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CAPÍTULO II A CULTURA SOB A ÓTICA DO INTERPRETATIVISMO

2.3 A HERMENÊUTICA

A hermenêutica também tem sido um referencial muito utilizado na área da saúde. Para exemplificar, cito o estudo de Boehs (2000), “A narrativa no mundo dos que cuidam e são cuidados”, onde a autora apresenta a narrativa como uma possibilidade para a enfermagem interpretar e agir sobre sua prática, e a investigação de Jesus et al. (1998), que trata sobre “O paradigma hermenêutico como fundamentação da pesquisa etnográfica e fenomenológica”.

Etimologicamente, hermenêutica está associada ao verbo grego

hermeneuein, que possui três acepções no seu antigo uso: 1. dizer, exprimir em voz

alta; 2. explicar, por exemplo, uma situação; e 3. traduzir, como se faz ao traduzir um texto de uma língua estrangeira. Estas três vertentes básicas do verbo grego têm equivalência ao verbo interpretar em português. A palavra hermenêutica também está associada ao substantivo hermeneia, interpretação, e o termo aparece citado já nas obras de vários pensadores antigos como Aristóteles, Platão, Xenofonte, Plutarco e Eurípides, Eupicuro, Lucrécio e Longino. Hermes, deus grego considerado o intérprete das mensagens dos deuses para os mortais, de maneira que estas mensagens pudessem ser entendidas pela inteligência humana, parece ter fornecido a origem da palavra hermenêutica, mas não se descarta, entretanto, o

contrário (PALMER, 2006).

A hermenêutica, mesmo que signifique a ciência da interpretação, tem seu campo definido cronologicamente em seis momentos diferentes, cada qual representando um ponto de vista:

1) uma teoria da exegese bíblica; 2) uma metodologia filológica geral; 3) uma ciência de a compreensão lingüística; 4) uma base metodológica dos geisteswissenchaftliche; 5) uma fenomenologia da existência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação simultaneamente recolectivos e inconoclásticos, utilizados pelo homem para alcançar o significado subjacente aos mitos e símbolos (PALMER, 2006, p. 43).

A hermenêutica constituiu-se como disciplina em seu terceiro momento, a partir do século XIX, quando o conhecimento passou a ser dependente da compreensão e da interpretação. Neste período, Friedrich Scheleiermacher (1768- 1834) foi o pensador que a conduziu à ciência e arte da compreensão, que, desde então, tornou-se o conceito básico e sua finalidade. Com Scheleiermacher, a hermenêutica passou a ser entendida como o estudo da própria compreensão e esta como sendo a arte de reconstruir o pensamento de outrem, reexperimentando o processo mental do autor, através de uma abordagem intuitiva. Nesta brecha, a compreensão torna-se o inverso da composição, isto é, seu ponto de partida é fixo e finito e seu objetivo é a vida mental na qual o finito surgiu Esta reconstrução apregoada por Scheleiermacher estava baseada no círculo hermenêutico, um processo no qual o todo fornece sentido às partes e vice-versa. Com este pensamento, por exemplo, em uma frase, compreende-se o sentido de uma palavra na medida em que tomamos sua relação com toda a frase e, inversamente, compreende-se o sentido da frase na medida em que compreendemos o sentido das palavras (PALMER, 2006).

Após Scheleiermacher, Wilhelm Dilthey (1833-1911) levou a hermenêutica ao estatuto de base metodológica de todas as ciências humanas,

“geisteswissenschaften” (ciências do espírito), que incluíam aquelas disciplinas

centradas na compreensão da arte do comportamento e da escrita humana. Dilthey também estabeleceu a distinção entre a explicação das ciências da natureza, que procuram a causalidade dos fenômenos, e a compreensão das ciências do espírito, que visam extrair os sentidos dos processos da experiência humana, que se formam

da experiência pessoal. Dilthey ainda ocupou-se em apresentar uma fórmula hermenêutica constituída de experiência, expressão e compreensão, sem as quais uma disciplina não pertenceria às ciências humanas. Para ele, a experiência seria o fundamento básico da vida, os seres humanos fundamentalmente expressivos e a compreensão o método fundamental para a realidade sócio-histórica. Na seqüência do pensamento hermenêutico, Heidegger e Gadamer, já no século XX, mostraram a hermenêutica como a explicação da existência humana, em que a compreensão e a interpretação faziam parte desta existência (PALMER, 2006).

Gadamer inaugurou uma hermenêutica dita filosófica, que pretendia esclarecer o próprio fenômeno da compreensão e, assim como Heidegger, anulou a separação entre sujeito e objeto, e foi encontrar na dialética grega o modelo de sua filosofia. Gadamer utilizou-se do conceito de fusão de horizontes, segundo o qual o horizonte do texto deve ser fundido ao horizonte do leitor, resultando em um alargamento deste horizonte e promovendo a autodescoberta e a autocompreensão, numa descoberta ontológica. E também introduziu a idéia de distância temporal entre a obra e o intérprete, que seria responsável pela idéia da distância ser responsável pelo desaparecimento de alguns preconceitos inerentes à natureza da obra, do mundo passado, e pelo aparecimento de novos preconceitos, uma vez que em sua concepção, toda a compreensão é preconceituosa. Adicionado a isto, com Gadamer, a hermenêutica passou a evidenciar um modo de compreender as ciências do espírito e da história, através da interpretação dentro das tradições (BLEICHER, 1980).

Jürgen Habermas e Apel fundaram a hermenêutica crítica de ideologias que remonta, através de Marx, ao século XVIII. Esta abordagem critica as condições sócio-políticas e culturais através de interpretações que as desmistificam. Paul Ricoeur, mais recentemente, desenvolveu a hermenêutica em que a exegese textual é o elemento central da hermenêutica fenomenológica, onde o agir humano é a base de reflexão. Para Ricoeur, a compreensão de um texto, de uma obra, torna-se metáfora para os mais variados tipos de compreensão que compreendem todos os fenômenos sociais e culturais (PALMER, 2006).

Dentre os autores estudados, dediquei especial atenção à hermenêutica dialética de Jürgen Habernas. Entendo-a como fundamental à análise dos textos que compõem o corpus de minha pesquisa, uma vez que se tratam de textos escritos por

sujeitos históricos e sociais imersos em uma realidade. Esta realidade é um espelho de duas faces que, por um lado, é retratada nos estudos e, por outro, também influencia os sujeitos que escrevem, influenciando a sua descrição e, conseqüentemente, o sujeito que lê e também interpreta, no caso, eu enquanto pesquisadora.

A hermenêutica crítica de Habermas, como ciência social dialética, buscava unir a objetividade dos processos históricos aos motivos/intenções daqueles que agem no interior destes processos. Esta hermenêutica proferida por Habermas visava a uma libertação do potencial, isto é, visava expor as intenções dos agentes que foram esquecidos ou reprimidos por relações/grupos sociais historicamente dinâmicos, antagônicos e contraditórios, e que poderiam ter sua linguagem e comunicação comprometida por estes fatores (BLEICHER, 2002).

Habermas introduziu a hermenêutica na metodologia das ciências sociais com o propósito de lutar contra o objetivismo que se alojava nas abordagens de cunhos cientificistas do universo social, pois, em seu pensamento, existiriam forças e interesses sociopolíticos advindos de instituições sociais que seriam refletidas na linguagem do dia a dia, excluindo a autoclarificação ilimitada destes que estão sujeitos a estes regimes. Nesta dualidade entre objetivismo e subjetivismo, Habermas acreditava que havia um hiato que não poderia ser transposto nem pelas ciências hermenêuticas e nem pelas empírico-analíticas, uma vez que ambas tinham a sua posição teórica e prática fortalecida e olhavam-se com incompreensão. Assim, esta aparente irreconciliabilidade subsidiou uma articulação dialética, visto que as duas posições representavam modos de investigação legítimos (BLEICHER, 2002).

Assim, esta articulação objetiva-subjetiva, que também, certamente, rege o produto desta tese, coaduna-se com a questão dialética, que é expressa na hermenêutica dialética de Habermas. Igualmente, tem acento na afirmação de Mora (2001, p. 182) de que, por meio desta dualidade objetiva-subjetiva, possa haver um acordo na discordância, que levará ao diálogo e a sucessivas mudanças de posições, pois, “induzidas pelas posições ‘contrárias’”, tais mudanças podem gradativamente construir o movimento histórico do objeto.

Habermas parece associar-se a Gadamer na questão da hermenêutica dialética, pois o primeiro defendia a universalidade da crítica da dialética e o segundo a universalidade da hermenêutica. Juntos Habermas e Gadamer

protagonizaram inúmeras discussões sobre o método nas ciências sociais, que culminaram em contribuir decisivamente para aproximação entre a filosofia e as ciências sociais, na medida em que os autores buscavam “formas de conseguir objetividade e de abordar a práxis” (MINAYO, 1996, p. 218).

Sobre esta ciência social dialética apresentada por Habermas e Gadamer, Bleicher (2002, p. 224) refere que ela não se contenta em mostrar simplesmente um inventário sobre o passado e o presente e, sim, uma análise crítica “no sentido de tentar apurar o sentido dos processos e objectivações históricos, em relação às tendências existentes em direcção a uma sociedade mais livre”. E, além disto, Habermas viu, no encontro profícuo entre a hermêutica e a dialética, o homem como ponto de contato entre ambas, além do objeto de análise comum – a práxis social - e a busca pelo sentido da afirmação ética e política do pensamento (MINAYO, 1996).

Assim, a hermenêutica e a dialética mostram-se como momentos imprescindíveis à produção da racionalidade, uma vez que

Enquanto a hermenêutica penetra no seu tempo e através da compreensão procura atingir o sentido do texto, a crítica dialética se dirige contra o seu tempo. Ela enfatiza a diferença, o contraste, o dissenso e a ruptura de sentido. A hermenêutica destaca a mediação, o acordo e a unidade de sentido (MINAYO, 1996, p. 227).

Mesmo que a hermenêutica e a dialética tenham sido desenvolvidas em movimentos filosóficos diferentes, o método dialético tem o método hermenêutico como pressuposto e ambas são complementares, como enfatiza Minayo (1996) baseada em estudos de Stein (1987, p. 110):

(a) ambas trazem em seu núcleo a idéia fecunda das condições históricas de qualquer manifestação simbólica de linguagem e de trabalho do pensamento;

(b) ambas partem do pressuposto de que não há observador imparcial nem há ponto de vista fora da realidade do ser humano e da história;

(c) ambas ultrapassam a simples tarefa de serem ferramentas do pensamento. São modos pelos quais o pensamento produz racionalidade, contrapondo-se aos métodos das ciências positivistas que se colocam como exteriores e isentos do trabalho da razão;

(d) por isso, ambas questionam o tecnicismo presente nos métodos das ciências sociais, para descobrir o fundo filosófico que as diversas técnicas metodológicas tendem a negar. Destroem, dessa forma, a auto-suficiência objetivista das ciências com base no positivismo;

(e) ambas estão referidas à práxis e mostram, no campo das Ciências Sociais, que seu domínio objetivo está preestruturado pela tradição e pelos percalços da história (MINAYO, 1996, p. 227).

Acrescido do exposto, a hermenêutica e a dialética juntas fazem com que o intérprete busque entender não só a fala, mas o texto e o depoimento “como resultado de um processo social (trabalho e dominação) e o processo de conhecimento (expresso em linguagem) ambos frutos de múltiplas determinações mas com significado específico”. Desta maneira, o texto expressa uma representação social da realidade que se mostra e se esconde na comunicação, onde autor e intérprete “são parte de um mesmo contexto ético-político e onde o acordo subsiste ao mesmo tempo que as tensões e perturbações sociais” (MINAYO, 1996, p. 227).

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“quanto mais organizado e simples nos parece um certo caminho, mais temos a impressão de que estamos errados”(GEERTZ, 2001a, p. 13).