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C ONJUNTO C ARTILHAS O N L INE

DISCURSOS HOMOSSEXUAIS NA ATUALIDADE

6.1. C ONJUNTO C ARTILHAS O N L INE

As cartilhas disponibilizadas pelo site Mix Brasil compõem um encadeamento significativo (oferecido como uma ‘sobre’escrita) da experiência individual, estendendo sobre a mesma o campo de saberes de uma experiência homossexual identitária padrão/modelo – saberes normatizadores.

Em seu conjunto, elas atendem e integram diferentes situações, espaços, momentos e especialmente relações significativas/instituídas de vida, se propondo a esclarecer e organizar ponto a ponto as experiências daqueles aos quais se dirigem. Dispostas em coordenadas espaciais e temporais, elegem e focam momentos e situações-chave e, nessas, jogam com as forças incidentes em cada relação em questão.

Para a relação consigo, trazem a questão do compromisso do indivíduo com a honestidade, com a verdade de si para consigo.

Construção de uma relação consigo conforma uma normatividade, segundo as regras que conformam uma homossexualidade reconhecível, agenciados os saberes e poderes (práticas) pertinentes a este domínio. Nessa relação consigo, ao tomar a si como objeto de conhecimento, no movimento de voltar-se sobre si, dobram-se as forças “incidentes”, (re)fletindo-as, fazendo-as atuarem sobre si mesmas, num compromisso entre saber e poder que se efetiva como processo e efeito de subjetivação – efeito e força promotora de uma instituição, a de si, identificável, de si mesmo. Instituição conhecida, reconhecida pelo indivíduo concreto, legitimada por este – seu único “observador” –; o que pode ser conhecido no que se apresenta, a si, e pode ser

reconhecido, como o mesmo (significado em uma cadeia ligando o passado trazido

sobre o presente, constituindo interioridade – no dobramento), que faz presumir uma centralidade organizadora, articuladora, que garante coerência (ao menos em parte, “normalmente”) e conformidade interna (consigo mesmo) em uma extensão (tempo-

espaço) que permite não apenas reconhecer uma identidade, mas adiantar-se, prevendo, reconhecendo caminhos prováveis, permitindo projetar um futuro, como continuidade.

As possibilidades de uma história pessoal são organizadas nesse discurso, colando-se o desenrolar da experiência a “planilhas” de desenvolvimento de uma identidade homossexual, num percurso de desenvolvimento normalizado destacadamente “normal para quem o vive”. Saber sobre si, saber “próprio” – só quem

pode saber de você é você; “normalidade” – sentido como normal por aqueles que o vivem, para os “homossexuais”.

Na relação com o outro, trazendo a família. Fazendo-a falar de si, de seus filhos, da necessidade de relações verdadeiras, autênticas, mediadas pelo conhecimento; depondo sobre as qualidades de seus filhos homossexuais – sua humanidade, suas virtudes, dificuldades, sua dignidade (conforme o discurso da valorização homossexual, numa estratégia contra o preconceito desvalorizador) ao enfrentar as dificuldades de expor e de viver a própria experiência: sendo verdadeiros consigo e com o outro. O conhecimento do outro (família) e o aprendizado do que é a homossexualidade são condições necessárias para a relação e possíveis de serem alcançadas através da mobilização de determinados saberes sobre a homossexualidade – a cartilha se coloca como um possível início desses esclarecimentos, indicando outros caminhos e recursos.

Conhecer o filho homossexual pela mesma “sobreposição” dos saberes à experiência do indivíduo – tornado e configurado nessa relação como objeto (objeto do discurso, objeto de conhecimento. Saber sobre a condição, experiência do outro/filho “homossexual” – é preciso “educar a si mesmo(a) nesse assunto”.

Mobilizam-se e põe-se para falar, além da família – que deve ser esclarecida –, discursos esclarecedores como os da ciência e da religião. Nada há nesse campo coberto da experiência que não possa e não deva ser compreendido ao serem mobilizados os mesmos campos de saber que organizam a experiência (supostamente legítima a priori) daqueles para os quais esse discurso se dirige – posicionamento estratégico desse discurso homossexual para a família, inscrevendo (e aproximando) as instituições homossexualidade e família num conjunto de práticas e valores. “Nada” porque o discurso, com os saberes que mobiliza, delimita o próprio campo de experiência.

Na relação com o outro como relação de conhecimento – revelação de uma verdade. Relação mediada pelo conhecimento e reconhecimento de si perante o outro

como um determinado sujeito sexual, como um indivíduo pertencente a uma categoria, “portador” de uma especificidade que (no jogo do subjacente, oculto, pressuposto), se não “revelada”, assumida publicamente, permanece oculta, velada – possivelmente “recoberta” pelo pressuposto comum de que, nada dito, todos “sejam”/passem por (“pareçam”), se enquadrem na aparente não categorizável “heterossexualidade”.

Aqui, o estrategicamente importante torna-se mobilizar regras de conduta, para se estabelecer condições consideradas adequadas para a “revelação” da própria homossexualidade, para o “sair do armário”; as coordenadas de posicionamento tanto para a fala e quanto para a escuta. Dispor da situação, colocar-se de forma a poder conduzir-se diante do outro e de suas possíveis reações, dando-lhe oportunidade, espaço e informações suficientes para entender a sua condição e posicionamento pessoal – mobilização de meios e recursos esclarecedores quanto à homossexualidade, como panfletos, telefone, etc. A(s) posição(ões) ocupada(s) por esse outro no discurso da cartilha indica(m) um lugar para a homossexualidade no cenário social – fixado nesse discurso. Lugar desqualificado, marginal, sujeito à discriminação, ao “preconceito” e à violência.

No dia-a-dia – enfim, de uma homossexualidade já assumida –, as relações consigo, com o outro (parceiro/amigos/“iguais”), com o corpo e com o prazer, atravessando as situações sociais e suas instituições, mediadas por uma consciência de si e de seus direitos. Retratos sucessivos sintetizando os grandes temas45 da afirmação da homossexualidade, atravessados pela perspectiva/promessa de encontro com a satisfação consigo e com o outro, para quem sabe e sabe lidar com o que é. Estrategicamente, a cartilha fecha-se num retrato final de engajamento homossexual – mobilização do dia 28 de junho, Dia do Orgulho Gay.

Fala o personagem, ladeado pelo discurso esclarecedor – saberes mobilizados e consciência homossexual, com as normas que permitiriam configurar uma vivência homossexual satisfatória. O desenvolvimento pessoal, social em sintonia com uma/sua identidade. Fala a vivência saudável da própria homossexualidade. Fala a consciência homossexual – saber e saber lidar com o que se é – através das cenas do dia-a-dia. A satisfação, o prazer apresentam-se como catalizadores primeiros, explícitos de cada cena/síntese, numa experiência organizada pelo atravessamento de uma

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consciência em desenvolvimento – como uma fala de fora, genérica, significando/acompanhando uma vivência particular (aqui, exemplar). Aceitação por si e pelos outros, pontuada pelo respeito aos direitos individuais pelas instituições e organizações sociais. O “sair do armário” não apresenta-se como questão direta aqui – retratando-se uma vida fora do “armário” –, sendo esta colocada para o “de fora”, o leitor, como interrogação, oferecendo o contraste com a situação/figura apresentada, quase como um desafio ao não fazê-lo, antecipando-se, na pergunta, uma “conseqüência”: “Você que trabalha e vive a urgência da adolescência, vai dar-se ao

luxo de desperdiçar 6 horas, 8 horas dentro do armário?” Sem recorrer diretamente à

injunção ao “revelar-se” – querendo-se discurso “sutil”, talvez –, o recurso discursivo, contudo, é enfático e explícito nesse ponto.

As cartilhas disponíveis no site Mix Brasil apresentam-se como discursos de

afirmação homossexual, cobrindo e mobilizando as forças de diferentes momentos e

situações que cumprem a função de colocar a experiência daqueles aos quais se dirige em relação com a grade de um saber reconhecido do desenvolvimento de uma identidade homossexual.

As produções brasileiras – cartilhas “24 dicas para a hora de sair do armário”, produzida pelo site Mix Brasil, e “Guia para satisfação entre adolescentes gays”, produção conjunta com o grupo Nuances-RS – situam-se num cenário de diversidade sexual, trazendo referências a uma variedade de figuras da (homos)sexualidade, às diferentes orientações sexuais, sem, com isso, ter alterada sua conformidade com um discurso de afirmação e de assunção de uma identidade homossexual. A questão da identificação, de uma determinada designação da condição sexual/subjetiva, é deixada ao indivíduo, numa forma mais recente de funcionamento estratégico da prática discursiva dentro da trajetória de construção de uma identidade homossexual no Brasil, conforme analisado anteriormente.

Todas as cartilhas analisadas oferecem-se, individual e conjuntamente, como instrumentos de organização e ordenação (entre esclarecimentos e normatizações) da experiência individual (instrumentalizadoras – em relação ao indivíduo), cobrindo as formas de relação consigo e com o outro e com as formas institucionalizadas (na família, na escola, no trabalho, no lazer,...) com que se relaciona o indivíduo na sociedade – pontuando a mediação, nessas relações, dos direitos humanos e de cidadania. Ainda se articulam aí, estrategicamente, “necessidades” individuais com das

organizações e vice-versa – como no caso da aceitação do homossexual e rendimento no trabalho (dirigida à organização) e na questão quanto ao posicionamento pessoal no trabalho, como “desperdiçar” tempo “dentro do armário” (colocada ao indivíduo).

Assim, cada uma, por sua vez, estende-se sobre o campo já constituído da experiência homossexual de forma organizada, articulando-se e, em conjunto, oferecendo ao indivíduo uma possibilidade de significação ordenada e coerente de sua própria experiência – constituindo uma grade de “leitura”, de saber – pela via da identidade sexual.

Aqui, como em toda a extensão deste trabalho, o discurso da homossexualidade demonstra poder prescindir de referências diretas às práticas sexuais. Fora da situação-chave sexo/AIDS, tematizada como “sexo seguro” (restrito a informações sobre o uso correto da camisinha), as referências mais aproximadas a uma experiência estritamente sexual se dão em relação à excitação e ao desejo sexual. Referências como essas referências provêem especialmente das cartilhas “Será que sou gay?” e “Satisfação entre adolescentes gays”, funcionando da seguinte forma em seus discursos: na cartilha “Será que sou gay?”, aparecem em depoimentos pessoais inseridos ao longo do texto, servindo à função de corroborar o processo de descoberta da homossexualidade e de desenvolvimento de uma identidade homossexual; na cartilha “Satisfação entre adolescentes gays”, que sustenta essa temática – falando do tesão, da excitação, do desejo sexual – como base para o tema da vida satisfatória “fora do armário”.

O desejo, a atração física e/ou sentimentos amorosos em relação ao outro “do mesmo sexo” estão entre as condições levantadas para a identificação de uma condição homossexual – determinação, segura (dependente de um correto/honesto exame de si), do objeto de desejo e de afeto. Os depoimentos pessoais relativos à questão do descobrir-se, do “saber-se” homossexual se inserem na articulação de dois tempos: o da experiência do desejo e o da consciência sobre esse desejo. Falas que, nas cartilhas, se inscrevem na lógica do discurso do desenvolvimento de uma condição e de um saber sobre si como sujeito homossexual.