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O S S ABERES E A E XPERIÊNCIA DE O RDENAÇÃO DA V IDA

Com Foucault, concebe-se que regimes de produção de saber produzem visibilidades através do que enunciam, constituindo, quando legitimadas, verdades sobre indivíduos e grupos, criando normatividades, através das quais instauram-se prescrições. Funcionando nesses regimes, dispositivos como o de sexualidade põem para funcionar, serem produzidos e agenciados, conhecimentos acerca de algo que emerge como verdadeiro – efeito de verdade, a sexualidade como dimensão humana emerge como realidade. As práticas sociais, os saberes e fazeres, são realizadores, produtores de realidades, de objetos, de permanências e estabilidades; estabelecem modos de

Como parte desse regime de produção e agenciamento de saberes e práticas, tem-se a possibilidade de afirmação do verdadeiro e do falso em cada domínio de saber. Criam-se e fornecem-se condições (e meios) para a validação de uma realidade conforme os parâmetros de cada domínio. Emergindo em um domínio de saber, o objeto ganha existência; assim fala-se de sua “realidade” – como objeto de saber e de práticas.

“é o investimento político sobre a vida que possibilita a constituição do indivíduo como objeto e sujeito. Tal investimento tem um lugar na história. Está inserido num complexo de relações de poder que o justificam. Desse mesmo fundamento sairá a explicação e a justificação do indivíduo moderno, tanto da forma como se apresenta quanto da constituição de que é resultado.” (Fonseca, 1995, p. 94)

As prescrições geradas como articulação entre os saberes e demais práticas sociais – de conhecer, de viver, de ‘ser’ (de determinado modo) e ser reconhecido –, dariam forma às possibilidades de existência reconhecida e às possibilidades de conhecê-las. Se essas prescrições, como demonstrado nos trabalhos de Foucault, comentado por Descamps (1991), fazem do indivíduo sábio ou louco, doente ou delinqüente, também fazem-no sujeito de uma determinada sexualidade.

Se esses contextos de produção de saber objetivam a verdade do “sábio”, do “louco”, do “doente”, do “delinqüente” (Descamps, 1991), como realidade própria de cada indivíduo – por isso vincula-se aqui a identificação relacionada à suposição/afirmação de uma dada subjetividade –, assim também teria-se o indivíduo sexualizado, vinculado a uma dada subjetividade sexual correspondente às suas práticas.

Falar dessa perspectiva é falar sobre a experiência da ordem, da ordenação da vida da qual os saberes participam de diferentes formas em cada época – “a experiência da ordem é constitutiva dos saberes e apresenta diferentes modos de ser específicos a cada época” (Portocarrero, 1998, p. 197). A experiência de ordenação da vida, na episteme moderna, aparece como a articulação entre os níveis biológico e político, constituindo-se como forma de saber e como prática de dominação: ordenando as diferenças humanas, as multiplicidades de indivíduos e de populações. Tal experiência pode ser vista entre os saberes (nível arqueológico) e entre saberes e exercício de poder – disciplinar, biopoder (nível genealógico). (Portocarrero, 1998)

Na articulação saber-poder na política do biopoder, encontrar-se-ia uma forma de funcionamento desse dispositivo de regularização, de normalização, de

ordenação da vida pela via da sexualidade. Essa perspectiva trata o campo do saber

como um campo político, com efeitos de configuração disciplinar – normatizado e normatizador, normalizado e normalizador, produzido como válido e validador, disciplinado e disciplinador.

A opção pelo estudo da identidade sexual, como conceito, categoria e problema dentro das Ciências Humanas, aparece como conseqüência do foco de interesse recair sobre a objetivação de ‘sujeitos de uma dada sexualidade’ pela identificação com as práticas sexuais concretas de indivíduos e grupos. A problematização, portanto, não recai sobre o conceito em si, mas nas articulações que possibilitam sua afirmação num determinado momento e em suas articulações com a questão da afirmação de uma “realidade subjetiva”, como uma afirmação correlacionada à da identidades sexual. Esta é uma afirmação-problematização possibilitada a partir dos trabalhos críticos de Foucault em relação às implicações entre saberes, poderes e subjetivação e o sexo – onde se entende a afirmação de sexualidade como dispositivo, não como estado, dimensão, dinâmica, etc., próprias do sexo.

Não é a validade teórica do conceito que está em jogo – ele certamente encontra seus parâmetros e suas justificações nos campos teórico-práticos que o sustentam. Interessa problematizá-lo através de sua implicação com o processo de identificação social, como possível suporte e meio de instrumentalização para práticas sociais de identificação e controle, reinscrevendo a produção de conhecimento sobre o homem na ordem da produção social. A questão da constituição do sujeito atravessa e atravessará todo o trabalho.

Para tanto, torna-se necessário examinar o pensamento identitário na problematização da sexualidade; analisar as conceituações, as categorizações, as problematizações em produções localizadas, contextualizadas, do saber; analisar esses saberes como elaborações de um determinado regime de produção que se fundamenta sobre e engendra práticas conseqüentes socialmente (práticas fundamentais, em Dreyfus e Rabinow, 1995).

Recorrendo à Filosofia, à História e ao campo interdisciplinar das Ciências Humanas, examinam-se saberes relevantes para a Psicologia, considerando-os como um problema histórico nesta área. Figueiredo (1992) destaca essa questão em sua leitura do campo da psicologia:

“Na tradição civilizada e civilizatória, vamos encontrar as psicologias que se levam a sério como conhecimento objetivo dos caracteres, ou seja, das identidades substantivadas dos diversos ‘tipos psicológicos’ (...).

Em contraposição, (...) [surgem] projetos concebidos como desvelamentos de ilusões, como genealogias de identidades civilizadas, como desconstrução de identidades fictícias. (...) Ao contrário das primeiras, que reificam seus objetos, estas psicologias promovem uma certa dissolução do psicológico e nos remetem às dimensões biológica, política, religiosa e ética da experiência. (...) São formas de fazer e pensar a psicologia que (...) nos convidam a rir. Elas incomodam quando fazem lembrar. Nisto reside e deveria talvez se esgotar toda a sua pretensão à ‘verdade’.” (p. 103).

Na perspectiva de uma desnaturalização do ‘psicológico’, cumpre examinar as contingências históricas de seus objetos, desrealizando-os ou nominalizando-os (Rajchman, 1987), ou seja, elaborando uma genealogia desses domínios de saber. Não destruir um conhecimento, mas tomar todo e qualquer conhecimento criticamente, como produção social e histórica. Manter a criticidade sobre o conhecer, ao conhecer, para que as ‘realidades’ históricas em estudo não sejam alçadas à condição de evidências inquestionáveis. Como dito por Rajchman (1987), “os nossos próprios eus podem ser grandes ilusões realistas do nosso tempo – as entidades interiores, totais, privadas, individuais, mentais, que freqüentemente aceitamos como certo serem quem somos” (p. 48).

As preocupações que acompanham a trajetória da proposição desse trabalho encontram apoio na leitura de Figueiredo (1992) quanto às condições de opção entre as diferentes psicologias disponíveis atualmente. Vê-se aqui uma questão relevante para a pesquisa e, especialmente, um problema a ser debatido ao longo da formação em psicologia desde a graduação – como um compromisso com nossa formação e nossas práticas:

“escolher entre as psicologias hoje disponíveis é um ato de pura arbitrariedade enquanto não entendermos a proveniência de nossos ‘objetos’, enquanto não compreendermos a história do ‘psicológico’ e, portanto, a pré-história das posições da própria psicologia no século XX.”

(Figueiredo, 1992, p. 168).

Antes de passar às questões metodológicas, considera-se relevante citar o comentário de Figueiredo (1992) sobre o possível ‘lugar’ de partida de tais estudos:

“Creio que a compreensão de que falo não se pode elaborar na posição de psicólogo, ou psicanalista, enquanto um especialista no psicológico. Ela deve partir, quem sabe, deste lugar-nenhum em que os saberes ‘psi’, a história, a filosofia e as artes se encontram e se perdem no exercício do mero pensar.” (p. 168).

Uma questão metodológica fundamental aqui é a promoção da desnaturalização da verdade, a desconstrução de essências afirmadas e/ou pressupostas através da afirmação de sua historicidade, da elaboração de uma história em sua construção social, conforme a perspectiva teórica já delineada. Entender essências como objetos construídos, objetivações, e ter-se a história como instrumento de pesquisa. Nas afirmações de verdades buscar estratégias e lutas, conflitos de poderes, procedimentos produtivos – visar a produção, antes que o produto.

Inúmeras questões históricas relativas a saberes e poderes e suas implicações exigiram desenvolvimentos e transformações metodológicas ao longo da obra de Foucault, entre elas: O que pode ser visto, o que pode ser conhecido e de que

forma; como se sabe em um determinado tempo histórico? ...“Quais as condições de possibilidade dos conhecimentos e teorias; segundo que espaço de ordem se constituíram os saberes; sobre o fundo de qual ‘a priori’ histórico, de qual positividade nós pensamos a ordem, numa determinada época?” (Portocarrero, 1998, p. 192).

Sua pesquisa histórica tornou-se um instrumento desrealizante, na medida em que expôs processos de objetivação, processos que tornaram possíveis objetos e métodos, mostrando-os como objetos construídos (pseudo-objetos, conforme Rajchman, 1987), realizações humanas. Através da história, pretensos objetos naturais emergiram como efeitos de práticas – discursivas, não-discursivas e subjetivantes (Rodrigues, 1993).

Trata-se de uma história nominalista ou anti-realista, não “histórias de coisas mas de termos, categorias e técnicas, através das quais certas coisas tornam-se, em certos momentos, o foco de toda uma configuração de discussão e procedimento” (Rajchman, 1987, p. 47).

“[Foucault] escreve histórias de ‘pseudo-objetos’; usa a história para dissipar a espécie de rotina, a autoconfiança instituída que as pessoas alimentam a respeito da realidade de entidades tais como as desordens mentais, de que temem estar sofrendo, ou as necessidades sexuais internas que acreditam ter que descarregar. Ao questionarem essa realidade, as histórias de Foucault ‘são’ nominalistas.” (Rajchman, 1987, p. 47-8)

Dessa forma, Foucault pode oferecer uma resposta histórica à questão filosófica sobre o modo como tais coisas são constituídas, demonstrando o “surgimento, em momentos específicos, de pressupostos comuns a um corpo disseminado de pensamento e política” com a finalidade de “desnaturalizar, desfamiliarizar e distanciar- nos dela [da experiência de coisas] e, por conseguinte, questionar a sua ‘raison d’êtré’” (Rajchman, 1987, p. 47).

Uma história desrealizante sobre técnicas, termos, categorias que dizem respeito ao sujeito, sobre “sistemas de pensamento através das quais as pessoas acabaram por identificar-se como sujeitos” (Rajchman, 1987, p. 48).

A história, na trajetória dos trabalhos arqueológicos e genealógicos de Foucault, tornou-se um eficaz instrumento de pesquisa ao colocar as afirmações essencializantes na perspectiva de sua construção social, remetendo em suas análises o saber “de volta” ao campo das práticas sociais, onde sempre esteve – como qualquer realização humana. Tornou possível (re)conhecer o saber como sujeito a e co-produtor de políticas, realizador, produtor de real – contrapondo-se à noção do conhecer como um ‘desvendar’ de realidades, um acesso à verdade das coisas. Desde Nietzsche a Foucault, o saber e a verdade tornaram-se coisa desse mundo (Rajchman, 1987).

Tomar a questão do saber na perspectiva da produção e articulação histórica de diferentes discursos, entendidos como práticas sociais, é remeter a análise do conhecimento produzido a uma instância política; é considerar as estratégias implicadas no prevalecimento de alguns conhecimentos sobre outros, na disposição de suas peças para formar novos discursos válidos ou na transposição de sua lógica para outros domínios, na formação histórica dos conhecimentos atualmente válidos.

Um ponto de partida para a pesquisa num domínio de saber pode estar justamente nos combates, nos pontos de confronto e de tensão, como confrontos de poder que surgem em seu interior. Visibilizar encontros, confrontos e articulações entre discursos implicados na formação de um conhecimento, de um corpo de saber. A tarefa de uma história crítica, nesse caso, não seria a de enfrentar as divergências a fim de equalizá-las, solucioná-las – sendo o pesquisador, portanto, o árbitro dessas questões, posição que Foucault (1993d) recusa –, mas sim a de devolver ao campo estudado sua conotação política, de heterogeneidade e confronto.

Os trabalhos de Michel Foucault, da arqueologia à genealogia, buscam uma problematização de como são fabricados os discursos na cultura ocidental (Pinho,

1998). As transformações na forma de concebê-los mostram que é preciso avançar das análises internas, de sua coerência e validade dentro de um sistema de pensamento, para considerá-los em sua eficácia, através dos efeitos que induz; suas condições de surgimento e de legitimação são históricas e sua eficácia reside na implicação entre saber e poder, defendida por Foucault. Não se trata, portanto, de uma história epistemológica, mas de uma história política.

Sobre a aproximação saber-poder na análise histórica dos discursos, encontramos em Foucault: “Tentar (...) decifrá-lo [o discurso] através de metáforas espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir de relações de poder” (Foucault, 1993d, p. 158).

Espacializar a compreensão de história é escapar da noção de história como continuidade, evolução, progresso da consciência. Esse pensamento estratégico trata os espaços dos discursos como campos e objetos de práticas políticas, sendo “efetivamente de guerra, de administração, de implantação, de gestão de um saber que se trata em tais expressões [metáforas espaciais]” (Foucault, 1993d, p. 159). Foucault aponta justamente para a percepção de que

“na demarcação das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos – históricos certamente – de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados.” (Foucault, 1993d, p. 159)

Tanto a forma de guerra quanto a de política configuram-se como estratégias que buscam integrar uma multiplicidade de correlações de força “desequilibradas, heterogêneas, instáveis, tensas” num determinado domínio; sendo “o” poder, “no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor” , apenas seu “efeito de conjunto” (Foucault, 1997, p. 89).

Com a incorporação de um componente político à noção de discurso, passa- se a analisar, através dele, a associação conhecimento-política, cabendo ao trabalho genealógico revelar o regime político inerente a esse jogo enunciativo (Pinho, 1998).

Ao trabalho arqueológico, considera-se, caberia expor os agenciamentos enunciativos

como parte de uma política de configuração/objetivação de realidades no nível do saber.

Elaborar tal trabalho corresponde a desconstruir um objeto em sua pretensa essencialidade e/ou naturalidade, inscrevendo-o no campo das produções históricas. Tratar o saber, o discurso, como materialidade, como produto e prática histórica, induzido por e indutor de efeitos de poder. Lembrando que o conhecer não é uma leitura externa e independente da realidade social, é parte dela e também constitui-se em algo a ser conhecido em sua elaboração.

3.1. ARQUEOLOGIA, GENEALOGIA E ÉTICA – uma história de saberes, poderes e