 Aqui pode se colocar a continuação de um par de afirmações ilustrativas que seriam, com certeza, uma parte intrínseca dessas afirmações inteiramente patriarcais, racistas e capitalistas: “Odete, mulher negra doméstica versus o presidente Getúlio, homem e branco”, “na casa a mulher, e no topo da república, o homem”. Sem embargo, ambos são protagonistas, ao mesmo tempo, de um colapso no devir do macro que afeta uma biografia intimista que passa a ser íntimo-pública, sobretudo publicada e, desta vez, lida em termos de constituição da identidade.

Isso merece, a partir da própria configuração da escrita das romancistas, uma entrada na fase de desconstrução das imagens das pirâmides para passar a falar em interseccionalidade155 como uma imagem de reforçamentos e fluxos, ainda que sejamos conscientes da persistência dessas estruturas base-topo na dialética dos procedimentos de desempoderamento/empoderamento e, em geral, do poder. Desta forma, retomo a voz de um dos personagens para ilustrar o que entendo como impacto futuro de uma mirada interseccional:

Venâncio prenunciou no futuro outras Odetes determinadas a desmistificar o paraíso redentor das lágrimas, em troca de ações práticas, de caráter político. Voltadas contra o arbítrio e a linguagem encantatória e inflamada dos políticos de linhagem populista como Getúlio (PIÑON, 1984, p. 437).