I. Texto: da tessitura à categorização do Fantástico
I.5. A hipérbole como expressão formalizadora do discurso fantástico
“Aglaia” relata o caso de envolvimento entre Colebra e Aglaia. Ambos
pretendem se casar. O casamento só ocorre mediante duas condições: o pai de
Aglaia permite a união se for com separação de bens e Colebra aceita casar-se
mediante o fato de não terem filhos. Na noite de núpcias Colebra rejeita qualquer
ideia de ter um filho já que este poderia deformar aquele corpo sensual pelo qual
ficava enlouquecido. “Tudo era festa e ruído na vida deles”. Até que, de repente,
Aglaia descobre após algumas noites de orgia que está grávida; então procura um
ginecologista na tentativa de abortar a criança. O médico se opõe em fazer o aborto,
o que leva o casal a buscarem em uma clínica o serviço onde, após abortar a
criança, Aglaia sofre de uma hemorragia interna. Ambos recorrem ao ginecologista,
ela na busca de curar-se, ele com medo de que ela venha a falecer e tenha que
voltar a sua vida medíocre, sem status social, sem dinheiro, sem condições de um
trabalho leve e rendoso.
Aglaia, mesmo tomando anticoncepcionais, engravida novamente. Após ter a
criança, com medo de engravidar mais uma vez, ela troca a marca do anovulatório,
mas em vão, Aglaia engravida e a partir de então começa a engravidar
seguidamente.
Colebra e Aglaia, no desespero, optam por não terem mais relação sexual,
porém mesmo assim, Aglaia continua engravidando constantemente. Colebra nem
poderia desconfiar de sua esposa, pois todos os filhos eram parecidos com ele. Os
filhos começaram a vir em ninhadas, três, quatro, cinco; e o tempo de gestação
passou a ser hiperbolicamente curto: seis, três, dois meses e até vinte dias após a
fecundação.
O casal chegou a uma conclusão de que a única solução seria o desquite. A
ideia partiu dela. Colebra aceita a proposta mediante oferta de uma pensão bastante
generosa. No final do conto Colebra pega suas malas e ao sair, Aglaia, em meio a
um trabalho de parto, pede a Colebra que não a abandone. Colebra pega as malas e
sai, no caminho chamou a parteira.
O conto “Aglaia” de Murilo Rubião é um exemplo de texto fantástico que se
articula por meio do uso da hipérbole. Assim como em “Bárbara” e em “O edifício” a
hipérbole percorre todo o texto levando o leitor a um desequilíbrio, a um estado de
perturbação diante da leitura.
A hipérbole (gr. Hyperbolê) significa “excesso” e aplica-se a qualquer
formulação excessiva ao que se pode supor a respeito da intenção comunicativa real
do locutor. A hipérbole pode aumentar ou diminuir por excesso e, segundo
Charaudeau e Maingueneau (2006) não tem a finalidade de enganar, mas de levar à
própria verdade, e de fixar, pelo que é dito de inacreditável, aquilo que é preciso
realmente crer.
Partindo desta definição, o conto “Aglaia” apresenta os dois processos da
hipérbole já que temos o aumento excessivo do número de filhos que nascem em
ninhadas e que logo no início do conto nos é relatado que para caberem todos os
filhos de Colebra num quarto de hotel é necessário que um suba sobre os ombros
do outro, preenchendo todo o espaço do quarto a ponto de se apertarem até
ouvir-se trincares de ossos e cartilagens.
Ocorre também a hipérbole por diminuição no que tange ao período de
gestação que, inicialmente era de nove meses passando para seis, quatro, dois
meses e até vinte dias. Este processo hiperbólico por diminuição recria a hipérbole
por aumento: ao diminuir hiperbolicamente o tempo de gestação ocorre o aumento
hiperbólico das vezes em que Aglaia engravida.
Quanto a essas modalidades de hipérbole, em exceder por aumento ou por
diminuição, Barthes em L’ancienne, rétorique/aide – memoire (1970) as determina
pelas terminologias “auxesis” (aquela que exagera por aumento) e “tapinosis”
(aquela que exagera por diminuição).
Segundo Schwartz (1981) a hipérbole se manifesta na poética de Murilo
Rubião como figura-chave que desvenda os mecanismos fantásticos da narrativa.
Isso ocorre devido à metaforização das hipérboles.
As hipérboles, na globalidade do texto, se convertem em metáforas, de modo
a atribuir sentido ao texto. É o que Bozzetto chama de “estratégia metafórica”, sendo
que, “La estrategia metafórica no supone el uso exclusivo de la metáfora, por
supuesto. Esto significa que la obra tiene como intención fabricar una metáfora del
mundo referencial, un analogon, una transposición”.
21(BOZZETTO, 2001, p.225).
21 A estratégia metafórica não supõe o uso exclusivo da metáfora, seguramente. Isto significa que a obra tem como intenção fabricar uma metáfora do mundo referencial, um análogo, uma transposição. (Tradução nossa)
Partindo desse pressuposto, podemos perceber em “Aglaia” uma metanarrativa,
onde o texto relata seu próprio processo de criação.
Essa leitura já se faz possível a partir da própria epígrafe, sendo esta um
excerto retirado do Livro dos “Gênesis”, termo que em grego (Γένεσις) significa
"origem", "nascimento", "criação", o que alude ao processo de criação literária. Essa
epígrafe é uma das poucas que se relaciona diretamente com o texto na obra de
Murilo Rubião.
Outra passagem que se refere ao processo de criação está presente logo no
início do conto. Colebra ao abrir um envelope recebido de sua ex-esposa, Aglaia,
deixa cair algumas fotos, ao juntá-las explica a uma mulher que o acompanha que
são seus filhos, “os da última safra” (p.187 – Grifo nosso). Esta hipérbole se
metaforiza de modo a referir-se à criação dos textos literários, já que, o termo
“safra”, figurativamente significa “trabalho”, “produção”, estes termos podem
respectivamente significar qualquer obra e/ou a(s) obra(s) de um escritor, de um
artista, ou de uma escola, ou de um período.
Sendo um processo de criação de uma escola, ou de um período, podemos
extrapolar os limites da simples criação literária e determinar de que se trata da
criação literária fantástica, já que temos uma menção no relato que metaforicamente
diz respeito ao discurso utilizado, no caso o uso da hipérbole e seu processo de
metaforização que gera o discurso fantástico, alheio ao discurso científico ou
conceitual: “Os amigos pediam-lhes calma, os médicos insistiam que todo um
processo de fecundação fora violentamente alterado e a medicina não podia
explicar o inexplicável.” (p.193 – Grifo nosso).
Vale lembrar que o termo “fecundação” provém de “fecundar”, que significa:
tornar capaz de conceber ou gerar, assim, toda a capacidade de gerar, de conceber
a realidade, fora violentamente alterado, toda a forma de reprodução do real, todo o
universo mimético foi subvertido pelo texto fantástico. Já que, o fantástico
Nacido en medio del universo mimético, y sirviéndose de él para
inscribir sus pasos, tiende a subvertirlo, a cuestionar sus certezas. El
texto fantástico subvierte los mecanismos y los presupuestos del
texto mimético, con fin de dejar espacio para lo impensable, que
intenta representar de una manera ambigua, de permitir por contra
pensar lo no representable. Así pues, se erige como el lugar y el
medio para una crítica del universo de la representación, instaurando
por eso mismo un vértigo de la razón desconcertada. Pero no en el
marco de un discurso subversivo, sino mediante la puesta en práctica
de la subversión de todo discurso fiable y por la instalación, en los
“márgenes” de lo pensable y de lo representable, de una efectiva
alteridad.
22(BOZZETTO, 2001, p. 224)
Tal subversão do universo mimético e tal questionamento às certezas do
mundo real só podem ocorrer mediante a subversão dos mecanismos textuais. Esta
subversão se dá pelo discurso fantástico, configurado pelo uso das hipérboles e das
estratégias metafóricas, de modo a manter esse discurso alheio ao discurso do texto
mimético, pois, a abertura de espaço para o impensável, para o indizível se dá
somente pela linguagem fantástica, sendo a linguagem comum e a linguagem
científica, incapazes de possibilitar essa abertura, de dizer o indizível, de explicar o
inexplicável: “a medicina não podia explicar o inexplicável.” (p.193). Entendamos
“medicina” como metáfora de ciência, de razão, representando a linguagem comum
ou científica, o que confirma nossa afirmação.
Esta ideia de subversão do processo de fecundação está presente também
no próprio nome do personagem Colebra, marido de Aglaia. Colebra parece provir
de “culebra”, termo espanhol que em português traduz-se como “cobra”, “serpente”.
Segundo Chevalier,
A serpente não apresenta, portanto, um arquétipo, mas um
complexo de arquétipos [...] todas as serpentes possíveis formam,
juntas, uma única multiplicidade primordial, uma Coisa primordial
indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e
renascer. Mas o que seria essa Coisa primordial senão a vida na sua
latência ou, como diz Keyserling, a camada mais profunda da vida?
[...] A vida do submundo tem, justamente, de se refletir na
consciência diurna sob a forma de uma serpente, acrescenta ele, e
especifica: os caldeus usavam a mesma palavra para vida e
serpente. René Guénon faz a mesma observação: O simbolismo da
serpente está efetivamente ligado à própria idéia de vida; em árabe,
22
Nascido no meio do universo mimético, e servindo-se dele para inscrever seus passos, tende a subverter-lo, a questionar suas certezas. O texto fantástico subverte os mecanismos e os pressupostos do texto mimético, a fim de deixar espaço ao impensável, que tenta representar de uma maneira ambígua, de permitir por contra pensar o não representável. Assim pois, se erige como o lugar e o meio para uma crítica do universo da representação, instaurando por isso mesmo uma vertigem da razão desconcertada. Mas não no marco de um discurso subversivo, e sim mediante o fato de pôr-se em prática da subversão de todo discurso fiel e pela instalação, nas “margens” do pensável e do representável, de uma efetiva alteridade. (Nossa Tradução)
a serpente é el-hayyah e a vida é el-hayat [...] (CHEVALIER, 2007,
p. 815)
Partindo dessa simbologia, afirma-se que Colebra alude à vida, ao mundo, à
realidade, elementos que fecundam o fazer literário, já que, a serpente, segundo
Chevalier, representa a fecundidade:
A universalidade das tradições que fazem da serpente o
mestre das mulheres, por representar a fecundidade, foi
abundantemente demonstrada por Eliade, Krappe e por etnólogos
especializados [...] ou como Baumann
23, que ressalta que na África
[...] os tcho-kwes (Angola) colocam uma serpente de madeira sob o
leito nupcial para assegurar a fecundação da mulher. [...]
Na Índia, as mulheres que desejam ter um filho adotam uma
naja. Os tupis-guaranis, no Brasil, tornavam fecundas as mulheres
estéreis batendo em seus quadris com uma cobra. (CHEVALIER,
2001, p.822)
Sendo a representação da fecundidade, Colebra alude ao real, que gera a
produção, o trabalho literário, pois este nada mais é do que a própria representação
da realidade circundante. É válido pensar aqui, que ao tratar de uma produção
fantástica, não referimos, apenas, à realidade concreta, mas, também, à realidade
outra, àquela que nos escapa do plano sensível, indizível ou irrepresentável por
meio da linguagem comum ou científica. Chevalier afirma que para o psicanalista
Carl Gustav Jung
24a “serpente é um vertebrado que encarna a psique inferior, o
psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso”. (CHEVALIER, 2001,
p.814)
Segundo Jung, sob a imagem do Uroboro, a serpente, que come a sua
própria cauda, é uma representação muito eficaz da integração e da assimilação do
oposto. É voltado para esta concepção que Jorge Schwartz, em seu livro Murilo
23 Os nomes citados por Chevalier refere-se:
BAUMANN H. e WESTERMANN D.. Les Peuples et les civilisations de l’Afrique. Paris, 1948. ELIADE, Mircea.Traité d’histoire dês religions. Paris,1964
KRAPPE, Alexandre H.. La genèse des mythes. Paris, 1952
(Estas referências foram retiradas da própria Bibliografia de Chevalier, onde nenhuma apresenta a editora responsável pela edição)