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1 A AMÉRICA IMAGINADA: UM BOSQUEJO CRÍTICO EM LETRAS DE

1.5 O PODER DA LINGUAGEM

María de los Ángeles Durán no ensaio “La mujer ante la ciencia: carácter político

del lenguaje”, aponta: “Talvez não seja possível um movimento político importante sem um

acompanhamento ou um esforço no nível da linguagem, e não só na linguagem das palavras, senão na dos gestos e as expressões da arte” (MORENO SARDÀ, 1987, p. 46, tradução minha)106, como se reflete no seguinte parágrafo:

Escritos de folcloristas, representações literárias ou plásticas, discursos normativos, até provérbios situam todos um problema de estatuto [...]. Discurso que confunde inocência e natureza, sexualidade animal e humana, ousadia e submissão da mulher (SOIHET; SOARES; COSTA, 2000, p. 14).

Ainda que não devamos passar por alto, o fato de que algumas autoras coloquem, como uma das fragilidades da história das mulheres, uma inflação de estudos sobre os

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“Esses diversos tipos de escritos são infinitamente preciosos porque autorizam a afirmação de um ‘eu’. É graças a eles que se ouve o ‘eu’, a voz das mulheres. Voz em tom menor, mas de mulheres cultas, ou pelo menos, que tem acesso á escrita. E cujos papeis, além do mais, foram conservados. São condições difíceis de ser cumpridas” (PERROT, 2007, p. 29).

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No original: “Tal vez no sea posible un movimiento político importante sin un acompañamiento o

un esfuerzo en el nivel del lenguaje, y no solo en el lenguaje de las palabras, sino en el de los gestos y las expresiones del arte”.

66 discursos normativos, que “mal levam em conta as práticas sociais e os modos de resistência a esses discursos” (SOIHET; SOARES; COSTA, 2000, p. 21, tradução minha).107

Escandón (1999) nos indica que a crítica feminista considerou, como outro espaço de importância, as relações entre a perspectiva histórica e a linguagem.

Este último é uma expressão da subordinação da mulher, que acostuma passar despercebida durante seus multíplices usos e funções tanto cotidianas como científicas, permeando saberes tanto populares como os eruditos.

Amparo Moreno Sardà estabelece que, nas linguagens que formam parte de nossa cultura ocidental, “a marca da subordinação da mulher” se poderia rastrear em três ordens distintas: “durante a elaboração dos conceitos (construídos em grande parte a partir de experiências que não são delas), [o qual tributa para o sentido de conceitualização da nação que procuro nas narrativas selecionadas] na própria estrutura (as regras referentes às relações) e durante o uso (a aparição de linguagens específicos de cada sexo) e a conotação valorativa das palavras associadas à mulher” (1987, tradução minha).108

Existe uma corrente que enfatiza, sobretudo no caráter “sexuado” da linguagem e na polissemia de significados das palavras. Percebe uma categorização que sublinha a diferenciação genérica. Esta corrente coincide com a terceira variante do enfoque psicanalítico sobre gênero: a chamada estruturalista, que destaca a função da linguagem como veículo para a representação do gênero e a reprodução de um sistema de significados (ESCANDÓN, 1992).

Escandón (1999, p. 146) destaca a capacidade simbólica da linguagem assim como a associação das palavras com rasgos de signo masculino ou feminino: “fraca = mulher; valente = homem, por colocar um exemplo”. Ao mesmo tempo, nos lembra da ideia de Jacques Lacan de que a linguagem é um instrumento estruturador, construtor tanto da identidade como da subjetividade sexual, com repercussões para a história. Identifica o histórico com processos de longa duração, nos quais nos resulta possível analisar os modos mediante os que as diferentes sociedades, criam, constroem, outorgam e mudam os

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No original: Que “mal llevan en cuenta las prácticas sociales y los modos de resistencia a estos

discursos” (SOIHET; SOARES; COSTA, 2000, p. 21).

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No original: “[...] durante la elaboración de los conceptos (construidos en gran parte sobre

experiencias que no son las suyas), en la propia estructura (las reglas referentes a las relaciones) y durante el uso (la aparición de lenguajes específicos de cada sexo) y la connotación valorativa de las palabras asociadas a la mujer” (MORENO SARDÀ, 1987, p. 46).

67 significados dos símbolos coletivamente109. Dentro desses processos de longa duração encontramos a assimilação que fazemos dos diferentes tipos de linguagem, a saber:

A assimilação pessoal da linguagem verbal, ao longo do processo educativo, implica a assimilação da modelação histórica  coletiva da linguagem que utilizamos. Daí que a revisão crítica do instrumental básico da elaboração do discurso exija, à par, um exercício autocrítico que afeta aos hábitos mental- linguísticos que temos assimilado, pessoal-coletivamente (MORENO SARDÀ, 1987, p. 46, tradução minha).110

Para Foucault também a linguagem seria um elemento importante. “Com o conceito de diferença de Lacan, Foucault criou a categoria ‘discurso’ como uma tecnologia de organização de ideologia associada com a formulação das ideias” (ESCANDÓN, 1999, p. 146, tradução minha).111 “O emprego das fontes orais revela discursos contraditórios nos quais temos o confronto entre o imaginário, a tradição e as diferentes realidades (da mulher, do grupo social ao que pertencem)” (DE CASTEELE; VOLEMAN, 1992, p. 104, tradução minha).112

Neste aspecto, os discursos podem ser entendidos como instrumentos de regulação e de controle social, mas também como instrumentos de transformação, porque estes discursos podem ser reformulados de forma alternativa (FOUCAULT apud AGUADO, 2004). Isto reafirma a objetividade de múltiplas possibilidades de resistência, algo importante para aquelas historiadoras que continuam preocupadas pelas inflações de estudos discursivos no campo historiográfico que pretende dar conta das mulheres.

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“Otro espacio importante en el que la crítica feminista ha señalado la necesidad de una

perspectiva histórica es en relación con el lenguaje. La idea de Jacques Lacan de que el lenguaje es un instrumento importante en la construcción, tanto de las representaciones simbólicas como de la identidad y la subjetividad sexual, ha tenido repercusiones para la historia pues es allí, en la historia, en los procesos de larga duración donde es posible analizar la manera en que las sociedades crean, construyen, otorgan significado y sobre todo cambian el significado colectivo de los símbolos” (ESCANDÓN, 1999, p. 145).

110

No original: “La asimilación personal del lenguaje verbal, a lo largo del proceso educativo,

implica la asimilación de la modelación histórica- colectiva del lenguaje que utilizamos. De ahí que la revisión crítica del instrumental básico de la elaboración del discurso exija, a la par, un ejercicio autocrítico que afecta a los hábitos mental-lingüísticos que hemos asimilado, personal- colectivamente”.

111

No original: “‘Discurso’ como una tecnología de organización de ideología asociada con la

formulación de las ideas”.

112

No original: “El empleo de las fuentes orales revela discursos contradictorios donde se enfrentan

lo imaginario, la tradición y diferentes realidades (de la mujer, del grupo social al que pertenecen)”.

68 Não obstante, para essas historiadoras que permanecem preocupadas, vale a pena incorporar uma das argumentações de Joan Scott (1988), quando reconhece o aporte frutífero da perspectiva discursiva ao tempo que adverte, como em ocasiões pode resultar incompleta no que concerne à realidade das experiências históricas, já que uma asseveração semiótica demais e ligada ao pós-modernismo tem significado, em termos paradoxais, uma reprodução distorcida da ideologia masculina hegemônica contida nos discursos.

Assim, aproveitando uma interessante confusão entre lugar personagem, na

República dos sonhos, continuarei a expor como o fato de que o discurso histórico pode ser

contado desde uma forma literária permite abrir para as mulheres novos enfoques metodológicos de apropriação e formas de enunciar que possam se adaptar a suas contradições e suas situações de paradoxo:

Você esqueceu que o Brasil começou há quatrocentos anos?  Para mim ele só começou com sua vinda pai. Depois que o senhor desembarcou na praça Mauá. Por isso o Brasil tem apenas hoje vinte e cinco anos. Esperança abria e cerrava os olhos num lento gesto de sedução. [...] Madruga pressentiu o perigo. A ânsia de liberdade da filha a ameaçá-lo, rondando-lhe a casa. – O senhor não acha que um país, jovem assim, merece a mais completa independência? O direito a cruzar a porta quantas vezes quiser, só para ir viver no descampado? (PIÑON, 1984, p. 734).

Gosto da forma, como o resume Scott (2002), ao dizer que não vê estas mulheres

 por exemplo, Olympe de Gouges  como heroínas modelares senão como marcos históricos, como lugares, areias nas quais se travam embates políticos e culturais cruciais, e que imaginar uma mulher como lugar não significa neste caso lhe negar sua humanidade, senão reconhecer os fatores que fazem dela uma agente, e as múltiplas e complexas maneiras pelas quais se converte num ator histórico: “Quero entender o feminismo em termos de processos discursivos – a epistemologia, as instituições e as práticas que produzem os temas políticos, que possibilitam o agir, mesmo quando proibido ou negado” (SCOTT, 2002, p. 45).

Ficam desta forma entrelaçadas entre si várias situações – posições que se retroalimentam, as que afetam às mulheres no lugar que pretendem construir para elas dentro da história como lugares de enunciação: as fontes narrativas, os discursos, as memórias, o fazer literário, o poder linguístico, a oralidade; e as relações de gênero que começam a colocar as mulheres como sujeitos históricos.

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