• Nenhum resultado encontrado

4 O PESSOAL TRANSITÓRIO: A INTERSECCIONALIDADE DO ENTRE-

4.1 SE AS PAREDES FALASSEM: PAREDES PRIVADAS E PÚBLICAS, O

A partir das obras analisadas, pode-se mostrar a importância destas representações e tentar colaborar com uma perspectiva cultural que trabalhe acima do discursivo, contando com as ferramentas que oferecem termos como entre-lugar e entre-tempo, que permitem sustentar a hipóteses de que o pessoal é um campo aberto, permeável e transitório.

O público e o privado aparecem associados à lógica do dentro e do fora, externo, interno; é a lógica da delimitação espacial que considera ambos como espaços objetivos ou, inclusive, que pode se chegar a nomear como espaços objetivos e subjetivos ao mesmo tempo. Neste apartado, se quer ressaltar um componente, o que fala da construção cultural, do papel da tradição na imposição da lógica baseada em um imaginário social e, portanto, assentado em forma de mito.

Vocês entendem qual alcance tem este mito, do dentro e do fora: é o da alienação que se funda sobre esses dois termos. O que se traduz em sua oposição formal converte-se em alienação e hostilidade entre ambos. E assim, a simples oposição geométrica se entinta de agressividade. A oposição formal não pode permanecer tranqüila, o mito a trabalha (BACHELARD, 1992, p. 251, tradução minha)162.

O reconhecimento do mito e de sua função desestabilizadora (ao interno da produção literária proposta) conduz à formulação de perguntas diretrizes: o que é o pessoal? Continuará a ter o mesmo efeito a expressão “o pessoal é político” do feminismo radical, em uma etapa de descentramentos, esvaziamentos, pós-estruturalismo, globalização neo-liberal? Terá sentido ensaiar como uma resposta possível que o pessoal é o privado? Como afetariam estas questões as noções de política e de poder?

James Williams (2012), no seu livro Pós-estruturalismo, repara no sentido que tem para dita corrente a categoria de limite. Um limite que não se compara com os sentidos

162

No original: “Ustedes sienten qué alcance tiene este mito de lo de fuera y lo de dentro: es el de la

alienación que se funda sobre esos dos términos. Lo que se traduce en su oposición formal se convierte más allá en alienación de hostilidad entre ambos. Y así, la simple oposición geométrica se tiñe de agresividad. La oposición formal no puede permanecer tranquila, el mito la trabaja”.

137 estruturalistas de diferença entre objetos identificáveis senão entre variações abertas, chamadas, muitas vezes, de processos de diferenciação cujos efeitos são transformações, mudanças e reavaliações.

Que tipo de reavaliação seria pertinente para o pessoal-político sendo que, até hoje, mantém uma vigência ativa e que além se traduz, voltando para nossa metáfora inicial de que não existem paredes nem muros que cortem o impacto do poder, das desiguais relações de poder, suas cotas diferenciadoras e contraditórias (SAFFIOTI, 1992). Uma definição tradicional do âmbito privado abarca, nas palavras de Agner Heller, “as emoções domésticas”. Quais seriam as emoções domésticas?

Segundo a descrição básica que podemos encontrar nos textos das narradoras163, ditas emoções se confundem com o sentido de realização de Blanca, modelando a argila para as crianças com “deficiência”, como se apontava na época (Allende), e também com a postura dependente de Antonia, de respeito à autoridade de pai e marido (Piñon) que se transcrevem como sinônimos de relações familiares, matrimônio, trabalho doméstico e o cuidado das crianças, deste modo, fazendo do privado o pequeno mundo da mulher: uma esfera feminina sobre a qual os representantes homens do patriarcado exercem o sentido de propriedade e de proteção das interferências públicas164. Porém, para nossa advertência, estão sempre colocadas em “positivo” e isto quer dizer que, provavelmente, não estão sendo incluídas nessas emoções, a raiva, o desacordo com as imposições de tarefas do cuidado, os orgasmos autoprovocados de Esperança sozinha na sua cama no quarto compartilhado com Antonia (Piñon), a fuga de Blanca no meio da madrugada, entre os latidos dos cachorros, para encontrar o amante junto do rio e provocar por meio da desculpa literária da “fugitiva”, um terremoto que acabara destroçando os ossos do pai (Allende); e o que falar do aborto de Amanda? (Allende).

Fazia parte do sentido comum fechar os olhos para este tipo de circunstâncias, reprimidas de forma tal que possibilitaram as outras perspectivas “em positivo” que devemos tomar em conta sobre o público e o privado e que também estariam imersas, por exemplo, no conceito de direitos. Uma definição que, ao tempo em que faz recrudescer os princípios

163

Indicaremos pelo nome das autoras a que narrativas pertencem as personagens. 164

“Para el liberalismo, en el pasado, este ámbito privado abarcó casi siempre, en palabras de

Agnes Heller, ‘las emociones domésticas’, es decir, matrimonio, familia, trabajo doméstico, y cuidado de los niños. En suma, la noción liberal de ‘lo privado’ ha abarcado lo que se ha denominado ‘esfera de la mujer’ como ‘propiedad del varón’ y no solo ha tratado de defenderlo de la interferencia del ámbito público, sino que también ha mantenido aparte de la vida de lo público a quienes ‘pertenecen’ a esa esfera: las mujeres” (DIETZ, 2001a, p. 8).

138 liberais subjacentes da liberdade individual e da igualdade formal, estabelece correspondências entre os direitos individuais e a noção de um âmbito de liberdade privado, separado e distinto do público no qual o Estado não pode interferir legitimamente. Isto enfatiza a proteção dos aspectos privados e individuais que, de início, correspondem a uma sensação de privacidade familiar, que é a contrapartida do público para o masculino, por representar o descanso ou retiro  versus trabalho, ou exposição social. Deste modo, as definições sobre as emoções domésticas e de direitos foram alternando permanências e mudanças que provocaram sérias consequências para a vida das mulheres.