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O leitor de Murilo Rubião: do implícito ao real

No documento O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO: (páginas 55-63)

II. Leitor: o elo entre texto e leitura

II.1. O leitor de Murilo Rubião: do implícito ao real

Ler é uma atividade de construção dos sentidos de um texto; é muito mais

que decodificar. É um processo complexo no qual se produzem trocas entre texto e

leitor, e este termina modificado.

O leitor coloca em jogo conhecimentos e operações de diferentes tipos sobre

a linguagem (as palavras, as orações, os textos, o discurso) e sobre o mundo e os

sistemas de avaliação e interpretação do universo referencial. A estas capacidades

de índole linguística e discursiva, cultural e ideológica somam-se outras que indicam

quais desses conhecimentos e operações devem ser postos em funcionamento, de

acordo com seus objetivos e a situação de leitura.

Destarte, o leitor passa a ocupar um lugar vital nos estudos das obras

literárias pelo fato de se fazer agente sujeito do processo de leitura, desembocando

na chamada “teoria da recepção”, ou como “estética da recepção”, inaugurada por

Hans Robert Jauss em 1967 e que teve outros seguidores, dentre os quais damos

destaque a Wolfgang Iser, autor de O ato de ler (1976). Para este, o que é válido é

ver como um texto tem significado para o leitor, de modo que o significado é visto

como resultado de uma interação entre o texto e o leitor.

Ao examinar a interação entre texto e leitor, Iser verificou as

qualidades do texto, que o fazem legível, ou que influenciam nossa

leitura, e verificou também aquelas características do processo de

leitura essenciais para a compreensão do texto. (SAMUEL, 2005, p.

119-120).

Há uma atualização do texto na mente do leitor, preenchendo espaços em

branco, aberturas ou indeterminações, como afirma Umberto Eco em sua obra

Lector in fabula:

Mas o que devemos dizer já é que um texto postula o próprio

destinatário como condição indispensável não só da própria

capacidade concreta de comunicação, mas também da própria

potencialidade significativa. Em outros termos, um texto é emitido a

alguém que o atualize – embora não se espere (ou não se queira)

que esse alguém exista concreta e empiricamente. (ECO, 2004,

p.37)

É preciso ressaltar neste momento que, por sua familiaridade com os vazios,

com as indeterminações, o texto muriliano permite uma multiplicidade de

comunicações, o que desemboca em uma problemática apontada por Costa Lima

em relação a qualquer texto de ficção: “...perante esta multiplicidade, como declarar

que algumas das interpretações são corretas e outras meros produtos de projeção

do leitor?” (2011, p.52). A resposta a essa questão é mais complexa do que

possamos imaginar, porém traçaremos, ao longo deste estudo, algumas noções e

orientações a respeito do leitor e do processo de leitura frente a essa literatura tão

particular em sua estrutura narrativa.

O que se pode adiantar é que diante do texto de Murilo Rubião, o leitor é livre

para questionar, todo momento, se a formação de sentido que está executando é

adequada à leitura que está realizando. Esse processo de questionamento ocorre

pelo fato do texto abrir-se para uma multiplicidade de leituras. Sendo assim, é por

meio dessa assimetria entre texto e leitor que se dá lugar ao campo comum de uma

situação comunicacional, onde ocorrerá um processo de interação no qual possibilita

a entrada do leitor a fim testar seu horizonte de expectativas, de “pôr em prova sua

capacidade de preencher o indeterminado com um determinável – isto é, uma

constituição de sentido” (COSTA LIMA, 2011, p. 52).

Essa entrada do leitor no texto dá-se mediante um processo comunicacional

gerado pela estrutura do texto, visto que este oferecerá ao leitor as chaves para que

possa adentrar o seu campo discursivo e a partir de então confrontar suas

premissas com o dito pelo texto, evidenciando a “distinção entre a pura recepção

projetiva, isto é, a leitura condenada, e a leitura constitutiva de um sentido

apropriado” (COSTA LIMA, 2011, p. 55).

Se o texto se abre para essa liberdade do leitor confrontar suas premissas

com o dito pelo texto, então, é notória a necessidade de mudança de postura do

leitor em relação à literatura neofantástica, já que o fantástico do século XIX,

conforme definido por Todorov, visava um leitor implícito, ou seja, um leitor que

deveria reagir tão qual o esperado pelo autor, para o entendimento de sua ideia.

Todorov afirma que o fantástico implica uma interação do leitor no mundo das

personagens, ou seja, um leitor implicado no texto:

É necessário desde já esclarecer que, assim falando, temos em vista

não este ou aquele leitor particular, real, mas uma “função” de leitor,

implícita no texto (do mesmo modo que nele acha-se implícita a

noção do narrador). A percepção desse leitor implícito está inscrita

no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das

personagens. (TODOROV, 2004, p. 37).

Diante dessa “função” do leitor, Todorov adverte que quando o leitor

abandona o mundo das personagens e retorna para sua ação própria, ou seja, a de

um leitor, um perigo ameaça o fantástico no que tange ao nível da interpretação do

texto.

Para Todorov a existência do fantástico está sujeita a três condições.

Primeiramente o texto tem de obrigar o leitor a considerar o mundo das personagens

como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre duas explicações, uma natural e

outra sobrenatural, dos acontecimentos relatados. Em seguida, esta hesitação deve

também ser experimentada por uma personagem, assim a hesitação estará

representada na obra. E por terceiro, é importante que o leitor assuma certa atitude

para com o texto: “ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a

interpretação ‘poética’”. (TODOROV, 2004, p. 39).

O que é valido lembrar é que estas condições, apresentadas pelo teórico

búlgaro, referem-se à definição de fantástico relativo aos textos do século XIX, e que

as narrativas do século XX, divergem de seu conceito, apontando para uma

evolução no gênero.

A literatura fantástica, ela mesma, que subverteu ao longo de todas

as suas páginas, as categorizações lingüísticas, recebeu com isto um

golpe fatal; mas desta morte, deste suicídio nasceu uma nova

literatura. Ora, não seria presunçoso demais afirmar que a literatura

do século XX é, num certo sentido, mais “literatura” que qualquer

outra. Isto não deve ser tomado evidentemente por um juízo de valor:

é mesmo possível que, precisamente por este fato, sua qualidade se

encontre diminuída. (TODOROV, 2004, p. 177)

Deste modo, é correto afirmar que o gênero fantástico sofreu alterações em

sua estrutura, partindo para definições divergentes à apresentada por Todorov,

como visto no capítulo anterior.

Se é notório esse avanço conceitual do gênero – no qual tomamos posições

diferentes frente ao fantástico, a ponto de nomeá-lo como neofantástico, a que se

devido ao desvio de sua caracterização que antes apontava para uma hesitação do

leitor e agora foca-se na construção textual, sendo o fantástico um fenômeno da

linguagem – então é cabível pensar também em uma evolução da postura do leitor

frente a essa literatura, que talvez por falta de um termo melhor, ousamos chamar

de neofantástica.

Deste modo, ao tratar-se de literatura fantástica produzida no século XIX

pensava-se unicamente em um leitor implícito, subordinado a uma intencionalidade

da narrativa, portanto, um leitor passivo ao texto. Este leitor, por certo, não é

qualquer um, mas apenas aquele leitor capaz de resgatar o significado da obra de

acordo com um horizonte de exigências e expectativas historicamente vinculado, ou

seja, ele tem a função de absorver as predisposições fornecidas pelo autor, ele só

entende o que é dado; nada mais é do que uma construção do texto, uma estrutura

textual pré-determinada. Os estudos de Todorov sobre a produção fantástica no

século XIX orientavam a leitura tomando como ponto de partida um entendimento do

texto mais unívoco. Postulou-se que na arquitetura do texto fantástico havia um

encaminhamento de leitura, que deveria ser percorrido para alcançar-se o efeito de

hesitação.

Em se tratando da configuração do neofantástico, no qual enquadramos a

obra de Murilo Rubião, esta possibilita a presença atuante de outro tipo de leitor: o

leitor real, o qual diverge de todos os outros tipos de leitores, implícito, ideal ou

modelo, que até então eram previstos pelo texto.

O leitor implícito, como visto anteriormente, é “[...] percebido como elemento

articulado às estruturas objetivas do texto [...]” (TINOCO, 2010, p.14); assim como o

leitor modelo, que o próprio Umberto Eco (2011) o define como um sujeito “cujo perfil

intelectual só é determinado pelo tipo de operações interpretativas que se supõe (e

se exige) que ele saiba executar: reconhecer similaridades, tomar em consideração

certos jogos...”(p. 45). Portanto, o leitor modelo é definido pelo autor italiano como

sendo um tipo de estratégia textual, é “[...] uma espécie de tipo ideal que o texto não

só prevê como colaborador, mas ainda procura criar [...]” (ECO, 1994, p.15).

Robson Coelho Tinoco define “a figura do ‘leitor modelo’, para quem,

virtuaismente, todo autor escreveria. Leitor que assume posição essencial como

figura de compreensão textual – leitor análise – [...]” (TINOCO, 2010, p.16)

Já o leitor real, o qual defendemos ser o autêntico receptor do texto

neofantástico e primordialmente o muriliano, é um leitor ativo, pois tem a função de

construir o sentido do texto com base em seu repertório (conhecimentos adquiridos

ao longo de sua jornada enquanto ser e enquanto leitor, já que se refere a um

conjunto de normas sociais, históricas e culturais que constituem a competência de

um leitor).

Considera-se leitor real o

[...] leitor de literatura que “lê o mundo” (em sua plena manifestação

socioeconômico-estético-cibernética) por meio da leitura de uma

dada obra.

Assim estruturado, leitor real que se manifesta, dialogicamente,

como via produtiva das leituras de mundo resultantes da

percepção/recepção de que as informações estão mesmo articuladas

em determinados níveis de compreensão. Nessa ótica, tais leituras

de “textos variados” (imagens, símbolos, produções escritas, sons

etc.) representam a articulação do tecido de informações para quem

pretende se reconhecer – enquanto indivíduo ético e estético – na

medida em que faz a devida integração produtiva do(s) mundo(s) que

o rodeia(m) – mundo do texto, mundo do contexto, mundo do

paratexto. (TINOCO, 2010, p. 16)

Entende-se que o leitor real é o leitor imputável pela ótica da literatura

neofantástica, isto devido ao fato de que qualquer leitor possui, em maior ou menor

escala, uma característica primordial: o conhecimento daquilo que deve fazer com o

texto. Acrescenta-se também, que o leitor real é aquele capaz de retirar do texto um

sentido, não um sentido do próprio texto e sim um sentido gerado pelo e no

processo de leitura. Portanto, o leitor real apresenta um papel ativo na leitura.

Esta posição ativa do leitor frente ao texto segue o conceito de Hans Robert

Jauss no sentido de emancipação

[...] que permite ao leitor, atento e crítico – aqui leitor real –,

reconhecer seus conceitos (sobre leitura, sobre literatura) e

modificá-los com o intuito de aprimorar suas próprias informações. Entenda-se

que por meio de tal processo emancipatório, esse leitor real tende a

se perceber como indivíduo social que, por força de sua cultura,

submete-se a determinados conceitos, valores, regras. (TINOCO,

2010, p.19)

Nesse sentido, considera-se que no processo de recepção da obra pelo leitor

que termina por conferir existência sociolinguística advinda da capacidade e

intenção do leitor-receptor em completar as ‘lacunas textuais’ com sua própria

imaginação, experiência de mundo-vida e sentidos de leitura” (TINOCO, 2010, p.21)

A partir do momento em que o leitor real constrói o sentido do texto mediante

a imposição de seu repertório, pode-se afirmar que a obra de Murilo Rubião é

aberta, ou seja, o texto muriliano tem suas lacunas que só podem ser colmatadas

por elementos externos ao texto, por meio do leitor real.

Quando o leitor real se depara com a descrição feita pelo

narrador-personagem de “O pirotécnico Zacarias” do momento em que é atropelado – “A

princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de

listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhantes a densas fitas de

sangue” (RUBIÃO, 1999, p.26 – grifo nosso) – ele poderia ou não relacionar,

hipoteticamente, tais cores aos cinco continentes (Europa, Oceania, Ásia, África e

América, respectivamente)

25

. Esta hipótese pode ser confirmada mais adiante em

meio a várias questões, emitidas não se sabe por quem, a Zacarias após sua morte.

“ – Quantos são os continentes? / – E a Oceania?” (RUBIÃO, 1999, p. 27)

Desse modo, o leitor absorve os dados do texto aos quais serão atribuídos

significados aos termos de acordo com seu conhecimento extratextual. Somente o

leitor real é capaz de atribuir este sentido às cores, pois, trata-se de um

conhecimento oriundo de sua situação sociocultural.

Entende-se assim que a função do leitor real é sobretudo transformadora e,

até mesmo, recriadora. Isso porque é com a presença do leitor real no processo de

leitura que o texto – visto como objeto de arte – se transformaria em objeto estético

e, como tal, capaz de gerar múltiplas leituras . É o que afirma Paul Ricoeur : “…la

phénoménologie de l’acte de lecture, pour donner toute son ampleur au thème de

25

a exposição sobre cores e significado dos Anéis Olímpicos, Freitas; Barreto (2008, p.31) afirmam que o barão Pierre de Coubertin, não designou uma cor para cada continente quando criou os anéis, “mas com o tempo espalhou-se uma versão equivocada de que o aro azul representaria a Europa; o amarelo, a Ásia; o preto; a África; o verde , a Oceania; e o vermelho, a América”

É importante ressaltar que o COI rechaça essa versão popular sobre os significados das cores dos Anéis Olímpicos. No entanto muitos livros apresentam essa variante. Colli (2004, p.49), por exemplo, menciona “que os cinco anéis representam os cincos continentes: Europa em azul, a África em preto, a América em vermelho, a Ásia em amarelo e a Oceania em verde”

COLLI, E. Universo olímpico: uma enciclopédia das Olimpíadas. São Paulo: Códex, 2004

l’interaction, a besoin d’un lecteur en chair et en os, qui, en affectuant le rôle du

lecteur préstructuré dans et le texte, le transforme.”

26

(RICOEUR, 1985, p. 249).

Evidencia-se deste modo, que os relatos de Murilo Rubião dependem

diretamente da ideia de realidade que tem o leitor. Em outras palavras, para a

efetivação do fantástico nos textos murilianos é necessário contrastar o mundo do

texto com o contexto sociocultural no qual vive o leitor.

[…] El discurso fantástico es, como advierte Roberto Reis, un

discurso en relación intertextual constante con ese otro discurso que

es la realidad, entendida como construcción cultural.

Esto supone ir más allá de definiciones de carácter

estructuralista o inmanente, como la de Todorov, que esquiva el

problema de la relación con lo real planteando que la existencia de lo

fantástico depende únicamente de la reacción del lector implícito, una

entidad que forma parte del mundo ficcional

27

. (ROAS, 2004, p.49)

Com base nisto, a David Roas não parece estranho o fato de Todorov

comparar o funcionamento da narrativa fantástica com a da literatura policial mais

clássica, baseado única e exclusivamente no jogo formal da resolução de um

mistério aparentemente irresolúvel. “La intención última del relato policiaco no es

otra que procurar la admiración y el placer del lector ante su perfección formal. Todo

queda, por tanto, dentro del estricto ámbito intratextual.”

28

(ROAS, 2004, p.49).

Destarte, a obra de Murilo Rubião afasta-se desse conceito de Todorov, pois

teria como objetivo propor uma possível transgressão do real e também sugerir a

descoberta de uma segunda realidade que se apresenta oculta atrás da cotidiana.

Portanto, sua função é ampliar nossa visão do real, já que, as situações abordadas

em seus textos são “metáforas que buscan expresar atisbos, entrevisiones o

interstícios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la comunicación,

que no caben en las cedillas construidas por la razón, que van a contrapelo del

26 ...a fenomenologia do ato de leitura, para dar toda sua amplitude ao tema da interação, precisa de um leitor em carne e osso, que efetuando o papel do leitor pré-estruturado no e pelo texto, transforma-o. (Tradução nossa)

27

[...] O discurso fantástico é, como adverte Roberto Reis, um discurso em relação intertextual constante com esse outro discurso que é a realidade, entendida como construção cultural.

Isto supõe ir além das definições de caráter estruturalista ou imanente, como as de Todorov, que esquiva o problema da relação com o real levantado que a existência do fantástico depende unicamente da reação do leitor implícito, uma entidade que forma parte do mundo ficcional. (Tradução nossa)

28 A intenção definitiva do relato policial não é outra que procurar a admiração e o prazer do leitor ante sua perfeição formal. Tudo permanece, portanto, dentro do estrito âmbito intratextual. (Tradução nossa)

sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diário”

29

. (ALAZRAKI,

2001, p. 277).

Conclui-se que a narrativa de Murilo Rubião depende de uma dimensão

pragmática do texto, do modo como é lida e interpretada, já que o fantástico

depende diretamente da ideia de realidade que tem o leitor. Em outras palavras, é

preciso contrastar o mundo do texto com o mundo do leitor. Desse modo, o leitor

real dá coerência ao universo de representações textuais. Ao colmatar os vazios ou

indeterminações do texto, o leitor vai além de apenas organizar as várias

perspectivas do texto, e estabelece um ponto de vista a partir do qual compreende a

sua situação no mundo.

O leitor real termina por encontrar nessa transcendentalidade uma referência

que lhe permite orientar a sua experiência no mundo. O sentido do texto é, portanto,

apenas imaginável na experiência do leitor, que busca correspondência entre seu

ponto de vista e o da estrutura da obra, ocorrendo o preenchimento, a recepção da

obra, que não se esgota em si mesma, já que cada leitor é único e cada leitura

corresponde a um modo de ver o mundo representado.

29

...metáforas que buscam expressar conjeturas, entreveres ou interstícios de loucura que escapam ou resistem à linguagem da comunicação, que não cabem nas pequenas celas construídas pela razão, que vão contra o modo natural do sistema conceitual ou científico com que usamos diariamente. (Tradução nossa)

II.2. A presença do leitor e a perspectiva da leitura na obra de Murilo

No documento O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO: (páginas 55-63)

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