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A hipérbole como expressão formalizadora do discurso fantástico

No documento O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO: (páginas 46-54)

I. Texto: da tessitura à categorização do Fantástico

I.5. A hipérbole como expressão formalizadora do discurso fantástico

“Aglaia” relata o caso de envolvimento entre Colebra e Aglaia. Ambos

pretendem se casar. O casamento só ocorre mediante duas condições: o pai de

Aglaia permite a união se for com separação de bens e Colebra aceita casar-se

mediante o fato de não terem filhos. Na noite de núpcias Colebra rejeita qualquer

ideia de ter um filho já que este poderia deformar aquele corpo sensual pelo qual

ficava enlouquecido. “Tudo era festa e ruído na vida deles”. Até que, de repente,

Aglaia descobre após algumas noites de orgia que está grávida; então procura um

ginecologista na tentativa de abortar a criança. O médico se opõe em fazer o aborto,

o que leva o casal a buscarem em uma clínica o serviço onde, após abortar a

criança, Aglaia sofre de uma hemorragia interna. Ambos recorrem ao ginecologista,

ela na busca de curar-se, ele com medo de que ela venha a falecer e tenha que

voltar a sua vida medíocre, sem status social, sem dinheiro, sem condições de um

trabalho leve e rendoso.

Aglaia, mesmo tomando anticoncepcionais, engravida novamente. Após ter a

criança, com medo de engravidar mais uma vez, ela troca a marca do anovulatório,

mas em vão, Aglaia engravida e a partir de então começa a engravidar

seguidamente.

Colebra e Aglaia, no desespero, optam por não terem mais relação sexual,

porém mesmo assim, Aglaia continua engravidando constantemente. Colebra nem

poderia desconfiar de sua esposa, pois todos os filhos eram parecidos com ele. Os

filhos começaram a vir em ninhadas, três, quatro, cinco; e o tempo de gestação

passou a ser hiperbolicamente curto: seis, três, dois meses e até vinte dias após a

fecundação.

O casal chegou a uma conclusão de que a única solução seria o desquite. A

ideia partiu dela. Colebra aceita a proposta mediante oferta de uma pensão bastante

generosa. No final do conto Colebra pega suas malas e ao sair, Aglaia, em meio a

um trabalho de parto, pede a Colebra que não a abandone. Colebra pega as malas e

sai, no caminho chamou a parteira.

O conto “Aglaia” de Murilo Rubião é um exemplo de texto fantástico que se

articula por meio do uso da hipérbole. Assim como em “Bárbara” e em “O edifício” a

hipérbole percorre todo o texto levando o leitor a um desequilíbrio, a um estado de

perturbação diante da leitura.

A hipérbole (gr. Hyperbolê) significa “excesso” e aplica-se a qualquer

formulação excessiva ao que se pode supor a respeito da intenção comunicativa real

do locutor. A hipérbole pode aumentar ou diminuir por excesso e, segundo

Charaudeau e Maingueneau (2006) não tem a finalidade de enganar, mas de levar à

própria verdade, e de fixar, pelo que é dito de inacreditável, aquilo que é preciso

realmente crer.

Partindo desta definição, o conto “Aglaia” apresenta os dois processos da

hipérbole já que temos o aumento excessivo do número de filhos que nascem em

ninhadas e que logo no início do conto nos é relatado que para caberem todos os

filhos de Colebra num quarto de hotel é necessário que um suba sobre os ombros

do outro, preenchendo todo o espaço do quarto a ponto de se apertarem até

ouvir-se trincares de ossos e cartilagens.

Ocorre também a hipérbole por diminuição no que tange ao período de

gestação que, inicialmente era de nove meses passando para seis, quatro, dois

meses e até vinte dias. Este processo hiperbólico por diminuição recria a hipérbole

por aumento: ao diminuir hiperbolicamente o tempo de gestação ocorre o aumento

hiperbólico das vezes em que Aglaia engravida.

Quanto a essas modalidades de hipérbole, em exceder por aumento ou por

diminuição, Barthes em L’ancienne, rétorique/aide – memoire (1970) as determina

pelas terminologias “auxesis” (aquela que exagera por aumento) e “tapinosis”

(aquela que exagera por diminuição).

Segundo Schwartz (1981) a hipérbole se manifesta na poética de Murilo

Rubião como figura-chave que desvenda os mecanismos fantásticos da narrativa.

Isso ocorre devido à metaforização das hipérboles.

As hipérboles, na globalidade do texto, se convertem em metáforas, de modo

a atribuir sentido ao texto. É o que Bozzetto chama de “estratégia metafórica”, sendo

que, “La estrategia metafórica no supone el uso exclusivo de la metáfora, por

supuesto. Esto significa que la obra tiene como intención fabricar una metáfora del

mundo referencial, un analogon, una transposición”.

21

(BOZZETTO, 2001, p.225).

21 A estratégia metafórica não supõe o uso exclusivo da metáfora, seguramente. Isto significa que a obra tem como intenção fabricar uma metáfora do mundo referencial, um análogo, uma transposição. (Tradução nossa)

Partindo desse pressuposto, podemos perceber em “Aglaia” uma metanarrativa,

onde o texto relata seu próprio processo de criação.

Essa leitura já se faz possível a partir da própria epígrafe, sendo esta um

excerto retirado do Livro dos “Gênesis”, termo que em grego (Γένεσις) significa

"origem", "nascimento", "criação", o que alude ao processo de criação literária. Essa

epígrafe é uma das poucas que se relaciona diretamente com o texto na obra de

Murilo Rubião.

Outra passagem que se refere ao processo de criação está presente logo no

início do conto. Colebra ao abrir um envelope recebido de sua ex-esposa, Aglaia,

deixa cair algumas fotos, ao juntá-las explica a uma mulher que o acompanha que

são seus filhos, “os da última safra” (p.187 – Grifo nosso). Esta hipérbole se

metaforiza de modo a referir-se à criação dos textos literários, já que, o termo

“safra”, figurativamente significa “trabalho”, “produção”, estes termos podem

respectivamente significar qualquer obra e/ou a(s) obra(s) de um escritor, de um

artista, ou de uma escola, ou de um período.

Sendo um processo de criação de uma escola, ou de um período, podemos

extrapolar os limites da simples criação literária e determinar de que se trata da

criação literária fantástica, já que temos uma menção no relato que metaforicamente

diz respeito ao discurso utilizado, no caso o uso da hipérbole e seu processo de

metaforização que gera o discurso fantástico, alheio ao discurso científico ou

conceitual: “Os amigos pediam-lhes calma, os médicos insistiam que todo um

processo de fecundação fora violentamente alterado e a medicina não podia

explicar o inexplicável.” (p.193 – Grifo nosso).

Vale lembrar que o termo “fecundação” provém de “fecundar”, que significa:

tornar capaz de conceber ou gerar, assim, toda a capacidade de gerar, de conceber

a realidade, fora violentamente alterado, toda a forma de reprodução do real, todo o

universo mimético foi subvertido pelo texto fantástico. Já que, o fantástico

Nacido en medio del universo mimético, y sirviéndose de él para

inscribir sus pasos, tiende a subvertirlo, a cuestionar sus certezas. El

texto fantástico subvierte los mecanismos y los presupuestos del

texto mimético, con fin de dejar espacio para lo impensable, que

intenta representar de una manera ambigua, de permitir por contra

pensar lo no representable. Así pues, se erige como el lugar y el

medio para una crítica del universo de la representación, instaurando

por eso mismo un vértigo de la razón desconcertada. Pero no en el

marco de un discurso subversivo, sino mediante la puesta en práctica

de la subversión de todo discurso fiable y por la instalación, en los

“márgenes” de lo pensable y de lo representable, de una efectiva

alteridad.

22

(BOZZETTO, 2001, p. 224)

Tal subversão do universo mimético e tal questionamento às certezas do

mundo real só podem ocorrer mediante a subversão dos mecanismos textuais. Esta

subversão se dá pelo discurso fantástico, configurado pelo uso das hipérboles e das

estratégias metafóricas, de modo a manter esse discurso alheio ao discurso do texto

mimético, pois, a abertura de espaço para o impensável, para o indizível se dá

somente pela linguagem fantástica, sendo a linguagem comum e a linguagem

científica, incapazes de possibilitar essa abertura, de dizer o indizível, de explicar o

inexplicável: “a medicina não podia explicar o inexplicável.” (p.193). Entendamos

“medicina” como metáfora de ciência, de razão, representando a linguagem comum

ou científica, o que confirma nossa afirmação.

Esta ideia de subversão do processo de fecundação está presente também

no próprio nome do personagem Colebra, marido de Aglaia. Colebra parece provir

de “culebra”, termo espanhol que em português traduz-se como “cobra”, “serpente”.

Segundo Chevalier,

A serpente não apresenta, portanto, um arquétipo, mas um

complexo de arquétipos [...] todas as serpentes possíveis formam,

juntas, uma única multiplicidade primordial, uma Coisa primordial

indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e

renascer. Mas o que seria essa Coisa primordial senão a vida na sua

latência ou, como diz Keyserling, a camada mais profunda da vida?

[...] A vida do submundo tem, justamente, de se refletir na

consciência diurna sob a forma de uma serpente, acrescenta ele, e

especifica: os caldeus usavam a mesma palavra para vida e

serpente. René Guénon faz a mesma observação: O simbolismo da

serpente está efetivamente ligado à própria idéia de vida; em árabe,

22

Nascido no meio do universo mimético, e servindo-se dele para inscrever seus passos, tende a subverter-lo, a questionar suas certezas. O texto fantástico subverte os mecanismos e os pressupostos do texto mimético, a fim de deixar espaço ao impensável, que tenta representar de uma maneira ambígua, de permitir por contra pensar o não representável. Assim pois, se erige como o lugar e o meio para uma crítica do universo da representação, instaurando por isso mesmo uma vertigem da razão desconcertada. Mas não no marco de um discurso subversivo, e sim mediante o fato de pôr-se em prática da subversão de todo discurso fiel e pela instalação, nas “margens” do pensável e do representável, de uma efetiva alteridade. (Nossa Tradução)

a serpente é el-hayyah e a vida é el-hayat [...] (CHEVALIER, 2007,

p. 815)

Partindo dessa simbologia, afirma-se que Colebra alude à vida, ao mundo, à

realidade, elementos que fecundam o fazer literário, já que, a serpente, segundo

Chevalier, representa a fecundidade:

A universalidade das tradições que fazem da serpente o

mestre das mulheres, por representar a fecundidade, foi

abundantemente demonstrada por Eliade, Krappe e por etnólogos

especializados [...] ou como Baumann

23

, que ressalta que na África

[...] os tcho-kwes (Angola) colocam uma serpente de madeira sob o

leito nupcial para assegurar a fecundação da mulher. [...]

Na Índia, as mulheres que desejam ter um filho adotam uma

naja. Os tupis-guaranis, no Brasil, tornavam fecundas as mulheres

estéreis batendo em seus quadris com uma cobra. (CHEVALIER,

2001, p.822)

Sendo a representação da fecundidade, Colebra alude ao real, que gera a

produção, o trabalho literário, pois este nada mais é do que a própria representação

da realidade circundante. É válido pensar aqui, que ao tratar de uma produção

fantástica, não referimos, apenas, à realidade concreta, mas, também, à realidade

outra, àquela que nos escapa do plano sensível, indizível ou irrepresentável por

meio da linguagem comum ou científica. Chevalier afirma que para o psicanalista

Carl Gustav Jung

24

a “serpente é um vertebrado que encarna a psique inferior, o

psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso”. (CHEVALIER, 2001,

p.814)

Segundo Jung, sob a imagem do Uroboro, a serpente, que come a sua

própria cauda, é uma representação muito eficaz da integração e da assimilação do

oposto. É voltado para esta concepção que Jorge Schwartz, em seu livro Murilo

23 Os nomes citados por Chevalier refere-se:

BAUMANN H. e WESTERMANN D.. Les Peuples et les civilisations de l’Afrique. Paris, 1948. ELIADE, Mircea.Traité d’histoire dês religions. Paris,1964

KRAPPE, Alexandre H.. La genèse des mythes. Paris, 1952

(Estas referências foram retiradas da própria Bibliografia de Chevalier, onde nenhuma apresenta a editora responsável pela edição)

Rubião: A poética do Uroboro (1981), afirma ser o uroboro uma metáfora do tempo e

do fazer muriliano, unindo as duas realidades de modo que não podemos

dissocia-las, em um movimento circular e infinito como a própria imagem.

Portanto a serpente, a cobra é uma representação das duas realidades, a

realidade empírica e a realidade outra, intangível e até mesmo empírea. Assim, na

imagem de Colebra, “cobra” - “serpente”, encontra-se a ideia de ambivalência, do

duplo:

Ela é enigmática, secreta [...]. Ela brinca com os sexos como

com os opostos; é fêmea e macho, gêmea em si mesma [...].

No plano humano é o símbolo duplo da alma e da libido [...] a

serpente, em si, não é boa ou má, mas que possui duas valências

[...]

Mencionamos a ambivalência sexual da serpente. Esta se

traduz, sob este aspecto do seu simbolismo, pelo fato de ser ao

mesmo tempo matriz e falo. (CHEVALIER, 2001, 815 – 822)

Esta imagem da união sexual em si mesma torna a serpente autofecundadora

permanente, como ocorre no conto; mesmo sem haver relações sexuais entre

Colebra e Aglaia, o processo de fecundação permanecia, Aglaia continuava a

engravidar-se em um processo de autofecundação.

A imagem ambivalente da serpente confirma seu simbolismo representante

das duas realidades circundantes, realidades que circulam infinitamente em torno do

homem, que, ao mesclarem-se, tornam-se absurdas, porém, fecundadoras em um

processo de criação mimético.

Já o nome Aglaia é de origem mitológica, sendo esta uma das três Graças ou,

chamadas também, Cárites. Aglaia, Eufrosina e Tália são filhas de Zeus e de

Eurínome. Aglaia era a mais jovem e bela das três Cárites, seu nome significa

“esplendorosa” e simbolizava a inteligência, o poder criativo e a intuição do intelecto.

Nos tempos medievais, as três Cárites representavam as três artes liberais

básicas nas universidades: gramática, lógica e retórica, o chamado Trivium, nome

dado ao conjunto das três disciplinas.

Partindo desse conceito, Aglaia representa a criação literária fecundada pela

realidade ambivalente, a empírica e a empírea. Porém, ressalta-se que essa criação

literária dá-se mediante a influência do Trivium, alicerçada pelas artes que confere

ao fantástico como modo narrativo. Assim temos nesse conto em questão, no plano

da retórica o uso da hipérbole que se metaforiza na globalidade do texto,

convergindo para uma lógica interna da narrativa.

Sendo o conto uma metanarrativa, retomamos a epígrafe “Eu multiplicarei os

teus trabalhos e o teus partos – Gênesis, III, 16” como sendo uma premonição em

relação ao processo de escrita/leitura do conto fantástico, visto que, segundo

Audemaro Taranto Goulart,

[...] no texto de Aglaia, o termo trabalho é bastante expressivo, pois

carrega consigo as noções de sacrifício, de cansaço e de esforço, o

que é ainda intensificado pela associação com a palavra parto, já de

si identificadora das noções citadas, e pelo caráter ainda mais

intensificador do significante multiplicarei. (GOULART, 1995, p.92)

A advertência presente na epígrafe antecipa a difícil condição da criação

literária e consequentemente a do leitor frente ao texto muriliano, o que nos é

confirmado pelo mesmo autor ao dizer:

Em termos da elaboração do texto literário, pode-se dizer que esse é

o momento em que o diálogo entre sujeito da escritura/sujeito da

leitura revela a impossibilidade de o criador da obra ser o dono

absoluto dela, pela simples razão de que ele não está sozinho no

processo. Quer dizer, a presença do leitor é absolutamente

indispensável para que o texto se estabeleça. Por essa razão, o

produtor do texto deve ter o desprendimento de aceitar as várias

leituras que se fazem dele. (GOULART, 1995, p.79)

Partindo da questão da recepção, como nos é apresentado anteriormente por

Goulart, podemos entender também que Colebra seria a representação do próprio

texto fantástico e Aglaia a representação do processo de leitura/leitor. Isto, porque

Colebra representa essa ambivalência da realidade, sendo capaz de gerar a

ambiguidade no texto como nos foi apresentado por Furtado no tópico “O texto

fantático” deste trabalho.

Aglaia como símbolo da inteligência, do poder criativo e da intuição do

intelecto equivale ao trabalho do leitor frente ao processo de leitura, já que o leitor,

fecundado pela ambiguidade do texto fantástico, é levado a gerar inúmeros sentidos,

a parir inúmeras interpretações a partir das hipérboles e das próprias metáforas

presentes no discurso fantástico.

Conclui-se que o discurso fantástico, em especial o conto “Aglaia”, se apoia

fortemente na figura da hipérbole e esta passa por um processo de metaforização

(estratégia metafórica) gerando ambiguidades no texto e consequentemente,

possibilitando ao leitor inúmeras leituras, visto que nesta análise do conto em

questão, apontamos uma leitura sobre o próprio processo de criação do conto

fantástico, como também, uma leitura sobre a recepção dessa narrativa ou ainda

podemos encontrar outras leituras, como por exemplo, a de Goulart em seu livro O

conto fantástico de Murilo Rubião (1995), onde afirma que o conto é uma

representação da hýbris, espécie de presunção ou vaidade espiritual, que faz o herói

esquecer a sua impotência. A personagem carregada de sentimentos prepotentes a

impedem de reconhecer suas limitações, como um ser inferior aos poderes do

destino ou dos deuses. Isto porque, para Goulart, tanto Colebra quanto Aglaia, nas

suas prepotências, lutam contra uma ordem natural da união entre um homem e

uma mulher: o nascimento dos filhos. Esta prepotência diante das forças divinas

torna-se uma afronta a ponto de serem castigados pelos inúmeros partos, sendo

forçados a se separarem ao final. Este castigo está claro no tom de advertência

presente na epígrafe do conto.

Destarte, nota-se que, segundo Schwartz (1981), a hipérbole como forma de

expressão formaliza o conteúdo do conto, havendo um imbricamento entre o nível

retórico e o seu correspondente semântico, acarretando o efeito ambíguo no texto e,

consequentemente, metafórico, o que leva o leitor a ter múltiplas visões sobre o

texto a ponto de sentir uma vertigem frente a suas interpretações.

No documento O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO: (páginas 46-54)

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