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A H OMOSSEXUALIDADE NAS D ÉCADAS DE 70/80 – construindo um movimento

NO BRASIL DAS DÉCADAS DE 70/80 À ATUALIDADE

4.1 A H OMOSSEXUALIDADE NAS D ÉCADAS DE 70/80 – construindo um movimento

Considerando especialmente materiais provenientes de grupos e demais organizações homossexuais, além de matérias na imprensa, destacam-se duas iniciativas pioneiras na organização do movimento homossexual brasileiro, entre as décadas de 1970 e 1980: a fundação do jornal Lampião e do grupo Somos.

A fundação do Jornal O Lampião e a posterior fundação do Grupo Somos (inicialmente Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais), ambas em São Paulo, são destacadas como marcos na construção do movimento homossexual organizado no Brasil.

Lançava-se, segundo Fry (1990), um movimento marcado pelos ideais de “uma sociedade mais justa e igualitária” (p. 11) para todos, incluindo os homossexuais. A luta do movimento homossexual iniciava-se, assim, pela afirmação da identidade e dos direitos dos homossexuais; luta que aproximava os movimentos que buscavam a emancipação das chamadas “minorias”22.

Destaca-se, nesse primeiro momento, a política de reconhecimento dessas minorias e de suas especificidades, onde a afirmação da identidade particular do grupo assume a importância de um instrumento de ação política. Tornar as questões da homossexualidade visíveis politicamente seria um dos seus primeiros passos.

Particularmente no grupo Somos – grupo homossexual pioneiro no Brasil –, destacava-se a defesa da igualdade básica entre seus membros, buscando-se uma organização não hierárquica, com relações não autoritárias e igualitárias. Essa postura estendia-se às relações pessoais, destacando-se a defesa do modelo de relação

homossexual igualitária entre os parceiros. A militância, o trabalho de defesa de

posições, nos movimentos sociais surgidos nesse período trazia a marca de uma nova forma de fazer e de entender política: a politização do cotidiano e das relações pessoais,

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como se discutirá adiante.

Imprensa Homossexual - Jornal Lampião/1978

A chamada “imprensa gay”, comprometida com temas e questões da homossexualidade, pode ser tomada entre os setores representantes de uma “imprensa alternativa” − dissonante ou mais específica em relação às temáticas e ao funcionamento geral da grande imprensa.

Conforme seu posicionamento, a imprensa alternativa pode se tornar um veículo de militância, assim como o jornal O Lampião para a “causa” homossexual: “Em um país com índices alarmantes de violência e discriminação contra homossexuais, é natural que a imprensa gay sirva como suporte para a militância, assim como o Pasquim foi um veículo de resistência durante a ditadura” (Capó, Saindo do armário, 2000).

A imprensa alternativa, entre os anos 70 e 80, assumia posições políticas radicais e de oposição ao regime militar; os chamados jornais alternativos cobriam aspectos aos quais a “grande imprensa” se fechava. Prevaleciam, nesse cenário, jornais de cunho político, de postura pedagógica e dogmática, e jornais voltados à crítica de costumes e à ruptura cultural, introduzindo temáticas da “contracultura”. (Lima, 2001)

O surgimento do jornal Lampião dá-se nesse contexto, movido, segundo Lima (2001), por “ideais democráticos”: os direitos dos homossexuais inseridos na luta pelos direitos das outras minorias reconhecidas – negros, mulheres e índios.

Publicações do que é reportado como imprensa “gay” ou “homossexual”, até esse período, eram de circulação restrita, apresentando-se, o mais das vezes como um pastiche do colunismo social (Lima, 2001). As estratégias de circulação eram também bastante restritas: de exemplares únicos, circulando entre amigos, a edições com 50, 100 e 150 exemplares, fotocopiados e distribuídos informalmente.

Lima (2001) aponta o ano de 1961 como o do surgimento do provável primeiro jornal homossexual do Brasil, o Snob, que circulava entre um grupo de amigos. Outra iniciativa de destaque é a do jornal Fatos e Fofocas, de 1963, constituído por um único exemplar que passava de mão em mão até retornar ao ponto de origem. Até mesmo uma Associação Brasileira de Imprensa Gay teria funcionado no Rio de Janeiro

desde 1962, sendo fechada com o golpe militar de 64.

Em 1976, o jornal Última Hora exibe a “Coluna do Meio”, dirigida a homossexuais, e a extingue no ano seguinte, sob a pressão de grupos econômicos e de leitores, além de um processo por “atentado ao pudor” contra o jornalista responsável (Lima, 2001).

O jornal O Beijo trouxe para o espaço da imprensa alternativa a sexualidade como tema principal, em 1977. Lança também o “primeiro grande ataque” ao tratamento “preconceituoso” dado à questão da homossexualidade pela imprensa:

“A imprensa ‘progressista’ não costuma incluir a sexualidade na sua lista dos dez mais (...). No seu número 436, o Pasquim resolveu falar do homossexualismo. Posição liberal: falar de ‘temas proibidos’. O Pasquim dá um destaque especial à imprensa gay. Falando dela, o jornal reafirma que não é ela (...) simulando liberar, quando a imprensa progressista tratava da homossexualidade era apenas para lhe indicar rapidamente o seu lugar no meio social" (O Beijo, 1977, conforme citado por Lima, 2001)

Marcam-se posições e antagonismos: imprensa “progressista”, “liberal”, “imprensa gay”; sexualidade e homossexualidade como temas marginais, o último, “proibido”, marcado por sua especificidade social, de interesse particularizado.

O privilégio concedido à “temática do prazer” pelo jornal não teria sido bem recebido, mesmo nesse espaço “alternativo”. O jornal lançou apenas seis edições. (Lima, 2001)

No fim da década de 70, num cenário de transição para a redemocratização e com o fim da censura prévia, o jornal Lampião viria a ser o primeiro jornal alternativo dirigido a homossexuais.

Segundo Zanatta (1998), o jornal Lampião foi fundado em São Paulo, lançando sua edição número zero em abril de 1978, e transferido para o Rio de Janeiro como Lampião da Esquina, lançando sua edição número um em 25 de maio 1978.

Em seu primeiro editorial o jornal se colocava como um espaço para as questões que, segundo ele, a própria imprensa “alternativa” considerava “não prioritários”: seria a voz que essa minoria precisava para “esclarecer sobre a experiência homossexual em todos os campos da sociedade e da criatividade humana” (Lampião, n. 0, 1978, conforme citado por Lima, 2001).

homossexual, num momento de mudanças como o que o país estava passando, com as eleições, a criação de novos partidos políticos e a anistia?

Falando em nome, especificamente mas não apenas, da homossexualidade, o jornal se propõe a dar voz a todos os grupos “injustamente discriminados”, conclamando-os à saída do isolamento, ao abandono dos guetos e ao combate à marginalização social – contra um “sistema (disfarçado) de párias” (Lampião, n. 0, conforme citado por Zanatta, 1998).

Define-se como um jornal homossexual e define sua posição como de esclarecimento e militância pelos direitos dos homossexuais:

“(...) o que Lampião reivindica em nome dessa minoria é não apenas se assumir e ser aceito - o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhes negou: o fato de que os homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização, enquanto tal.” (Lampião, n. 0, conforme

citado por Zanatta, 1998).

A luta pelos direitos dos homossexuais é situada entre as demais lutas das chamadas “minorias”, contra a discriminação e a segregação em guetos. Quanto à sexualidade, esta não seria apenas ‘reprimida’, mas positiva e criadora:

“Falando da discriminação, do medo, dos interditos ou do silêncio, vamos também soltar a fala da sexualidade no que ela tem de positivo e criador, tentar apontá-la para questões que desembocam todas nesta realidade muito concreta: a vida de (possivelmente) milhões de pessoas.” (Lampião,

n. 0, conforme citado por Zanatta, 1998).

Os jornalistas do Lampião vieram a se constituir também como um grupo de militância homossexual. Sua seção de cartas de leitores funcionava como um espaço de visibilidade para a comunidade homossexual, sendo bastante destacada no jornal. (Lima, 2001)

Em sua trajetória, de 1978 a 1981, o jornal cumpriu uma função importante na organização nacional do movimento homossexual, constituindo-se em seu principal meio de comunicação e informação. Em seus últimos números, o jornal apresentou uma mudança de enfoque, passando a publicar fotos eróticas, que antes evitava. Com isso,

o jornal teria perdido credibilidade e espaço. (Lima, 2001)

partir desse período, nas publicações dirigidas ao público homossexual, passa a predominar, segundo Lima (2001), a exploração do nu masculino e da pornografia. Algumas dessas publicações apresentam também artigos discutindo questões relacionadas à homossexualidade.

Grupos Homossexuais – Grupo Somos/1978

Inicialmente sob a denominação “Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais” e posteriormente “Somos – Grupo de Afirmação Homossexual”, o grupo considerado pioneiro do moderno movimento homossexual brasileiro inicia suas atividades em 1978, em São Paulo.

As primeiras discussões públicas sobre aspectos políticos da

homossexualidade no Brasil, segundo MacRae (1990), ocorreram dentro da Semana do Movimento da Convergência Socialista, em abril de 1978 – realizado pela revista “alternativa” Versus e pelo Movimento da Convergência Socialista. A preparação das bases para um futuro Partido Socialista seria uma das finalidades desse evento.

Uma moção de protesto contra um “boicote” à participação do jornal Lampião, lida no debate sobre imprensa, propõe a pertinência das questões das “minorias” discriminadas, como os homossexuais, nas lutas políticas da esquerda:

“A questão do homossexualismo masculino e feminino aparece nesse momento como questão fundamental a ser reconhecida como uma das lutas democráticas, que tem características próprias mas não se afasta da luta mais ampla pela reformulação da moral sexual brasileira, seja hetero ou homossexual, por todos aqueles que acreditam na possibilidade de uma sociedade mais justa e democrática. Os homossexuais, vítimas de um sistema discriminatório, reacionário e intolerante esperam, da Convergência Socialista a acolhida de sua luta.” (MacRae, 1990, p. 98)

O pronunciamento foi seguido de uma discussão sobre homossexualismo e

política. Este evento é assinalado como um dos importantes marcos para a constituição

do grupo Somos. (MacRae, 1990)

O grupo, que até então caracterizava-se como um grupo de discussão homossexual, faz seu primeiro aparecimento público através de uma “carta protesto” contra o tratamento “preconceituoso” da temática homossexual pela imprensa –

especificamente contra o jornal Notícias Populares. A carta foi enviada ao sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, com cópias para a Associação Brasileira de Imprensa, Comissão de Justiça e Paz, Ordem dos Advogados do Brasil e Sociedade Interamericana de Imprensa.

A carta, assinada coletivamente – “receando exporem-se ao grande público como homossexuais” (MacRae, 1990, p. 102) –, identificava o grupo como “Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais”.

Em seu “documento memória” o grupo Somos fala da “necessidade da maior conscientização individual e social da questão sexual”, com o aprofundamento da discussão sobre o tema homossexual. O grupo propõe ações tanto internas ao grupo quanto externas, destacando o trabalho de esclarecimento e promoção de “debates sobre a nossa sexualidade” além de “trabalho em conjunto com outros setores oprimidos considerados ‘minorias’, ou seja: mulheres, negros e índios” (Zanatta, 1998).

Seus integrantes organizavam-se como grupo em torno de sua identidade

homossexual e se colocavam no mesmo campo das lutas “minoritárias” dos oprimidos,

aproximando-se dos demais movimentos sociais da época.

Araújo (1999) destaca, no contexto político anos 70, o surgimento de uma nova concepção e uma nova forma de fazer política. A “ruptura” com o modelo e o conceito de “política” e de “esquerda”, herança de acontecimentos políticos da década de 60 e, em especial, de 1968, permitiu o surgimento de uma forma de militância diferenciada:

“No mundo todo surgiram (...) movimentos políticos de um novo tipo: movimentos alternativos, específicos, de “minorias” (numéricas e políticas) – grupos e movimentos que enfatizavam a diferença, a pontualidade e a especificidade. Como os movimentos de mulheres, de negros, de homossexuais, indígenas, etc.” (Araújo, 1999).

Em fevereiro de 1979, o grupo foi convidado a participar de uma semana de debates na USP sobre “Os movimentos sociais de emancipação” (MacRae, 1990, p. 108).

Às vésperas do debate na USP, o grupo batizou-se com o nome “Somos”, referência a uma publicação da extinta “Frente de Libertação Homossexual da Argentina” – considerado o primeiro grupo organizado de conscientização e militância homossexual na América Latina (Zanatta, 1998). Segundo MacRae (1990), o nome do

grupo, cujo logotipo, pouco usado, mostrava o último s invertido, refletia “o desejo de ‘assumir a homossexualidade’ que depois ficou reforçado com o complemento do nome – ‘de afirmação homossexual’” (p. 108): Somos – Grupo de Afirmação Homossexual.

O debate na USP foi a primeira vez que o grupo se pronunciou e expôs seus objetivos ao vivo, tornando-se a partir daí mais amplamente conhecido. Esse evento é apontado como um marco na história do grupo já organizado. (Zanatta, 1998; MacRae, 1990)

Durante as discussões, evidenciaram-se conflitos entre as reivindicações específicas das chamadas “minorias discriminadas” e as posições ortodoxas, pela unificação das lutas proletárias, da “esquerda tradicional” – representada pelas organizações socialistas.

O embate entre os movimentos sociais das minorias e as organizações políticas de esquerda teria sido atenuado no Brasil pela especificidade23 de uma luta comum contra a ditadura militar. Organizações dissidentes de esquerda e movimentos das chamadas minorias, como mulheres, negros e homossexuais, configuraram, segundo Araújo (1999), um “campo de ‘esquerda alternativa’ no Brasil”.

A “conjuntura adversa” da ditadura militar atenuava o conflito entre as esquerdas, deslocando o foco para a tentativa de incorporar as novas questões que

surgiam à cultura marxista. Ao contrário do antagonismo marcante entre os

movimentos de “minorias” e a “esquerda tradicional”, na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil essa relação teria se traduzido em uma tensão constante de aproximação- afastamento, diálogo-conflito. Conforme Araújo (1999), esta foi uma das fortes marcas da política dos anos 70 e 80 no Brasil.

Para Zanatta (1998), a tática da esquerda organizada de aproximação dos movimentos sociais servia como forma de obter apoio popular e ampliar suas bases, travando-se um “debate ideológico” entre as “lutas específicas” e “lutas maiores”.

O surgimento no Brasil desse primeiro grupo de militância homossexual (MacRae, 1990), o Somos, dá-se num período de proliferação de movimentos sociais que lutavam pelo reconhecimento de suas especificidades na sociedade, reivindicando seus direitos de cidadania; entre eles destaca-se o movimento feminista como uma referência mundial no processo de abertura para concepções alternativas de política

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Dentro de um contexto mundial de dissidência e heterodoxia política de “esquerda”, com a crítica do marxismo oficial e a incorporação de novas idéias e práticas políticas a partir de 68.

(ARAÚJO, 1999).

Conforme Araújo (1999), uma característica comum à ação dos movimentos de “minoria”, nesse período, é a constituição da identidade particular como princípio e forma de ação política. Uma concepção diferenciada que valoriza os aspectos subjetivos da experiência política, que valoriza o cotidiano e a politização das relações pessoais. A partir das especificidades de uma condição de vida de "opressão" forjam uma noção de identidade particular para si, em torno da qual se agregam:

“Os movimentos traziam à tona discursos específicos: falava-se “enquanto mulher”, ou “enquanto negro” ou “enquanto homossexual”. Colocando em questão uma noção de identidade pública e política diferente da do “cidadão” e do “proletário revolucionário”. Estes movimentos traziam uma noção de sujeito político distinta da idéia do “sujeito universal” presente, de uma forma geral, tanto no liberalismo quanto no marxismo; fazendo irromper, na cena política dos anos 70, identidades fragmentadas que buscavam formas de expressão.” (Araújo, 1999)

Essa fragmentação de identidades comporia a formulação de uma maneira diferenciada de fazer política, por parte especificamente de grupos que se colocavam como submetidos à discriminação e opressão social. Esse movimento aparecia como “contraponto” ou “alternativa” à organização política “tradicional” – partidária, sindical –, reivindicando a defesa/representação de suas questões específicas: falavam “em nome próprio”, já que consideravam que “as formas de representação mais geral diluíam as especificidades de grupos minoritários” (Araújo, 1999).

“não deixava de ser significativa a existência de outros movimentos simultaneamente ao Somos. Estes eram muitas vezes dirigidos a necessidades mais cotidianas, mais ligadas ao que os anglo-saxões chamam de ‘life-style’, que à luta de classes propriamente dita. Questões relacionadas à vida cotidiana e aos costumes ganhavam grande destaque alcançando status de “política”, e o país parecia tomado por uma onda de liberalismo nesse campo.” (MacRae, 1990, p. 180-1)

Ao definirem-se e falarem em nome próprio, esses grupos, como pode-se ver no debate de 1979 na USP, apareciam a princípio como aliados em sua posição na luta política, denunciando as definições opressivas e “dominantes” que os colocavam na posição de “minorias”. A determinação de seus contingentes na população, bem como a falta de representatividade de seus interesses, foram assuntos debatidos. E, apesar das

divergências que já se mostravam, “Todos concordavam em denunciar as definições invariavelmente ditadas pelos homens brancos e heterossexuais que, como donos do poder, se colocavam como maioria, e se erigiam com os padrões da normalidade” (MacRae, 1990, p. 109).

Como o próprio tema da semana de debates sugeria, tratava-se de uma luta pela “emancipação” de segmentos populacionais discriminados social e politicamente. Pode-se entender que o próprio termo “minoria”, naquele contexto de discussão, remetia à pouca ou nenhuma visibilidade, seja dos próprios grupos, seja de seus interesses no conjunto da sociedade: a não representatividade de questões específicas das mulheres e a dificuldade de determinar os “números” de negros e homossexuais no conjunto da população, seja por “falta de interesse governamental”, num caso, seja pela “invisibilidade”, no outro (MacRae, 1990, p. 109).

Considerando iniciativas generalizadas ocorridas ao longo do ano de 1979, dentro e fora dos movimentos sociais, MacRae (1990) avalia que “o país parecia tomado por uma onda de liberalismo” em relação aos costumes e à vida cotidiana, indicando que preocupações da ordem da sexualidade e da “liberação sexual” não existiam apenas entre os homossexuais. Abriam-se espaços para as reivindicações do Somos nos meios de comunicação, que teriam encontrado, ainda nos primeiros tempos do grupo, “um público muito receptivo” (p. 181).

Na passagem dos anos 70 aos 80, as correspondências enviadas ao jornal Lampião e ao grupo Somos indicam um crescimento acelerado do movimento homossexual: formação de grupos em diversos estados e correspondências individuais de todo o país e do exterior. (Zanatta, 1998)

Entre abril de 1978 e fevereiro de 1981, surgiram 22 grupos de militância homossexual, conforme documentação do jornal Lampião (Zanatta, 1998), sendo eles: Jornal Lampião/RJ, Auê/RJ, Somos/RJ, Beijo Livre/DF, Eros/SP, Libertos/Guarulhos/SP, Somos/SP, Atuação Lésbico-Feminista/SP, Grupo de Atuação e Afirmação Gay/Caxias/RJ, Terceiro Ato/MG, Grupo Gay da Bahia/BA, Grupo de Santo André/Santo André/SP, Facção Gay da Convergência Socialista/SP, Grupo Outra Coisa - Ação Homossexualista/SP; Gols-ABC - Grupo Opção à Liberdade Sexual/Santo André/SP, Gatho - Grupo de Atuação Homossexual/PE, Nós Também/PB, Bando de Cá/Niterói/RJ, Coligay/RS, Grupo Terceiro Mundo/RS, Coletivo Alegria Alegria/SP, Terra Maria: Opção Lésbica/SP.

Política de Participação nos Grupos

Segundo MacRae (1990), entre os grupos homossexuais brasileiros nesse período, a participação era restrita a indivíduos que se identificassem como homossexuais, sendo aceitos os bissexuais, porém não sem reservas. Não era permitida a participação de indivíduos auto-identificados como heterossexuais. As restrições seguiam conforme a crescente particularização dos grupos, como por exemplo, grupos que só admitiam homossexuais femininos (como o GALF – Grupo de Afirmação Lésbico-Feminista) e grupos restritos a homossexuais negros (como o Adé Dudu).

A política identitária forneceu a base que permitiu a organização dos grupos de afirmação homossexual nesse período. A identidade sexual (homo ou hetero), tomada como “fundamental e definidora do indivíduo” (MacRae, 1990, p. 59), permitia e facilitava, à época, a mobilização política.

Apesar de predominar essa política de identidade, MacRae (1990) afirma, a propósito do grupo Somos, que a heterogeneidade interna ao grupo não permite atribuir a eles uma posição hegemônica estável quanto a esse assunto.

A posição predominante e restritiva de “afirmação homossexual” entrava em conflito com aqueles que defendiam “uma maior abertura para a bissexualidade ou para considerações de classe social” (MacRae, 1990, p. 59).

Um dos “velhos temas” de discussão no Somos dizia respeito à “bissexualidade”: desconfianças e acusações de que, sob “uma suposta bissexualidade”, haveria uma homossexualidade "enrustida" (MacRae, 1990, p. 173).

Num desentendimento com um grupo teatral, por exemplo, integrantes do Somos teriam comentado que, ao defender uma “liberdade sexual generalizada”, aquele grupo “parecia mais interessado no bissexualismo que na homossexualidade” (MacRae, 1990, p. 173). O estabelecimento e a demarcação de uma posição sólida para a homossexualidade aparece como um aspecto central na política de formação do movimento homossexual.

O grupo lidava com freqüentes conflitos quanto a posições teóricas e de atuação, acirrados a partir de 1980; discordâncias como essas, entre outras, teriam contribuído para a fragmentação do grupo.

O Movimento Homossexual Organizado nos Anos 80 – mobilização e crise

1o Encontro Nacional do Povo Gay – dezembro de 1979, Rio de Janeiro.