• Nenhum resultado encontrado

O jus in bello

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 78-83)

INTERSECÇÕES ENTRE A GUERRA E O DIREITO

2. A guerra no direito internacional

2.3. O jus in bello

Como antes se deixou referido, o âmbito do jus in bello prende-se com a delimitação das condições de desenvolvimento da guerra. E isso quer dizer que nele se englobam duas dimensões distintas, conquanto profundamente interli- gadas: por um lado, a definição dos meios a que se pode recorrer para a travar (e, consequentemente, as práticas tidas como não justificadas e, portanto, inter- ditas); por outro lado, a estipulação dos direitos e deveres de quem nela directa- mente intervém, mas também daqueles que, não participando nas hostilidades, sejam por elas afectados. Trata-se, em suma, como se sintetiza na Declaração de 26 Resolução n.º 678, de 29 de Novembro de 1990.

27 Sobre o tema pode ver-se, entre nós, José Alberto de Azeredo Lopes, Entre Solidão e Intervencionismo – Direito de

Autodeterminação dos Povos e Reacções de Estados Terceiros, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 955 e ss., e Maria

de Assunção do Vale Pereira, A Intervenção Humanitária no Direito Internacional Contemporâneo, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 744 e ss.

28 Entre muitos outros, pode ver-se L. R. Lee, US Hegemony and International Legitimacy: Norms, Power and Followership

in the Iraq Wars, Abingdon, Rutledge, 2010; Richard B. Muller, “Justification of the Iraq War Examined”, Ethics and International Affairs, vol. 22, n.º 1 (2008), pp. 43-67; e William Taft IV and F. Buchwald Todd, “Pre-emption,

São Petersburgo de 29 de Novembro de 1868, de “conciliar as necessidades da guerra com as leis da Humanidade”29.

Preocupação constante, também, tanto em textos religiosos quanto em contributos doutrinários, a questão só veio a ganhar dimensão jurídica formal em 1864, com a adopção da Convenção de Genebra destinada à melhoria de condições dos feridos em combate. E, como tantas vezes sucede, na sua base encontra-se o voluntarismo de um homem – Jean-Henri Dunant.

Profundamente marcado pelo que testemunhara no rescaldo da Batalha de Solferino de 24 de Junho de 1859, Dunant apontou, no seu livro “Lembrança de Solferino”30, a necessidade de criar, em todos os países, sociedades que pudessem

prestar auxílio aos feridos de guerra, lançando as bases para a criação, em 1863, do Comité Internacional da Cruz Vermelha, cujas propostas levaram a Suíça a propor a realização da conferência diplomática31 que deu origem àquela Con-

venção32 – surgia, assim, o ramo do direito internacional público hoje conhecido

como direito internacional humanitário e cuja materialidade assume também a natureza de jus cogens33.

Na concretização desse direito, é usual fazer alusão a três contributos com- plementares: o “direito da Haia”, o “direito de Genebra” e o “direito de Nova Iorque”.

O “direito da Haia” reflecte o conjunto dos compromissos assumidos nas duas conferências realizadas naquela cidade, a primeira em 1899 e a segunda em 1907.

Convocada por sugestão do Czar Nicolau II, a conferência de 1899 tinha como objecto principal o estabelecimento de compromissos alargados em maté- ria de desarmamento. Contudo, a sua realização acabou por ficar marcada por um sucesso assinalável na matéria das “leis da guerra”, traduzido na aprovação de um acervo significativo de instrumentos, entre os quais merecem destaque:

• A Convenção sobre a Resolução Pacífica de Conflitos Internacionais; • A Convenção sobre as Leis e Usos da Guerra Terrestre;

29 Primeiro documento a vedar a utilização, em combate, de certos métodos causadores de especial sofrimento (espe- cificamente, projectos explosivos ou contendo cargas inflamáveis, de peso inferior a 400 gramas).

30 Texto disponível em https://www.icrc.org/pt/publication/lembranca-de-solferino. 31 Portugal foi um dos doze países participantes nessa Conferência.

32 Sobre o tema, pode ver-se, extensamente, François Bugnion, Le Comité International de la Croix-Rouge et la Protection

des Victimes de la Guerre, Genebra, CICR, 1994, p. 11 e ss.

78 GUERRA, PAZ, LIBERDADE INTERSECÇÕES ENTRE A GUERRA E O DIREITO 79

• A Convenção para a Aplicação à Guerra Marítima dos Princípios da Convenção de Genebra de 22 de Agosto de 186434.

O aprofundamento do trabalho assim iniciado veio a ocorrer pouco tempo depois quando, por proposta do Presidente Theodore Roosevelt, nova conferência se realizou, na mesma cidade, em 1907. Dos 14 documentos então concluídos35,

três aprofundaram e modernizaram as Convenções de 1899:

• (I) A Convenção sobre a Resolução Pacífica dos Conflitos Internacionais36;

• (IV) A Convenção sobre as Leis e Costumes da Guerra Terrestre;

• (X) A Convenção para a Adaptação à Guerra Marítima dos Princípios da Convenção de Genebra.

Por seu lado, os restantes instrumentos alargaram, de forma muito significativa, o âmbito do jus in bello, como facilmente se depreende da sua mera elencagem:

• (II) A Convenção relativa à Limitação do Emprego da Força para Cobrança de Dívidas Derivadas de Contratos37;

• (III) A Convenção Relativa à Abertura das Hostilidades;

• (V) A Convenção Relativa aos Direitos e Deveres das Potências e das Pessoas Neutras, no Caso de Guerra Terrestre;

• (VI) A Convenção Relativa ao Regime dos Navios Mercantes Inimigos no Início das Hostilidades;

• (VII) A Convenção Relativa à Transformação dos Navios Mercantes em Navios de Guerra;

• (VIII) A Convenção Relativa à Colocação de Minas Submarinas Auto- máticas de Contacto;

34 Portugal, que participou também na Conferência, ratificou as Convenções em 4 de Setembro de 1900. Sobre o assunto pode ver-se, entre nós, Conde de Penha Garcia, As Convenções de Haya, Lisboa, 1901.

35 Todos os instrumentos entraram em vigor, excepção feita à Convenção XII, apenas ratificada pela Nicarágua. Portugal participou na Conferência e ratificou todos os instrumentos, salvo a Convenção (VIII) – textos publicados no Diário

do Governo, n.º 49, de 2 de Março de 1911.

36 Que regula ainda hoje, nos seus aspectos basilares, a actividade do Tribunal Permanente de Arbitragem.

37 Em rigor, esta Convenção releva, não do domínio do jus in bello mas, antes, do plano do jus ad bellum, uma vez que, nos termos do seu artigo I, as partes contratantes “acordam em não recorrer à força armada para a cobrança de dívidas contratuais reclamadas pelo governo de um Estado ao governo de outro Estado como sendo devidas a nacionais seus”, regra que só não será “aplicável quando o Estado demandado recusar ou não responder a uma oferta de arbitragem ou, após a ela aceder, impedir a conclusão de um compromisso ou se, após a arbitragem, não cumprir esse compromisso”.

• (IX) A Convenção Relativa ao Bombardeamento por Forças Navais em Tempo de Guerra;

• (XI) A Convenção Relativa a Certas Restrições ao Exercício do Direito de Captura na Guerra Marítima;

• (XII) A Convenção Relativa à Instituição de um Tribunal Internacional de Presas;

• (XIII) A Convenção Relativa aos Direitos e Deveres das Potências Neutrais no Caso de Guerra Marítima;

• (XIV) A Declaração Relativa à Interdição de Lançar, por meio de Balões, Projécteis e Explosivos.

Os termos em que a II Guerra Mundial foi travada obrigaram a aprofundar e ampliar o âmbito do direito internacional humanitário. E foi esse o desiderato que esteve na base da Conferência diplomática realizada em Genebra, que con- duziu, em 12 de Agosto de 1949, à conclusão de quatro Convenções38:

• (I) A Convenção para Melhorar a Situação dos Feridos e Doentes das Forças Armadas em Campanha (que representa a evolução de anteriores Convenções sobre o mesmo tema, nascidas também em Genebra e datadas de 1864, de 1906 e de 1929);

• (II) A Convenção para Melhorar a Situação dos Feridos, Doentes e Náufra- gos da Guerra Marítima (que substitui a X Convenção da Haia de 1907); • (III) A Convenção Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra

(que toma o lugar de convenção sobre idêntica matéria que havia sido celebrada, igualmente em Genebra, em 1929);

• (IV) A Convenção Relativa à Protecção de Pessoas Civis em Tempo de Guerra.

Da designação de todas elas, duas relevantes inferências podem, de ime- diato, ser retiradas: desde logo, que o único domínio em que verdadeiramente se operou um tratamento inovatório foi o da IV Convenção, uma vez que o tema não constava de qualquer tratado anteriormente elaborado e o sucedido no decurso do conflito 1939-1945 demonstrou, à saciedade, a indispensabilidade 38 A versão oficial portuguesa dessas Convenções encontra-se em anexo ao Decreto-Lei n.º 42291, de 26 de Maio de

80 GUERRA, PAZ, LIBERDADE INTERSECÇÕES ENTRE A GUERRA E O DIREITO 81

dessa regulação; depois, o facto de as Convenções não incidirem sobre a ques- tão dos meios da guerra, matéria cuja regulamentação continua a pautar-se, em larguíssima medida, pelas Convenções de 1907.

O “direito de Genebra” veio a alargar-se, em 8 de Junho de 1977, com a celebração de mais dois instrumentos39:

• O Protocolo Adicional I, Relativo à Protecção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais;

• O Protocolo Adicional II Relativo, à Protecção das Vítimas de Conflitos Armados Não Internacionais40.

O contributo destes protocolos faz-se notar em duas dimensões essenciais: no caso do primeiro, no aprofundamento dos direitos das vítimas e no alarga- mento da aplicabilidade aos conflitos em que esteja em causa a luta contra a dominação colonial, a ocupação estrangeira e o combate aos regimes racistas, no quadro do exercício do direito à autodeterminação; no caso do segundo, a regulação de conflitos que, não correspondendo ao conceito legal de guerra, apresentam características materiais similares e se tornaram, de resto, muito mais frequentes do que esta.

Por fim, o “direito de Nova Iorque” abrange um conjunto de convenções internacionais de natureza mais dispersa, cuja adopção decorreu do labor das Nações Unidas41. É que, como seria expectável, a responsabilidade primeira come-

tida à organização no plano da manutenção da paz e da segurança internacionais, tem sido motivadora de uma intervenção alargada sobre os temas relacionados com as “leis da guerra”, fundamentalmente por parte da Assembleia Geral. E, na impossibilidade de aqui os referir de forma exaustiva, damos nota, apenas, de alguns dos mais significativos contributos:

• Em 1948, a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio42;

39 Em 8 de Dezembro de 2005 foi celebrado um terceiro Protocolo Adicional, Relativo à Adopção de um Emblema Distintivo Adicional, denominado emblema do terceiro protocolo ou Cristal Vermelho (o texto português pode encontrar-se no Diário da República, Série I, n.º 33, de 17 de Fevereiro de 2014).

40 O texto oficial em língua portuguesa de ambos os Protocolos foi publicado no Diário da República, Série I-A, n.º 77 de 1 de Abril de 1992.

41 Mas também de outros documentos de natureza não pactícia como, v. g., a Resolução n.º 3314 (XXIX), de 3 de Dezembro de 1972, que define o conceito de agressão.

• Em 1968, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade;

• Em 1977, a Convenção Sobre a Proibição do Uso de Técnicas de Manipu- lação do Clima Através de Tecnologias para Fins Bélicos e com Objectivos Militares ou com Qualquer Outro Uso Hostil;

• Em 1980, a Convenção Sobre a Proibição ou Limitação do Uso de Certas Armas Convencionais que Podem Ser Consideradas como Produzindo Efeitos Traumáticos Excessivos ou Ferindo Indiscriminadamente (e seus cinco Protocolos Adicionais)43;

• Em 1992, a Convenção Sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produ- ção, Armazenagem e Utilização de Armas Químicas e sua Destruição44;

• Em 2000, o Protocolo Facultativo à Convenção Sobre os Direitos da Criança, Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados; • Em 2017, o Tratado Sobre Proibição de Armas Nucleares.

No documento Guerra, Paz, Liberdade (páginas 78-83)