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S OBRE A S UBJETIVAÇÃO – sujeição e resistência na relação consigo

Quando se fala em poder pode-se falar inicialmente no sentido dado de relações de força do fora, no campo de atuação das forças de constituição das formações sociais localizadas. Fala-se aí de um jogo de poder onde o poder é visualizado como aquilo que impõe um domínio, uma efetuação sobre um campo de forças, um efeito sobre este campo, constituindo-se como uma política que efetiva e mantém uma realidade e suas verdades. Fala-se das relações de poder e saber, formadoras de um campo social codificado, normatizado; fala-se do diagrama de poder. (Deleuze, 1988)

Mas, de modo mais geral, e rigoroso, em termos de relações de poder, deve- se dizer que estas não são privilégio ou possibilidade apenas daquilo que triunfa e domina. O poder está em todos os lados, por tudo, constituindo-se como efeito de um jogo de múltiplas relações de força localizadas, sempre constituindo campos onde essas relações de força se articulam e se exercem. O poder não é um predicado, algo de que se possa tomar posse ou algo que possa ter “dono”, não é um domínio, mas, em seu jogo, constitui domínios, territórios, onde se exerce. As relações de poder constituem uma rede, territórios de enfrentamentos, dando forma, em seus agenciamentos, conforme suas articulações, a dispositivos, maquinarias “bélicas”, realizadoras: diferenciando-se da hipótese repressiva, essa concepção do poder destaca-o em sua positividade – relações produtivas, realizadoras.

Se, como efeito dessa relação de forças, pode-se falar em dominados e dominadores – como produtos “estabelecidos” em uma batalha –, não se pode dizer que o poder está de um dos lados. Essa forma de poder “dominante” a que se pode querer referir é, na verdade, o produto de um conflito, algo que se estabelece e se impõe através das relações de força – que, se existem, só o podem ser se houver poder em jogo, poderes em enfrentamento por todos os lados –, um “diagrama” que estabelece as formações sociais, seus códigos, suas regras, configurando um determinado domínio, onde imperam.

Através dos trabalhos de Foucault, da arqueologia à genealogia e aos estudos da ética, são trabalhadas as implicações entre constituição de saberes, modos de exercício de poder e modos de subjetivação. Pensar a constituição da relação consigo, a constituição do sujeito, exige, assim, pensar sua implicação em uma rede de saberes e poderes, como um dispositivo, porém, sem considerá-los seus “determinantes”. Os três

eixos de análise estão em relação, mutuamente implicados, engendrando-se.

A “relação consigo” e a “constituição de si”, nos primórdios da formação do sujeito, surge como uma derivação das relações com os outros e dos códigos morais como regras de saber: “uma dimensão da subjetividade que deriva do poder e do saber, mas que não depende deles” (Deleuze, 1988, p. 109).

Inicialmente, essa relação consigo ganharia certa independência, constituindo-se como uma dobra do lado de fora – das relações de força no campo social –, onde a força (o poder de afetar), vergada, afeta a si mesma, constituindo um domínio: o sujeito. “Essa derivação, esse descolamento”... (Deleuze, 1988, p. 107).

O sujeito se descola inicialmente do diagrama, para que não dependa mais

diretamente dos códigos, mas permanece codificado por ele, produto de uma

subjetivação.

Tal como as relações de poder – sendo uma delas –, a relação consigo só se afirma, se estabelece, se efetuando, e pode constituir um domínio através de sua efetuação, ganhando “corpo”14, existência. Como dito, os poderes só têm existência nos exercícios de poder, como efeitos de relações de forças; e, articulando-se, compõem uma política de forças – formam dispositivos políticos, funcionam, integram-se, constituem-se e constituem em seus efeitos. Assim, a relação consigo se configura como um agenciamento político, "bélico", como um domínio; um campo de relações, de efeitos, que se torna um exercício de si – integrando formas de sujeição/resistência/afirmação... subjetivações.

Deleuze, discutindo o trabalho de Foucault, aponta a sexualidade como um domínio através do qual a relação consigo se efetuou: “Os gregos não apenas inventaram a relação-consigo, eles a ligaram, compuseram e desdobraram na sexualidade” (Deleuze, 1988, p. 110).

Esse domínio da relação consigo deriva e é recapturado, reintegrado ao sistema de controle social:

"A relação consigo entrará nas relações de poder, nas relações de saber. Ela se reintegrará nesses sistemas dos quais começara por derivar. O indivíduo interior acha-se codificado, recodificado num saber “moral” e, acima de tudo, torna-se o que está em jogo no poder – é diagramatizado”

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Como “princípio de regulação interna” (Foucault, História da sexualidade II – O uso dos prazeres, conforme Deleuze, 1988).

(Deleuze, 1988, p. 110).

O poder, como força do fora, “penetra” e constitui minuciosa e

integralmente a relação consigo? Ele a codifica e a modula inteiramente? O domínio da

relação consigo duplica, como cópia, o diagrama?

A sujeição relaciona-se à diagramatização do sujeito no jogo objetivação- subjetivação; sujeito inscrito em cadeias que articulam saberes e poderes. Porém, esse campo, como enfrentamento, constitui-se como um jogo de múltiplas forças – pois não há Um Poder, mas múltiplas relações de forças; sob a designação dO SUJEITO, uma multiplicidade de forças; sob a IDENTIFICAÇÃO evidenciada de Uma política, atravessamentos, micropolíticas que se renovam. Como defendem Deleuze e Guattari (1995):

"Nós não temos unidades de medida, mas somente multiplicidades ou variedades de medida. A noção de unidade se produz unicamente quando se produz numa multiplicidade uma tomada de poder pelo significante ou um processo correspondente de subjetivação” (p. 17).

O poder como força “penetra”, constituindo, mas, como relação de força que se afeta ao dobrar-se reconstitui-se internamente como campo de conflito. Na subjetivação, portanto, encontra-se um espaço de resistência e, como defende Rajchman (1987), um espaço de “liberdade”: a margem de luta em que o indivíduo exerce-se como força, como relação consigo que é constituída e constitui.

“Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de “baixo” e se distribua estrategicamente. (...) a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência.” (Foucault, 1993a,

p. 242)

Não haveria, rigorosamente, espaço para o “lado” do poder ou o “lado” da resistências há enfrentamentos, relações, há construções relacionais que sempre pressupõem um campo político. A relação consigo constitui, junto às relações de poder e de saber, mais um domínio irredutível, intrinsecamente relacionado, mas não redutível às determinações das relações de poder e saber.

podemos sempre modificar sua denominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (p. 242).