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3 A NARRATIVA DAS MULHERES: IDENTIDADES DE GÊNERO E NAÇÕES

3.3 AS INSTITUIÇÕES SOCIALIZADORAS DO SENTIMENTO DA NAÇÃO

Podemos perceber que, nas obras estudadas, as famílias ocupam o lugar de protagonista. Pertencem à classe média, mas essa correspondência se deve ao processo de vir de baixo, em uma luta entre ser ou não aceito, e o ponto de honra (Weber, 1974) de classe é conseguido em ambas as narrativas através do matrimônio como contrato social, com duas mulheres de classe estabelecida e com o reconhecimento de certo “nome” social. Neste sentido, Grínor Rojo (2013) reforça a importância da família latino-americana como uma

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“O interesse pelas categorias de classe, de raça e de gênero assinalava inicialmente o compromisso do(a) pesquisador(a) com uma historia que incluía a fala dos(as) oprimidos(as) e com uma análise do sentido e da natureza de sua opressão; assinalava também que esses(as) pesquisadores(as) levavam cientificamente em relação o fato de que as desigualdades de poder estão organizadas segundo, no mínimo, estes três eixos” (SCOTT, 1990, p. 2). Entendendo por interseccionalidade: “uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam

122 forma de mobilidade sociológica ascendente através do casamento com um consorte de família tradicional. Uma panorâmica que se redimensiona com a aparição da figura do migrante no mapa sentimental de latino-américa.

Neste aspecto, a narrativa de estudo coincide com uma proposta histórica que nasce das experiências lembradas e arquivadas, conforme as lacunas e as invisibilidades da produção de ausências e de fragmentos estilhaçados de entre-lugares e entre-tempos. Aparece fora dos limites reconhecidos do padrão heteronormativo do identitário, que costuma se legitimar e se instalar nos lugares privilegiados de produção do conhecimento.

Penso que o anterior nos leva a re-configurar o assunto dos espaços ou campos para perguntarmos: Como é, ou como fica, o espaço da nação: é público, é privado? E peço para não tachar semelhante ideia de mais uma “maquinação absurda” dos e das obstinados/as em uma compreensão social que leve em conta a categoria de gênero, sendo que, em primeira instância, “a esfera pública e a noção de uma comunidade política surgem precisamente como alternativa ao estado nação e sua relação estrutural com o nacionalismo” (BUTLER; SPIVAK, 2009, p. 58-59, tradução minha)156. E peço, ainda, que não duvide da existência de outros. Prefiro retomar, à maneira de marco filosófico subjacente, e oculto, na política das posições, aquele que Heidegger (1989), na sua busca de permanência (a filosofia do Ser), vincula a um sentido de geopolítica e de destino determinado pelo lugar, sentido que, nele, era tanto revolucionário (na conotação de se projetar para o futuro) como intensamente nacionalista (HARVEY, 1992).

A posicionalidade feminina, que pode dialogar com o enfoque citado para enriquecer sua perspectiva, se descreve na Casa dos Espíritos da seguinte maneira:

En la euforia patriótica de los primeros días, las mujeres regalaban sus joyas en los cuarteles, para la reconstrucción nacional, hasta sus alianzas matrimoniales, que eran reemplazadas por anillos de cobre con el emblema de la patria. Blanca tuvo que esconder el calcetín de lana con las joyas que Clara le había legado, para que el senador Trueba no las entregara a las autoridades (ALLENDE, 1982, p. 230).

Ou seja, em um momento pontual dos anos 70 da temporalidade chilena, o pacto entre as identidades de gênero através da união heteronormativa do matrimônio em sua desigualdades básicas que estruturam as posições relativas das mulheres, raças, etnias, classes e outras” (CRENSHAW, 2002, p. 177).

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“La esfera pública y la noción de una comunidad política surgen precisamente como alternativa

123 acepção mais tradicionalista é reconvertido em um pacto-aliança com a nação que devolve o significado do laço matrimonial como um casamento com a ordem estabelecida. A apropriação do símbolo pela maior instância de poder consegue aplicar uma superposição do valor da relação íntimo-afetiva com os valores da política formal instaurada, ao tempo em que consegue visibilizar a marca do novo pacto, em um objeto material com dupla leitura: o emblema do patriarcado é também o emblema da pátria.

Um pacto desta ordem é possível de se materializar graças a um arsenal ou embasamento ideológico que permite essa costura como uma translação de sentido. O signo epistemológico que o fundamenta é o mesmo que se expressa em noções como:

[...] a verdadeira felicidade que Durkheim (uma das máximas figuras representativas do Positivismo) recomenda que os seres humanos procurem, deve ser redirecionada do amor a Deus e a obediência à Sua Igreja para o amor à nação e a disciplina perante um Estado nacional (BAUMAN, 2009, p. 47).

As instituições socializadoras do sentimento de nação aparecem nas duas obras: são três instituições que, a nível macro, demonstram limites definidos entre si e apresentam tensões: Família-Estado-Igreja. Mas, em um nível micro, os limites e tensões no habitus157 das pessoas coabitam e se expressam em configurações difusas e de forma tal que, no nível individual, termina se produzindo um consenso que é proveitoso para a reafirmação dessas instituições que aparecem como separadas e que, no plano macro-social, alimentam essas divisões. Então, estes romances destacam como os sujeitos sociais têm a habilidade e a capacidade de se manter como ponte de integração dos principais paradoxos modernizatórios. A transposição da economia do amor doméstico para a economia do amor à pátria também aparece no texto de Nélida Piñon:

Em resposta a tanto estímulos, a Defesa Civil percorria os bairros arrecadando as doações feitas com patriotismo [...]. Não havendo, então, quem não doasse alianças de ouro, simbolizando matrimônios com mais de

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Pierre Bourdieu: “Habitus: Esta noção de habitus permite enunciar algo muito próximo da noção de hábito, ao tempo que se distingue dela num ponto essencial. O habitus como a palavra indica, é algo que se tem adquirido, mas que tem se encarnado de maneira perdurável no corpo na forma de disposições permanentes [...] O habitus é um princípio de invenção que ainda que produzido pela história, está relativamente desprendido dela: as disposições são duráveis, o que produz toda classe de efeitos de histereses, de retraso de defasagem. O exemplo por excelência é Don Quixote (1990, p. 156, tradução minha).

124 trinta anos, e outras jóias, para a compra de armas e suprimentos (PIÑON, 1984, p. 235).

A pátria é equiparada a qualquer dos objetos, dentro de uma variada multiplicidade que lhe serve como moeda de troca. A pátria se funde nos anéis como matéria de intercâmbio que é usada: cotidiana, mundana, manuseável. Até o ruído das panelas e dos objetos caseiros operaram metonimicamente, visto que desde o doméstico se interpelou o poder das armas (MONTECINO, 2007)158. A panela conseguiu expressar as relações políticas tanto quanto as necessidades que ela evoca. Outra vez procuro a voz de Venâncio que reclama: “Você se engana. A fome é que nos trouxe até aqui. E a fome será sempre um ato político onde quer que ela se declare” (PIÑON, 1984, p. 186). Em outro dos seus textos, Piñon declara: “Tenho fome de justiça social, de justiça privada, de justiça interior” (2011, p. 44). Desde o espaço da casa e com os signos da mãe se ritualizaram os atos da impugnação da ditadura (MONTECINO, 2007).

Paralelamente, as duas escritoras mostram “divagações” inerentes à escrita que conseguem pontuar os significados outros (por falar do “privado” como político) imersos no campo do imaginário social latino-americano que se espelha na expressão da romancista brasileira: “Os artistas já não são os donos exclusivos da imaginação. Quem desfruta agora do desvario da imaginação é o Poder. Como exemplo, basta olhar os ditadores da América Latina, só para ficarmos neste continente” (PIÑON, 1984, p. 590).

Não devemos entender, então, como casualidade, o fato de que essas duas obras, de Piñon e Allende, tenham em comum um mesmo traço: o de utilizar o terror dos avôs, como figura patriarcal central de ambas as narrativas, a partir da qual se desencadeia o exercício de extração (recriação) das memórias. Utiliza-se o terror ante os corpos de suas netas como corpo de tortura. Se, por um lado, a troca dos anéis das mulheres encerra uma coerção sutil associada às formas sociais do uso do corpo feminino, em Allende, a trama da tortura está consistentemente atrelada em uma trama pessoal-familiar.

Alba está nas mãos de Esteban García, filho bastardo que é descrito como propenso à crueldade, desde criança, e escolhe a pessoa de Alba como objeto/corpo no qual depositar uma possibilidade de retomar a dignidade social. Trata se de sua vingança à rejeição pela vida à margem. García utiliza Alba para provocar e projetar a própria dor, uma dor que

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“El ruido de las cacerolas y de los enceres domésticos operaron metonímicamente en tanto desde

lo doméstico se interpeló el poder de las armas, desde el espacio de la casa y con los signos de la madre se ritualizó la impugnación a la dictadura” (MONTECINO, 2007, p. 135).

125 lhe pertence como herança de injustiças construídas baseando-se em um sistema que é de gênero também. Sua mãe passou pelos estupros que passaram suas antecessoras mulheres em mãos de homens que se aproveitaram não somente da condição de domésticas senão, além disto, das condições de vulnerabilidade pelo pertencimento a um lugar de origem e a uma etnia:

Pancha García no se defendió, no se quejó, no cerró los ojos. Se quedó de espaldas, mirando el cielo con expresión despavorida, hasta que sintió que el hombre se desplomaba con un gemido a su lado. Entonces empezó a llorar suavemente. Antes que ella su madre, y antes que su madre su abuela, habían sufrido el mismo destino de perra (ALLENDE, 1982, p. 39).

Este fato descrito na narrativa traz à colação um matiz que se abre a uma forma de olhar e de se perguntar em termos sociais, subjetivos, pelo aspecto familiar identitário dentro das ocorrências de tortura com fins ideológicos da política formal, do aparelho das ditaduras e sobre como, nessas ocorrências, encontram-se, de forma interseccional, diferentes opressões habitando concomitantemente e que produto deste vínculo reforçador pré-existente pode se reconhecer como pontos de vulnerabilidade mediante os quais a tortura se fazia factível. São os pontos que aterrorizam Madruga quando pensa em uma Breta jornalista (A República...) e que leva Estevan Trueva (A Casa...) a negociar com a figura da prostituta para tirar Alba do lugar (deslocado) em que fazia sentido como peça, carne na qual se cobram as tensões, conflitos da história-pátria e da história familiar.

O termo privado, que, a estas alturas, parece mais com o termo privação, faz parte do poder que se vale da coerção e da força militarizada, neste devir de América Latina. Butler e Spivak declaram: “Não estamos por fora da política quando estamos nesse estado de desapossamento. Mas bem somos depositados numa densa situação de poder militar, na qual as funções jurídicas se convertem em prerrogativas das forças armadas”159

(2009, p. 46, tradução minha).

Desta forma proponho voltar à direção fornecida pelo pensamento de Harvey (1992) e Butler e Spivak (2009), especificamente do primeiro, por ser insistente em nos advertir que, para Foucault (1979), o único irredutível do esquema de coisas é o corpo

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No original: “No estamos fuera de la política cuando estamos en ese estado de desposesión. Más

bien, somos depositados en una densa situación de poder militar donde las funciones jurídicas se convierten en prerrogativas de las fuerzas armadas. No se trata de nuda vida, de mera vida, sino de una formación particular de poder y de coerción diseñada para producir y mantener la condición (el estado) de privación” (BUTLER; SPIVAK, 2009, p. 46).

126 humano, por ser ele o “lugar” em que todas as formas de repressão terminam por ser registradas. Retoma do próprio Foucault, unido à visão de outros escritores como Bachelard (1992), Certeau (1974) e Bourdieu (1978) as abordagens conectadas à fenomenologia e com perspectiva psicológica do espaço e do tempo. Com respeito ao primeiro, Harvey (1992) destaca sua relação com as forças da repressão, da socialização assim como da disciplina e da punição.

Vale lembrar, então, um dado que, no marco selecionado, vai nos ocupar sempre nesta digressão: esses corpos são sexuados. Estes escritores – ainda que separe, mas não elimine Bourdieu (1960), pela sua escrita de tipo acadêmica – são autores contestados, uma e outra vez, através da narrativa irreverente que anuncia: “Todo país é um sexo por onde se enfia sem medir a profundidade do prazer. Tudo o que se quer é ir fundo, o maior número de vezes possível” (PIÑON, 1984, p. 217). Nélida Piñon traz imagens que insinuam a construção do pensamento sobre o nacional decorrendo de paisagens sexuais, no erotismo do ato, do desejo e da fantasia. Costura a dor, junto a uma máxima quase freudiana da presença do sexo, quase ritual, agregando ao poder da relação entre os corpos um fio para dialogar com a política a partir da cena que foi excluída, como se excluem basicamente todos os instintos160:

A visão tumultuada trazia-lhe tão somente um punhado de negros, índios, brancos, todos aglutinados no chão e em torno da mesa. Na obsessão de fazerem pátria e sexo ao mesmo tempo. Único motivo, aliás, de muitas vezes discutirem política justo na hora de trepar. E falarem da genitália enquanto criavam instituições jurídicas, que lhes pautassem a vida social. Estes deslizes confundindo-os de fato, posto que ambicionavam formar uma nação, a despeito desta ordem de impedimentos (PIÑON, 1984, p. 199).

Existe afinidade eletiva entre esse assunto da novela de Isabel Allende e vários dos postulados incluídos no texto de Nélida Piñon que fazem uma leitura do sexo atado aos destinos da nação. Pensa-se a nacionalidade como um entremeado de corpos em relação unidos na busca do prazer, na sexualidade limitante ou limitada, para alguns corpos, e deliberada em outros. O quarto, a cela, o banheiro, o auto-prazer são abertos e mostrados na

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Sem embargo e apesar das tentativas pela despolitização do fato literário, outra ferramenta de análises e compreensão histórica que nos aporta a teoria é o par gênero, no gênero como política sexual de Kate Millett que tem justificado dita asseveração com estas palavras: “ressaltando a função que desempenham conceitos como poder e dominação em algumas descrições da atividade sexual oferecidas pela literatura contemporânea” (1995, p. 27).

Esta literatura tinha copiado o detalhado realismo da pornografia e seu caráter anti-social: “Em um sonho americano, a sexualidade feminina alcança um ponto de despessoalização que se confunde com a classe social ou com a natureza” (MILLETT, 1995, p. 49).

127 tensão e na supressão de uma energia “fortificante”, como no caso do personagem que procura os presos da ditadura enquanto perde sua libido sexual ou que somente encontra, nos momentos de fraqueza do seu ser, na identidade desvanecida, uma resposta de seu corpo que vem para re-integrá-lo, sem importar-se com o rumo das circunstâncias. Pode alternar-se a conexão, consciência para com o social com momentos de desconexão, negação, rejeição, distanciamento com a pressão que pode vir de “fora” e que, em Nélida Piñon, recebe a denotação de despotismo:

Até o escravo brasileiro foi educado para ser prepotente e déspota. Desde o nascimento nos puseram em desacordo com os mais elementares princípios democráticos. Ninguém escapou da vagina fraudulenta e do pênis opressor. Isto numa escala interminável (1984, p. 129).