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A auto-ruptura constitucional

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 104-106)

NAS ORIGENS DA CONSTITUIÇÃO DE 1976: GIGANTISMO, CONTRADIÇÃO E PAZ SOCIAL

3.1. A auto-ruptura constitucional

Começamos com um artigo constante das disposições finais e transitórias da Constituição da República Portuguesa e que nelas se mantem sem alteração desde 1976. É possível que o referido artigo esteja em vias de caducar, se é que não caducou já. Mas enquanto regra constitucional viveu em permanente con- fronto com outras regras e princípios constitucionais e até com princípios de direito internacional. Mas não consta que tenho suscitado qualquer abalo à paz social. Refiro-me ao artigo 292.º que estipula:

Artigo 292.º

Incriminação e julgamento dos agentes e responsáveis da PIDE/DGS

1. Mantém-se em vigor a Lei n.º 8/75, de 25 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/75, de 23 de Dezembro, e pela Lei n.º 18/75, de 26 de Dezembro.

2. A lei poderá precisar as tipificações criminais constantes do n.º 2 do artigo 2.º, do artigo 3.º, da alínea b) do artigo 4.º e do artigo 5.º do diploma referido no número anterior. 3. A lei poderá regular especialmente a atenuação extraordinária prevista no artigo 7.º do mesmo diploma.

12 Cf. Jorge Miranda, A Constituição de 1976. Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais, Lisboa, Livraria Petrony, 1978.

Ocorre perguntar da razão de ser do referido artigo. Refere-se o mesmo aos diplomas que previam as molduras penais e as regras processuais relativa- mente aos agentes da polícia política do Estado Novo, PIDE/DGS. Justiça de transição, portanto. Um pouco à semelhança dos julgamentos de Nuremberga em que alguns dos tipos penais previstos e aplicados, continham um elemento de retroactividade, também aqui, no pós 25 de Abril, se entendeu consagrar legislação contrária ao princípio da não retroactividade da lei penal, por forma a acusar, julgar e condenar os agentes da PIDE/DGS.

O princípio da não retroactividade da lei penal consta da Declaração Univer- sal dos Direitos do Homem e acabou também consagrado no artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que estipula que ninguém poder ser condenado pela prática de um crime se não em virtude de lei anterior à prática do mesmo.

A solução configura um caso típico de auto-ruptura constitucional13, ou seja,

a contradição expressa entre duas normas constitucionais, no caso pela elevação do grau hierárquico das leis ordinárias citadas no artigo à categoria de normas constitucionais. Só com essa solução se evitaria que as referidas leis de incriminação dos ex-agentes da PIDE/DGS não acabassem por ser julgadas inconstitucionais – ou assim declaradas pela Comissão Constitucional/Conselho da Revolução – impedindo no fundo o julgamento e condenação dos referidos agentes.

Pese embora o contraditório da situação havia fundamentos para a solução se considerar aceitável, o principal deles, justamente, habilitar os novos detentores do poder político a julgarem os membros da organização que melhor simbolizava o odioso do Estado Novo. Mas sempre seria sustentável, na pureza dos princípios, criticar a solução constitucional por se entender que uma Constituição acabada de nascer não deveria tolerar uma auto-ruptura, podendo sempre recorrer-se à então muito popular teoria das “ normas constitucionais inconstitucionais”14.

Esta contradição – pela gravidade em que se traduziu, rompendo com um princípio fundamental de direito penal e de processo penal com consagração no Direito Internacional – poderia introduzir um factor de tensão no clima político- -social de 1975/76, e mesmo mais tarde, durante as décadas seguintes em que as normas de incriminação dos ex-agentes da PIDE se mantiveram operativas. Contudo, tratou-se de uma contradição de baixa densidade conflitual.

13 Assim vide Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 1077.

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Todas as forças políticas concordaram com a solução reconhecendo a neces- sidade de colocar em prática uma mecanismo expedito que permitisse julgar e condenar os responsáveis e operacionais da antiga polícia política. Tratava-se de um caso típico de “justiça dos vencedores”, susceptível de comparação histórica, sobretudo nas transições de ditaduras para democracias (Espanha pós-Franco, Itália pós-fascismo, Alemanha pós-nazismo, África do Sul pós-apartheid ou Europa de Leste após a queda do Muro de Berlim). E, nesse contexto, só haveria dois caminhos: “paz, piedade e perdão” ou justiça política”. Prevaleceu esta última mas apesar de tudo em clima de aparente indiferença.

Deve dizer-se que o nosso processo de justiça transacional não foi marcado por elementos de “descoberta da verdade”, de “reconciliação” ou de respon- sabilização criminal na lógica dos Direitos Humanos. Esse entendimento da justiça transacional só surge mais tarde, após a queda do Muro de Berlim e dele beneficiará, por exemplo, a África do Sul. O nosso processo pressupôs, no corte com o passado ditatorial, mecanismos de justiça punitiva. Mas a verdade é que, após um momento inicial em que essa intenção veio a prevalecer, tal processo veio a ficar “ incompleto e até subvertido por sentenças benévolas, atenuantes e perdões”15. Rapidamente o processo de justiça punitiva deixou de estar no centro

das preocupações e a contradição que assinalamos ficou arrumada no campo das curiosidades constitucionais revolucionárias.

Em resumo, o nosso processo de justiça transacional, possibilitado por uma auto-ruptura constitucional – uma contradição interna, ao fim e ao cabo – aca- bou por não se traduzir em fonte de conflito não ameaçando assim a paz social e política.

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 104-106)