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A RQUEOLOGIA , G ENEALOGIA E É TICA – uma história de saberes, poderes e subjetivação

Em “A arqueologia do saber” Foucault esboça uma possível abordagem arqueológica da sexualidade; uma análise arqueológica direcionada para questões éticas.

“uma outra possibilidade de análise: ao invés de estudar o comportamento sexual dos homens em uma dada época (...), ao invés de descrever o que os homens pudessem pensar da sexualidade (...), perguntaríamos se, nessas condutas, assim como nessas representações, toda uma prática discursiva não se encontra inserida; se a sexualidade, fora de qualquer orientação para um discurso científico, não é um conjunto de objetos de que se pode falar (ou de que é proibido falar), um campo de enunciações possíveis (...), um conjunto de conceitos (que podem, sem dúvida, ser apresentados sob a forma elementar de noções ou de temas), um jogo de escolhas (que pode aparecer na coerência das condutas ou em sistemas de prescrição).”

(Foucault, 2002, p. 219 – grifos meus)

A elaboração deste estudo exigiu a utilização de recursos de análise encontrados e transformados ao longo da obra de Michel Foucault, apoiando-se nos princípios de análise histórica arqueológica e genealógica e voltando-se para as questões éticas ao abordar modos de constituição do “sujeito”, a produção de subjetividade no campo de discursos e práticas designados como “homossexuais”. Sua concepção foi sendo alterada na medida e como exigência de sua realização concreta, do que efetivamente se fazia. Os caminhos metodológicos foram sendo construídos ao longo do percurso, especialmente na relação com os materiais pesquisados. O próprio “objeto” de análise, para além de “discursos”, foi-se delineando como uma problematização construída através de práticas de saber, de dizer, de ver, de exercer-se, que dá a ver

pensar e a conhecer como o que somos ou podemos ser.

Mesmo considerando a análise arqueológica de forma estrita compreende-se que ela não se fecha no “discurso”, ela diz respeito a descrições de relações no e “fora” do discurso, entre enunciados ou grupos de enunciados e entre estes e acontecimentos de outra ordem – “técnica, econômica, social, política” (Foucault, 2002, p. 33).

“Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações.” (Foucault, 2002, p. 33)

Passando da arqueologia para a genealogia, Foucault atrela a questão da constituição de saberes a modos de exercício de poder através da noção de dispositivo; uma rede de relações que se pode estabelecer entre os elementos heterogêneos que o constituem, sejam eles considerados “discursivos” ou não. A divisão “discursivo”/“não discursivo” perde importância com o conceito de dispositivo, pois este atravessa e ultrapassa essas instâncias.15 (Muchail, 1985)

Com a noção de dispositivo destaca-se o exercício de uma função dominante por este conjunto, o cumprimento de uma função estratégica nessa formação histórica. No cumprimento dessa função encontra-se uma articulação dominante entre produção de saber e modos de exercício de poder.

Essa(s) articulação(ões) saber-poder encontra(m)-se ligada(s) às possibilidades de subjetivação, estabelecendo um campo de possíveis para a constituição/conformação de subjetividades, realizando vias possíveis para a subjetivação – diferentes e amplos modos de produção de subjetividade, modos de dizer e de “ser”/exercer-se, de “ver”, perceber e se conduzir como quem se é, se deve ou se pode ser.

Esse campo assim configurado, oferecido à subjetivação, é construído através das relações entre as diferentes práticas articuladas no dispositivo (que só existe como referência do conjunto em articulação, ou seja, como referência às próprias relações e às regras que as regem, como seu agenciamento), nas quais se inserem e com as quais se relacionam os indivíduos concretos. O dispositivo existe como referência do

15

O recurso a essa terminologia neste trabalho cumpre a função – provisória e relativa – apenas de discriminar o discursivo entre as práticas – aparecendo aí, por contraste, o “não discursivo”.

conjunto em articulação, ou seja, como referência às próprias relações e às regras que as regem, como seu agenciamento. Os diferentes modos de subjetivação que se podem estabelecer se dão a conhecer assim como o indivíduo se dá e é dado a conhecer e a se constituir nesse movimento como sujeito, como subjetivação, como prática e exercício de si em diferentes momentos históricos, diferentes épocas; através dos códigos e práticas com que se pode estabelecer relações que se voltem à constituição de si como objeto de saber e de prática, pelo exame e exercício de si.

Um estudo arqueológico da sexualidade como esboçado em A Arqueologia do saber, poderia mostrar, segundo Foucault (2002), a implicação da construção discursiva da sexualidade em um sistema de regras, de valores, constituindo-se numa análise arqueológica voltada para questões éticas.

“Tal arqueologia, se fosse bem sucedida em sua tarefa, mostraria como as proibições, as exclusões, os limites, as valorizações, as liberdades, as transgressões da sexualidade, todas as suas manifestações, verbais ou não, estão ligadas a uma prática discursiva determinada. Ela faria aparecer, não certamente como verdade última da sexualidade, mas como uma das dimensões segundo as quais pode ser descrita, uma certa “maneira de falar”; e essa maneira de falar mostraria como ela está inserida, não em discursos científicos, mas em um sistema de proibições e valores. Tal análise seria feita, assim, não na direção de ‘episteme’, mas no sentido do que se poderia chamar ética.” (Foucault, 2002, p. 219)

A investigação da sexualidade aqui, de uma identidade sexual, utiliza-se de uma base arqueológica e volta-se para questões éticas, sem desligar-se da genealogia das práticas, a fim de investigar a implicação das relações de saber-poder com modos de produção de subjetividade. Modos esses em que a sujeição se daria na definição de si através dos códigos, da normatividade presente nesses discursos. Sujeição como submissão à norma na subjetivação, como normalização. Um modo de poder solidário aos saberes sobre “o homem” e ao “exame” como modelo de estabelecimento da verdade (Muchail, 1985).