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CAPÍTULO I UMA LENTE SOBRE A CULTURA, AS ORGANIZAÇÕES, A

1.1 A CULTURA: GENEALOGIAS E ANTECEDENTES

Oriunda do latim, a palavra cultura significava “o cuidado dispensado ao campo ou ao gado” e, nos fins do século XIII, era utilizada “para designar uma parcela de terra cultivada [...].” Já no começo do século XVI, indicava “uma ação, ou seja, o fato de cultivar a terra” e, na metade deste mesmo século, tomou uma

definição figurada, pouco conhecida à época, que denotava o trabalho para desenvolver uma faculdade (CUCHE, 2002, p. 19). Adentrando o século XIX, a palavra cultura “se enriqueceu com uma dimensão coletiva”, passando “a designar também um conjunto de caracteres próprios de uma comunidade, mas em um sentido geralmente vasto e impreciso” (CUCHE, op. cit., p. 29).

Entretanto, foram as teorias evolucionistas das Ciências Naturais de Jean- Baptiste Pierre Antoine de Monet, Cavaleiro de Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882) que exerceram grande influência no meio intelectual europeu do século XIX, no momento em que pensadores de outras áreas, como James Frazer, Henry Morgan Lewie e Tyler tomaram estes modelos e os utilizaram como base ao estudo das sociedades (ABBAGNANO, 2003).

Edward Burnett Tyler (1832-1917) foi o primeiro pensador a tentar sistematizar o estudo da cultura baseado na idéia evolucionista e, por isto, é considerado o pai da etnologia. Tyler definiu etnologicamente a cultura como sendo um conjunto que incluiria o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo ser humano como membro de uma dada sociedade (MELLO, 2004).

Contudo, para Kuper (2002, p. 86), baseado nas referências de Kroeber e Kluckhohn (1952, p. 147), foi Mattew Arnold, e não Tyler, o primeiro estudioso a expor sua concepção de cultura, sendo que, para Mello (2004), Saint-Simon, Augusto Comte, Herbert Spencer e Henry Maine podem ser citados também como precursores do evolucionismo cultural.

Sob a visão do mundo atual, podemos considerar, grosso modo, que o evolucionismo evidenciou preconceitos etnocêntricos, uma vez que seus representantes consideravam a sociedade européia como a mais evoluída e as demais, evidentemente, mais “primitivas”, o que alastrou o paradigma da civilização ocidental. Da mesma forma, a intenção de sistematizar as culturas num quadro evolutivo, segundo a lógica civilizatória européia, gerou questionamentos de outras linhas teóricas que sucederam o evolucionismo.

Nos últimos anos do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, tendo seu auge entre 1900 e 1930, os estudos antropológicos foram influenciados por uma reação teórica e metodológica ao evolucionismo: o difusionismo cultural conhecido também como historicismo. Porém, o difusionismo

não rejeitava totalmente os conceitos construídos no evolucionismo, uma vez que possuíam algumas bases em comum. Algumas destas aproximações são de que ambos os movimentos buscavam a explicação da cultura como um fenômeno universal e humano, que possuía, como variável, o tempo e um caráter dinâmico (MELLO, 2004).

O difusionismo comprometeu-se em tornar os métodos de pesquisa mais rigorosos e científicos, desenvolvendo intensamente a pesquisa de campo, através da etnografia. Do mesmo modo, contribuiu de duas maneiras para o progresso da humanidade. Por um lado, estimulou o crescimento da cultura como um todo e, por outro, enriqueceu “o conteúdo das culturas particulares, o que impulsionou, para frente e para cima, as sociedades portadoras dessas culturas” (LINTON, 1981, p. 311).

O alemão Franz Boas (1858-1942) foi o primeiro antropólogo a realizar pesquisas in situ observando profunda e detalhadamente as culturas primitivas, sendo o inventor da etnografia e da observação participante, método indutivo e intensivo de campo (CUCHE, 2002). Em “Os objetivos da pesquisa antropológica”, de 1932, texto proferido em uma conferência que realizou na American Association

for the Advancement of Science, Boas definiu os objetivos da pesquisa antropológica

como uma tentativa em busca da compreensão dos passos que tornaram o homem aquilo que ele é biológica, psicológica e culturalmente, deixando clara a importância da “história do desenvolvimento da forma corporal do homem, de suas funções fisiológicas, sua mente e sua cultura” (BOAS, 2005, p. 89).

O funcionalismo surgiu na década de 30, do século XX, e buscou novas formas explicativas à cultura. Para White (1978, p. 43), o funcionalismo via a sociedade como um organismo e os processos sociais como processos fisiológicos que deveriam satisfazer as exigências para manter o sistema em funcionamento. Deste modo, uma cultura não era simplesmente um organismo, mas um sistema.

Representante do funcionalismo, Malinowski pontuava que somente aqueles costumes que eram praticados pelas pessoas, aqueles que eram úteis, seriam os que continuariam existindo. Este pensador encontrou respaldo às suas respostas “na relação da organização social com as necessidades biológicas”, mesmo que este esquema estivesse mais restrito àquelas necessidades “que dizem respeito à subsistência e às concernentes ao casamento e à família; [...]”, visto que ocupam “a

maior parte da vida das sociedades mais simples” (MAIR, 1979, p. 41).

Malinowski rompeu as fronteiras entre as disciplinas ao estudar o homem do ponto de vista biológico e social e por incluir na análise cultural “o estudo das motivações psicológicas, dos comportamentos, o estudo dos sonhos e dos desejos do indivíduo” (LAPLANTINE, 2000, p. 82). Todavia, Malinowski, mesmo levando em consideração os aspectos biológicos nos estudos funcionais da cultura, “critica os usuais estudos de difusão como dissecções post-mortem de organismos que devíamos antes estudar na sua vitalidade actuante e em funcionamento” (BENEDICT, s/d, p. 63).

Com o objetivo de explicar o caráter funcional das diferenças culturais, Malinowski elaborou a teoria das necessidades, base de seu livro escrito em 1944, “Uma teoria científica da cultura”, em que “os elementos constitutivos de uma cultura teriam como satisfazer as necessidades essenciais do homem”, sendo a cultura a resposta funcional a estas necessidades. Desta maneira, “esta resposta se dá pela criação de ‘instituições’”, cujo conceito “designa as soluções coletivas (organizadas) às necessidades individuais” (CUCHE, 2002, p. 72). Para melhor efetivar o pensamento de que a cultura deve ser analisada proximamente e do seu interior, Malinowski sistematizou a observação participante, método etnográfico em que o pesquisador procura reviver nele próprio os sentimentos dos outros (LAPLANTINE, 2002).

O estudo da cultura no século XX foi também organizado por Roger Keesing (1974) e exposto por Laraia (2005), na forma de teorias que consideram a cultura como um sistema adaptativo e naquelas teorias idealistas de cultura.

A posição que avaliava a cultura como um sistema adaptativo reúne neo- evolucionistas7 como Leslie White, Sahlins, Harris, Carneiro, Rappaport, Vayda e outros, que apesar possuírem divergências, concordavam que: 1) as culturas eram sistemas de padrões de comportamento socialmente transmitidos, que serviriam para que as comunidades humanas fossem adaptadas aos seus embasamentos biológicos; 2) a mudança cultural, como um processo de adaptação, equivaleria à seleção natural, sendo que o homem deveria adaptar-se ao meio como forma de 7

Para Ribeiro (2000, p. 1), “Nos últimos anos, praticamente todos os antropólogos retomaram a perspectiva evolucionista, reformulada, agora, em termos explicitamente multilineares e descomprometida do caráter conjetural de muitos dos antigos ensaios sobre a origem de costumes e instituições”.

sobreviver; 3) o domínio mais adaptativo da cultura era constituído pela tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente ligada à produção, ocorrendo neste domínio as mudanças adaptativas. 4) o controle da população, da subsistência e da manutenção do ecossistema, entre outras, poderiam ser adaptados pelos componentes ideológicos dos sistemas culturais (KEESING, 1974 apud LARAIA, 2005).

Os idealistas da antropologia americana pensavam a cultura como “uma série de representações que moldavam a ação e informavam sobre os acontecimentos” (KUPER, 2002, p. 215). Para Keesing, as teorias encerravam três abordagens distintas de cultura: a cultura como um sistema cognitivo, a cultura como sistemas estruturais e a cultura como sistemas simbólicos8 (LARAIA, 2005).

A teoria idealista, que possuía preocupações cognitivas, interessava-se em realizar uma etnografia mais rigorosa voltada para “[...] apreender os princípios de classificação de um dos sistemas de organização do saber, aquele relacionado ao parentesco [...]”. O precursor desta nova abordagem, denominada etnosemântica ou antropologia cognitiva, foi Ward Goodenough, que sofreu influência da “lingüística estrutural descritiva norte-americana de caráter empiricista de Leonard Bloomfield e Zellig Harris, sendo seu trabalho baseado “nos aspectos racionais do comportamento humano, por ele denominado de aspectos denotativos ou cognitivos da cultura” (ALCÂNTARA et al., 1993, s/p).

A segunda abordagem da teoria idealista considerava a cultura como sistemas estruturais e tem em Lévi-Strauss seu principal representante (LARAIA, 2005). Estruturalismo referia-se à prática antropológica peculiar desenvolvida por Lévi-Strauss a partir de 1945. Fundava-se na idéia de que as formas culturais possuíam interesse pelos padrões que nelas estavam contidos e que após várias transformações passavam a representar “expressões de configurações básicas do pensamento humano” (LEACH, 1989, p. 228).

Para os estruturalistas, a linguagem constituía-se no “fundamento para as estruturas mais complexas que correspondem aos diferentes aspectos da cultura”. Assim, “tanto a linguagem como a cultura radicam ou são produtos de um ‘cérebro’ inconsciente, embora não reduza nem a cultura à linguagem nem a Antropologia à

8

Lingüística”. Este cérebro “procura estabelecer relações íntimas entre linguagem e cultura” e se esforça por estabelecer relações “entre dados culturais conscientes e infraestruturas mentais inconscientes” (ULLMANN, 1983, p. 23-24).

A semiologia desenvolvida por Ferdinand de Saussurre, baseada no estudo da linguagem como sistema de signos, e sua análise estrutural serviram de modelo a Lévi-Strauss, que passou a adotá-la na antropologia. Apesar dos movimentos lingüísticos utilizarem a concepção da língua como um sistema, Lévi-Strauss optou pelo uso do termo estrutura (MELLO, 1987), mesmo que este se referisse a um sistema: “[...] uma estrutura oferece um caráter de sistema” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 316).

Fundamentalmente, para Lévi-Strauss (2003, p. 315), “a noção de estrutura social não se referia à realidade empírica, mas aos modelos construídos em conformidade com esta”. Desta maneira, seria possível diferenciar estrutura social de relações sociais, “que são a matéria-prima empregada para a construção dos modelos que tornam manifesta a própria estrutura social”, uma vez que esta não poderia ficar restrita “ao conjunto das relações sociais, observáveis numa sociedade dada”. As pesquisas de estrutura seriam “um método suscetível de ser aplicado a diversos problemas etnológicos, e têm parentesco com formas de análise estrutural usadas em diferentes domínios” (LÉVI-STRAUSS, op. cit., p. 316).

Tais modelos poderiam ser conscientes ou inconscientes, de acordo com o nível onde funcionam, sendo que esta condição –consciente/inconsciente – não afetaria sua natureza. Os modelos conscientes teriam a função de perpetuar “as crenças e os usos, mais do que expor-lhes as causas”. Entretanto, tanto mais nítida fosse a estrutura aparente, quanto mais difícil seria apreender a estrutura profunda, pois “modelos conscientes e deformados” se interporiam como obstáculos entre o observador e seu objeto (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 318).

Para penetrar de forma mais incisiva no interior das sociedades e perceber suas estruturas mentais inconscientes, Lévi-Strauss separou as sociedades humanas em frias e quentes, apesar de enfatizar que não existiriam sociedades absolutamente quentes ou frias. As sociedades frias seriam aquelas pequenas, que possuíam pouca história, próximas do estado de natureza, com um contingente populacional pequeno e com um dinamismo cultural comprometido. Já as sociedades quentes seriam aquelas históricas, complexas, com um grande grau de

industrialização e distantes da ordem natural (LÉVI-STRAUSS, 1993).

Lévi-Strauss trabalhou com a questão do parentesco, enfatizando os casamentos em seu livro intitulado “Estruturas elementares do parentesco” publicado em 1976 (DAMATTA, 1987). Também se ocupou em estudar os mitos, admitindo sua relação com a organização social e outros aspectos da cultura de uma sociedade. Para ele, mesmo que o conteúdo de um mito fosse contingente, suas estruturas se reproduziriam “[...] com os mesmos caracteres e segundo os mesmos detalhes, nas diversas regiões do mundo” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 241).

A teoria idealista, que tratava da cultura como sistema simbólico, foi desenvolvida com maior ênfase nos Estados Unidos e tem como principais representantes Clifford Geertz e David Schneider (LARAIA, 2005). Esta abordagem está contemplada no Capítulo II deste estudo.