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A guerra e os tratados internacionais

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 87-89)

INTERSECÇÕES ENTRE A GUERRA E O DIREITO

2. A guerra no direito internacional

2.6. A guerra e os tratados internacionais

A guerra constitui, como é óbvio, uma alteração fundamental das circuns- tâncias de que se encontra dependente o normal desenvolvimento das relações internacionais. Nessa medida, ela gera uma situação de instabilidade, de maior ou menor amplitude, que não pode deixar de apresentar consequências directas, de resto de natureza diversificada, sobre as condições de vigência dos tratados.

No que diz respeito aos tratados que regem o direito internacional huma- nitário, a eclosão de um conflito tem, evidentemente, consequências favoráveis no que toca às condições da sua execução. É que, concluídos para normativizar os termos e condições em que a guerra deve ser travada, só nessas circunstâncias tais instrumentos podem plenamente produzir os efeitos a que se destinam.

No que toca a todas as restantes convenções internacionais, não custa admitir que, a existirem, as consequências sobre a sua aplicabilidade só poderão, em tese, configurar-se como negativas, embora não seja indiferente a natureza, bilateral ou multilateral que apresentem ou o tipo de relações afectadas – entre Estados beligerantes ou entre estes e os Estados não-beligerantes.

Classicamente, admitiam-se soluções diversas para a questão: i) a caducidade dos tratados celebrados entre beligerantes; ii) A suspensão da vigência de tratados implicando a existência de relações pacíficas entre os Estados (aliança, comér- cio, navegação); iii) A permanência daqueles (ou das suas cláusulas) que não se demonstrassem incompatíveis com o estado de guerra, ao menos na dimensão relativa às relações com terceiros Estados56.

A matéria do direito dos tratados é regida, hoje em dia, pela Convenção de Viena de 1969. Sucede que esta não aborda, em termos estruturados, o tema dos efeitos da guerra, limitando-se a três referências parcelares:

• No artigo 52.º, em lógica decorrência do princípio da proibição do recurso à força e em linha com o sentido apontado desde a já referida Doutrina de Stimson, fulmina com nulidade (de natureza absoluta), qualquer tra- tado cuja conclusão tenha sido obtida pela ameaça ou pelo recurso a ela; • No artigo 73.º, determina que as suas disposições não prejudicam nenhuma

questão que possa surgir, a propósito de um tratado, pela abertura de hostilidade entre tratados;

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• No artigo 75.º, estipula que as suas disposições não afectam as obrigações que possam resultar em virtude de um tratado, para um Estado agressor, das medidas tomadas de acordo com a Carta da ONU, a respeito dessa agressão57.

Pela sua relevância, o assunto foi longamente trabalhado pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas que, em 2011, aprovou um “Projecto de articulado sobre os efeitos dos conflitos armados em matéria de tratados”58.

E aí destaca-se, como orientação fundamental, a ideia de que a eclosão de um conflito armado não envolve, ipso facto, a cessação de vigência ou, sequer, a suspensão da vigência de um tratado, seja entre as partes beligerantes, seja na relação de qualquer delas com um Estado terceiro (artigo 3.º).

Assim, para avaliar se um tratado é susceptível de cessação de vigência, de recesso ou de suspensão (artigo 6.º), terá de proceder-se à avaliação: i) da sua natureza (em particular da matéria de que se ocupa, do seu objecto, dos seus fins e do número de partes que o integram); ii) das características de cada concreto conflito (nomeadamente a sua extensão territorial, a sua escala e intensidade e a sua duração).

Caso as condições necessárias estejam preenchidas, um Estado que pretenda fazer cessar a vigência do tratado, operar o seu recesso ou suspender a sua aplicação, deverá notificar dessa intenção os demais signatários, cabendo-lhe fazer prova, nos termos gerais, do fundamento da sua pretensão. Os demais contratantes podem, naturalmente, opor-se, pelo que, ocorrendo um litígio por força dessa objecção, os Estados comprometem-se a solucioná-lo por recurso a qualquer dos meios de resolução pacífica previstos no artigo 33.º da Carta da ONU (artigo 9.º).

O projecto elenca ainda, em função dos temas a que respeitam, os tratados cuja vigência não é automaticamente afectada pela ocorrência de um conflito armado:

• Tratados sobre conflitos armados, incluindo sobre direito internacional humanitário;

57 André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros vêem neste normativo, a nosso ver sem fundamento, uma afirmação da irrelevância da abertura das hostilidades sobre as relações contratuais (Manual de Direito Internacional Público, Coimbra, Almedina, 3.ª ed., 2001, p. 252).

58 Sobre o tema, pode ver-se Lucius Caflisch, “Articles on the Effects of Armed Conflicts on Treaties” (disponível em: http://legal.un.org/avl/ha/aeact/aeact.html).

• Tratados que declarem, estabeleçam ou regulem um regime ou estatuto permanente, ou direitos permanentes com ele relacionados, incluindo tratados que estabeleçam ou modifiquem fronteiras terrestres ou marítimas; • Tratados multilaterais sobre a produção de normas de direito internacional; • Tratados sobre justiça penal internacional;

• Tratados de amizade, de comércio e de navegação e acordos relativos a direitos privados;

• Tratados sobre a protecção internacional de direitos humanos; • Tratados relativos à protecção internacional do ambiente;

• Tratados relativos a cursos de água internacionais e instalações e facilidades com eles relacionados;

• Tratados relativos a aquíferos e instalações e facilidades com eles rela- cionados;

• Tratados que constituam actos institutivos de organizações internacionais; • Tratados relativos à resolução internacional de conflitos por meios pací- ficos, incluindo por recurso à conciliação, à mediação, à arbitragem e aos meios judiciais;

• Tratados atinentes às relações diplomáticas e consulares.

É certo que o projecto em causa se situa no domínio do jure constituendo, uma vez que não deu origem, pelo menos até ao momento, a uma convenção internacional, de que deverá, em princípio, constituir a base essencial. Não deixará de se notar, contudo, que na sua resolução n.º 72/121, de 7 de Dezembro de 2017, a Assembleia Geral das Nações Unidas sublinhou o valor do documento enquanto contributo orientador da actuação dos Estados, convidando-os a utilizá- -lo como referência, sempre que apropriado.

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 87-89)