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Gigantismo, hiper-constitucionalização e “constitutional politics”

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 100-104)

NAS ORIGENS DA CONSTITUIÇÃO DE 1976: GIGANTISMO, CONTRADIÇÃO E PAZ SOCIAL

2.1. Gigantismo, hiper-constitucionalização e “constitutional politics”

Bem se pode dizer que uma Constituição que desce a este pormenor consti- tucionaliza quase tudo. Ao fazê-lo, rigidifica muitas matérias que assim escapam à liberdade do legislador, ficando fora do plano da “política do dia-a-dia”. 3 Cf. Veiga Domingos, Portugal Político, Lisboa, 1980, p. 90, que refere que 64,5% dos “preceitos” foram aprovados

por unanimidade.

4 Assim, em parte, vide Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 7.ª ed., tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 357.

5 Cf. António Araújo, “Erros e tragédias no constitucionalismo democrático português”, Polis. Revista de Estudos

Jurídico-Políticos, ano VI, n.os 7/8, Jan-Dez. 1999, p. 76.

6 “Voladura controlada” lhe chama Javier Perez Royo, Curso de Derecho Constitucional, 2.ª ed., Madrid, Marcial Pons, 1995, p. 120.

A expressão “política do dia-a-dia” ou “política normal” têm paternidade que importa assinalar. Trata-se de um conceito utilizado por Bruce Ackerman na sua teoria republicana do constitucionalismo8; talvez tais conceitos se revelem

úteis para este propósito permitindo-nos verificar quais os limites do “gigantismo constitucional” no contexto português.

O constitucionalista norte-americano distingue duas formas de política, com tempos e conteúdos diversos: a política constitucional e a política normal. A primeira seria o produto da vontade do povo que em momentos excepcionais e por isso raros exerceria a soberania vazando para um documento formal chamado Constituição as regras básicas da vida em sociedade que deveriam vincular todos pelo menos durante uma geração (no sentido constitucional em que Thomas Jefferson lhe dava, 20 em 20 anos). A política constitucional traduzir-se-ia nos momentos constituintes, em que o povo pela via referendária ou através de representantes eleitos aprova uma nova Constituição ou a altera.

Já a política normal é o resultado da actividade diária dos órgãos de poder, parlamentos ou governos, que legislam e administram. Estão sujeitos à Constitui- ção mas têm ampla liberdade de conformação na definição das políticas porque as maiorias políticas que os apoiam são variáveis e contingentes.

Uma democracia assim concebida e a funcionar seria uma “democracia dualista”; a democracia portuguesa é hoje uma democracia dualista. Contudo, o gigantismo constitucional ameaçou este paradigma porque a omnipresença da política de todos os dias no momento constituinte inicial e nos restantes momentos constituintes reduziram o espaço da política constitucional. Tal facto poderia ter impedido a paz como alguns anunciaram e ter obstado ao sucesso de uma “democracia dualista”, ou seja, uma Constituição tão grande e tão invasiva impediria a política do dia-a-dia, devendo – vaticinaram os profetas da desgraça – gerar bloqueios e conflitos. Mas isso não aconteceu ou, pelo menos, não aconteceu com a inevitabilidade e a gravidade antecipada por tantos. Houve certamente refregas judiciais e sonoras polémicas políticas como já dissemos. Mas as revisões constitucionais geraram novos compromissos e nada impediu que as alterações político-legislativas resultantes das mais diversas maiorias, à esquerda e à direita, nestas quatro décadas, tenham sido aprovadas e apesar de tudo com 8 Cf. Bruce Ackerman, We the People, vol. 1, Foundations, Cambridge, London, Harvard University Press, 1993, p. 6 e

ss. E 173-199. Cf. também Ricardo Leite Pinto, O “Momento maquiavélico” na Teoria constitucional norte-americana.

Republicanismo, História, Teoria Política e Constituição, 2.ª ed. Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2010, p. 176

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respeito da “vontade da Constituição”, ou seja, as divergências políticas e sociais entre actores os mais diversos contiveram-se no respeito da Constituição da República Portuguesa. Em conclusão, a Constituição foi e continua a ser “uma força activa da consciência jurídica geral”9.

3. Contradições

A principal contradição da Constituição da República Portuguesa de 76 decorre das condições do seu nascimento, discussão e aprovação, realizadas entre 25 de Abril de 1975 e 2 de Abril de 1976 atravessando um período convulso do pós-25 de Abril.

Ela esteve no centro dos principais acontecimentos político militares da época e traduz naturalmente a evolução e as contradições desse mesmo processo político. Os debates na Assembleia Constituinte traduzem, de forma cristalina, isso mesmo. De um lado um projecto revolucionário de sociedade que pretendia transformar a sociedade portuguesa numa sociedade sem classes, com uma eco- nomia tendencialmente colectivizada ou estatizada de acordo com um paradigma marxista-leninista e, do outro, um projecto de configuração da sociedade e do Estado de acordo com o modelo das democracias constitucionais e representativas ocidentais com iniciativa privada e Estado social. O lugar da Constituição – consoante optássemos por um dos dois modelos – seria completamente diverso.

No primeiro caso, a Constituição-programa, no outro, a Constituição-garantia. Vital Moreira e Freitas do Amaral traduziram essas visões completamente opos- tas. Vale a pena recordar ambos os pontos de vista tal como foram expressos na Assembleia Constituinte.

Vital Moreira, deputado na altura do PCP, teorizava acerca do papel e força de uma Constituição aprovada por Assembleia Constituinte em pleno processo revolucionário:

“A composição da Constituinte fica fixada num determinado momento. Mas, parale- lamente, o processo revolucionário avança. O desfasamento inicial entre a Constituinte e a Revolução pode alargar-se com o decurso do tempo. Ficam então criadas as condições para uma contradição entre a Revolução, por um lado, e a Constituição, por outro. A Constituição,

9 Cf. Mariana Canotilho, “40/30. Quarenta anos de Constituição, trinta de integração europeia: entre passado e presente, abertura e pertença”, UNIO. EU Law Journal, vol. 3, n.º 1, Jan. 2017, p. 42.

nestas condições, tem vocação conservadora, tende a considerar a revolução terminada, isto é, tende a consumir a revolução em termos constitucionais, institucionalizando-a, fixando- -a definitivamente, pondo fim à dinâmica revolucionária, liquidando ou neutralizando os órgãos revolucionários”10.

Já Freitas do Amaral, deputado constituinte do CDS, entendia as relações entre Revolução e Constituição de modo diverso:

“A revolução precisa, pois, da sua Constituição. Estamos agora a tratar de fazê-la. Devemos dar-lhe a natureza de documento sólido e firme, colocado no topo do edifício político, e não a de um texto frágil e aberto, permeável a todas as ultrapassagens ensaiadas por quaisquer revolucionários insatisfeitos. Devemos procurar pôr de pé uma Constituição capaz de perdurar nos seus traços essenciais – assegurando no tempo a perenidade dos direitos e liberdades fundamentais e, bem assim, uma ordem tranquila e equilibrada, um Estado moderno e próspero, uma democracia humana e justa – e não uma Constituição precária, provisória, derrotada à nascença pelo sentimento de que tudo o que vier de novo e pela força, se tiver uma determinada coloração, será sempre preferível ao que os representantes eleitos do povo tiverem decidido escrever no texto constitucional”11.

A primeira e grande contradição estava justamente aí: concepções constitu- cionais opostas para o mesmo texto. É claro que – sabemo-lo hoje – parte dessa antinomia haveria de ficar resolvida no 25 de Novembro de 1975. Mas a verdade é que o texto foi aprovado no contexto dessas duas visões opostas. Nesse clima, não admira que muitas das disposições que foram engordando a Constituição tenham sido aprovadas, não será exagerado dizê-lo, com reserva mental. Isso ajuda a explicar algo que referimos antes e que não deixa de surpreender, ou seja, o facto de 2/3 dos preceitos terem sido aprovados por unanimidade, sabendo nós do clima de conflitualidade existente. Dois exemplos:

a) A definição da República Portuguesa como um Estado que tem como objectivo “a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício do poder pelas classes trabalhadoras” (artigo 2.º) só pode ter sido aprovada pelo PSD e pelo CDS na expectativa de, logo que possível, a norma viesse a ser revogada ou alterada;

b) Tal como a consagração liberal da garantia da propriedade privada e da sua transmissão por vida ou por morte (artigo 62.º) ao merecer a abstenção 10 Cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 17, de 16/7/1975, p. 383.

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do PCP (em contradição com o que defendia na altura) apenas se pode entender na mesma lógica.

Sabemos também que muitas contradições desapareceram ou foram atenuadas ao longo das sete revisões constitucionais. A prevalência do modelo pluralista e constitucionalista resulta logo do texto originário segundo o esforço interpretativo de Jorge Miranda que se ocupou na sua tese de doutoramento em justificar tal ponto de vista12. Mas a concepção que hoje se pode ler, sobretudo do ponto de

vista da organização económica só foi clarificada em 1989 na segunda revisão. Mas também é verdade que as revisões constitucionais – sobretudo a quarta, de 1997 – introduziram novas contradições.

Discutimos de seguida três casos paradigmáticos de contradição interna, mais ou menos manifesta, e que embora não sendo resultantes em linha directa do gigantismo constitucional, não lhe são indiferentes. A verdade é que tais contradições não existiriam se não fosse a pretensão constituinte de sobre todos os temas ter opinião.

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