II. Leitor: o elo entre texto e leitura
II.1. O leitor de Murilo Rubião: do implícito ao real
Ler é uma atividade de construção dos sentidos de um texto; é muito mais
que decodificar. É um processo complexo no qual se produzem trocas entre texto e
leitor, e este termina modificado.
O leitor coloca em jogo conhecimentos e operações de diferentes tipos sobre
a linguagem (as palavras, as orações, os textos, o discurso) e sobre o mundo e os
sistemas de avaliação e interpretação do universo referencial. A estas capacidades
de índole linguística e discursiva, cultural e ideológica somam-se outras que indicam
quais desses conhecimentos e operações devem ser postos em funcionamento, de
acordo com seus objetivos e a situação de leitura.
Destarte, o leitor passa a ocupar um lugar vital nos estudos das obras
literárias pelo fato de se fazer agente sujeito do processo de leitura, desembocando
na chamada “teoria da recepção”, ou como “estética da recepção”, inaugurada por
Hans Robert Jauss em 1967 e que teve outros seguidores, dentre os quais damos
destaque a Wolfgang Iser, autor de O ato de ler (1976). Para este, o que é válido é
ver como um texto tem significado para o leitor, de modo que o significado é visto
como resultado de uma interação entre o texto e o leitor.
Ao examinar a interação entre texto e leitor, Iser verificou as
qualidades do texto, que o fazem legível, ou que influenciam nossa
leitura, e verificou também aquelas características do processo de
leitura essenciais para a compreensão do texto. (SAMUEL, 2005, p.
119-120).
Há uma atualização do texto na mente do leitor, preenchendo espaços em
branco, aberturas ou indeterminações, como afirma Umberto Eco em sua obra
Lector in fabula:
Mas o que devemos dizer já é que um texto postula o próprio
destinatário como condição indispensável não só da própria
capacidade concreta de comunicação, mas também da própria
potencialidade significativa. Em outros termos, um texto é emitido a
alguém que o atualize – embora não se espere (ou não se queira)
que esse alguém exista concreta e empiricamente. (ECO, 2004,
p.37)
É preciso ressaltar neste momento que, por sua familiaridade com os vazios,
com as indeterminações, o texto muriliano permite uma multiplicidade de
comunicações, o que desemboca em uma problemática apontada por Costa Lima
em relação a qualquer texto de ficção: “...perante esta multiplicidade, como declarar
que algumas das interpretações são corretas e outras meros produtos de projeção
do leitor?” (2011, p.52). A resposta a essa questão é mais complexa do que
possamos imaginar, porém traçaremos, ao longo deste estudo, algumas noções e
orientações a respeito do leitor e do processo de leitura frente a essa literatura tão
particular em sua estrutura narrativa.
O que se pode adiantar é que diante do texto de Murilo Rubião, o leitor é livre
para questionar, todo momento, se a formação de sentido que está executando é
adequada à leitura que está realizando. Esse processo de questionamento ocorre
pelo fato do texto abrir-se para uma multiplicidade de leituras. Sendo assim, é por
meio dessa assimetria entre texto e leitor que se dá lugar ao campo comum de uma
situação comunicacional, onde ocorrerá um processo de interação no qual possibilita
a entrada do leitor a fim testar seu horizonte de expectativas, de “pôr em prova sua
capacidade de preencher o indeterminado com um determinável – isto é, uma
constituição de sentido” (COSTA LIMA, 2011, p. 52).
Essa entrada do leitor no texto dá-se mediante um processo comunicacional
gerado pela estrutura do texto, visto que este oferecerá ao leitor as chaves para que
possa adentrar o seu campo discursivo e a partir de então confrontar suas
premissas com o dito pelo texto, evidenciando a “distinção entre a pura recepção
projetiva, isto é, a leitura condenada, e a leitura constitutiva de um sentido
apropriado” (COSTA LIMA, 2011, p. 55).
Se o texto se abre para essa liberdade do leitor confrontar suas premissas
com o dito pelo texto, então, é notória a necessidade de mudança de postura do
leitor em relação à literatura neofantástica, já que o fantástico do século XIX,
conforme definido por Todorov, visava um leitor implícito, ou seja, um leitor que
deveria reagir tão qual o esperado pelo autor, para o entendimento de sua ideia.
Todorov afirma que o fantástico implica uma interação do leitor no mundo das
personagens, ou seja, um leitor implicado no texto:
É necessário desde já esclarecer que, assim falando, temos em vista
não este ou aquele leitor particular, real, mas uma “função” de leitor,
implícita no texto (do mesmo modo que nele acha-se implícita a
noção do narrador). A percepção desse leitor implícito está inscrita
no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das
personagens. (TODOROV, 2004, p. 37).
Diante dessa “função” do leitor, Todorov adverte que quando o leitor
abandona o mundo das personagens e retorna para sua ação própria, ou seja, a de
um leitor, um perigo ameaça o fantástico no que tange ao nível da interpretação do
texto.
Para Todorov a existência do fantástico está sujeita a três condições.
Primeiramente o texto tem de obrigar o leitor a considerar o mundo das personagens
como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre duas explicações, uma natural e
outra sobrenatural, dos acontecimentos relatados. Em seguida, esta hesitação deve
também ser experimentada por uma personagem, assim a hesitação estará
representada na obra. E por terceiro, é importante que o leitor assuma certa atitude
para com o texto: “ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a
interpretação ‘poética’”. (TODOROV, 2004, p. 39).
O que é valido lembrar é que estas condições, apresentadas pelo teórico
búlgaro, referem-se à definição de fantástico relativo aos textos do século XIX, e que
as narrativas do século XX, divergem de seu conceito, apontando para uma
evolução no gênero.
A literatura fantástica, ela mesma, que subverteu ao longo de todas
as suas páginas, as categorizações lingüísticas, recebeu com isto um
golpe fatal; mas desta morte, deste suicídio nasceu uma nova
literatura. Ora, não seria presunçoso demais afirmar que a literatura
do século XX é, num certo sentido, mais “literatura” que qualquer
outra. Isto não deve ser tomado evidentemente por um juízo de valor:
é mesmo possível que, precisamente por este fato, sua qualidade se
encontre diminuída. (TODOROV, 2004, p. 177)
Deste modo, é correto afirmar que o gênero fantástico sofreu alterações em
sua estrutura, partindo para definições divergentes à apresentada por Todorov,
como visto no capítulo anterior.
Se é notório esse avanço conceitual do gênero – no qual tomamos posições
diferentes frente ao fantástico, a ponto de nomeá-lo como neofantástico, a que se
devido ao desvio de sua caracterização que antes apontava para uma hesitação do
leitor e agora foca-se na construção textual, sendo o fantástico um fenômeno da
linguagem – então é cabível pensar também em uma evolução da postura do leitor
frente a essa literatura, que talvez por falta de um termo melhor, ousamos chamar
de neofantástica.
Deste modo, ao tratar-se de literatura fantástica produzida no século XIX
pensava-se unicamente em um leitor implícito, subordinado a uma intencionalidade
da narrativa, portanto, um leitor passivo ao texto. Este leitor, por certo, não é
qualquer um, mas apenas aquele leitor capaz de resgatar o significado da obra de
acordo com um horizonte de exigências e expectativas historicamente vinculado, ou
seja, ele tem a função de absorver as predisposições fornecidas pelo autor, ele só
entende o que é dado; nada mais é do que uma construção do texto, uma estrutura
textual pré-determinada. Os estudos de Todorov sobre a produção fantástica no
século XIX orientavam a leitura tomando como ponto de partida um entendimento do
texto mais unívoco. Postulou-se que na arquitetura do texto fantástico havia um
encaminhamento de leitura, que deveria ser percorrido para alcançar-se o efeito de
hesitação.
Em se tratando da configuração do neofantástico, no qual enquadramos a
obra de Murilo Rubião, esta possibilita a presença atuante de outro tipo de leitor: o
leitor real, o qual diverge de todos os outros tipos de leitores, implícito, ideal ou
modelo, que até então eram previstos pelo texto.
O leitor implícito, como visto anteriormente, é “[...] percebido como elemento
articulado às estruturas objetivas do texto [...]” (TINOCO, 2010, p.14); assim como o
leitor modelo, que o próprio Umberto Eco (2011) o define como um sujeito “cujo perfil
intelectual só é determinado pelo tipo de operações interpretativas que se supõe (e
se exige) que ele saiba executar: reconhecer similaridades, tomar em consideração
certos jogos...”(p. 45). Portanto, o leitor modelo é definido pelo autor italiano como
sendo um tipo de estratégia textual, é “[...] uma espécie de tipo ideal que o texto não
só prevê como colaborador, mas ainda procura criar [...]” (ECO, 1994, p.15).
Robson Coelho Tinoco define “a figura do ‘leitor modelo’, para quem,
virtuaismente, todo autor escreveria. Leitor que assume posição essencial como
figura de compreensão textual – leitor análise – [...]” (TINOCO, 2010, p.16)
Já o leitor real, o qual defendemos ser o autêntico receptor do texto
neofantástico e primordialmente o muriliano, é um leitor ativo, pois tem a função de
construir o sentido do texto com base em seu repertório (conhecimentos adquiridos
ao longo de sua jornada enquanto ser e enquanto leitor, já que se refere a um
conjunto de normas sociais, históricas e culturais que constituem a competência de
um leitor).
Considera-se leitor real o
[...] leitor de literatura que “lê o mundo” (em sua plena manifestação
socioeconômico-estético-cibernética) por meio da leitura de uma
dada obra.
Assim estruturado, leitor real que se manifesta, dialogicamente,
como via produtiva das leituras de mundo resultantes da
percepção/recepção de que as informações estão mesmo articuladas
em determinados níveis de compreensão. Nessa ótica, tais leituras
de “textos variados” (imagens, símbolos, produções escritas, sons
etc.) representam a articulação do tecido de informações para quem
pretende se reconhecer – enquanto indivíduo ético e estético – na
medida em que faz a devida integração produtiva do(s) mundo(s) que
o rodeia(m) – mundo do texto, mundo do contexto, mundo do
paratexto. (TINOCO, 2010, p. 16)
Entende-se que o leitor real é o leitor imputável pela ótica da literatura
neofantástica, isto devido ao fato de que qualquer leitor possui, em maior ou menor
escala, uma característica primordial: o conhecimento daquilo que deve fazer com o
texto. Acrescenta-se também, que o leitor real é aquele capaz de retirar do texto um
sentido, não um sentido do próprio texto e sim um sentido gerado pelo e no
processo de leitura. Portanto, o leitor real apresenta um papel ativo na leitura.
Esta posição ativa do leitor frente ao texto segue o conceito de Hans Robert
Jauss no sentido de emancipação
[...] que permite ao leitor, atento e crítico – aqui leitor real –,
reconhecer seus conceitos (sobre leitura, sobre literatura) e
modificá-los com o intuito de aprimorar suas próprias informações. Entenda-se
que por meio de tal processo emancipatório, esse leitor real tende a
se perceber como indivíduo social que, por força de sua cultura,
submete-se a determinados conceitos, valores, regras. (TINOCO,
2010, p.19)
Nesse sentido, considera-se que no processo de recepção da obra pelo leitor
que termina por conferir existência sociolinguística advinda da capacidade e
intenção do leitor-receptor em completar as ‘lacunas textuais’ com sua própria
imaginação, experiência de mundo-vida e sentidos de leitura” (TINOCO, 2010, p.21)
A partir do momento em que o leitor real constrói o sentido do texto mediante
a imposição de seu repertório, pode-se afirmar que a obra de Murilo Rubião é
aberta, ou seja, o texto muriliano tem suas lacunas que só podem ser colmatadas
por elementos externos ao texto, por meio do leitor real.
Quando o leitor real se depara com a descrição feita pelo
narrador-personagem de “O pirotécnico Zacarias” do momento em que é atropelado – “A
princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de
listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhantes a densas fitas de
sangue” (RUBIÃO, 1999, p.26 – grifo nosso) – ele poderia ou não relacionar,
hipoteticamente, tais cores aos cinco continentes (Europa, Oceania, Ásia, África e
América, respectivamente)
25. Esta hipótese pode ser confirmada mais adiante em
meio a várias questões, emitidas não se sabe por quem, a Zacarias após sua morte.
“ – Quantos são os continentes? / – E a Oceania?” (RUBIÃO, 1999, p. 27)
Desse modo, o leitor absorve os dados do texto aos quais serão atribuídos
significados aos termos de acordo com seu conhecimento extratextual. Somente o
leitor real é capaz de atribuir este sentido às cores, pois, trata-se de um
conhecimento oriundo de sua situação sociocultural.
Entende-se assim que a função do leitor real é sobretudo transformadora e,
até mesmo, recriadora. Isso porque é com a presença do leitor real no processo de
leitura que o texto – visto como objeto de arte – se transformaria em objeto estético
e, como tal, capaz de gerar múltiplas leituras . É o que afirma Paul Ricoeur : “…la
phénoménologie de l’acte de lecture, pour donner toute son ampleur au thème de
25
a exposição sobre cores e significado dos Anéis Olímpicos, Freitas; Barreto (2008, p.31) afirmam que o barão Pierre de Coubertin, não designou uma cor para cada continente quando criou os anéis, “mas com o tempo espalhou-se uma versão equivocada de que o aro azul representaria a Europa; o amarelo, a Ásia; o preto; a África; o verde , a Oceania; e o vermelho, a América”
É importante ressaltar que o COI rechaça essa versão popular sobre os significados das cores dos Anéis Olímpicos. No entanto muitos livros apresentam essa variante. Colli (2004, p.49), por exemplo, menciona “que os cinco anéis representam os cincos continentes: Europa em azul, a África em preto, a América em vermelho, a Ásia em amarelo e a Oceania em verde”
COLLI, E. Universo olímpico: uma enciclopédia das Olimpíadas. São Paulo: Códex, 2004
l’interaction, a besoin d’un lecteur en chair et en os, qui, en affectuant le rôle du
lecteur préstructuré dans et le texte, le transforme.”
26(RICOEUR, 1985, p. 249).
Evidencia-se deste modo, que os relatos de Murilo Rubião dependem
diretamente da ideia de realidade que tem o leitor. Em outras palavras, para a
efetivação do fantástico nos textos murilianos é necessário contrastar o mundo do
texto com o contexto sociocultural no qual vive o leitor.
[…] El discurso fantástico es, como advierte Roberto Reis, un
discurso en relación intertextual constante con ese otro discurso que
es la realidad, entendida como construcción cultural.
Esto supone ir más allá de definiciones de carácter
estructuralista o inmanente, como la de Todorov, que esquiva el
problema de la relación con lo real planteando que la existencia de lo
fantástico depende únicamente de la reacción del lector implícito, una
entidad que forma parte del mundo ficcional
27. (ROAS, 2004, p.49)
Com base nisto, a David Roas não parece estranho o fato de Todorov
comparar o funcionamento da narrativa fantástica com a da literatura policial mais
clássica, baseado única e exclusivamente no jogo formal da resolução de um
mistério aparentemente irresolúvel. “La intención última del relato policiaco no es
otra que procurar la admiración y el placer del lector ante su perfección formal. Todo
queda, por tanto, dentro del estricto ámbito intratextual.”
28(ROAS, 2004, p.49).
Destarte, a obra de Murilo Rubião afasta-se desse conceito de Todorov, pois
teria como objetivo propor uma possível transgressão do real e também sugerir a
descoberta de uma segunda realidade que se apresenta oculta atrás da cotidiana.
Portanto, sua função é ampliar nossa visão do real, já que, as situações abordadas
em seus textos são “metáforas que buscan expresar atisbos, entrevisiones o
interstícios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la comunicación,
que no caben en las cedillas construidas por la razón, que van a contrapelo del
26 ...a fenomenologia do ato de leitura, para dar toda sua amplitude ao tema da interação, precisa de um leitor em carne e osso, que efetuando o papel do leitor pré-estruturado no e pelo texto, transforma-o. (Tradução nossa)
27
[...] O discurso fantástico é, como adverte Roberto Reis, um discurso em relação intertextual constante com esse outro discurso que é a realidade, entendida como construção cultural.
Isto supõe ir além das definições de caráter estruturalista ou imanente, como as de Todorov, que esquiva o problema da relação com o real levantado que a existência do fantástico depende unicamente da reação do leitor implícito, uma entidade que forma parte do mundo ficcional. (Tradução nossa)
28 A intenção definitiva do relato policial não é outra que procurar a admiração e o prazer do leitor ante sua perfeição formal. Tudo permanece, portanto, dentro do estrito âmbito intratextual. (Tradução nossa)
sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diário”
29. (ALAZRAKI,
2001, p. 277).
Conclui-se que a narrativa de Murilo Rubião depende de uma dimensão
pragmática do texto, do modo como é lida e interpretada, já que o fantástico
depende diretamente da ideia de realidade que tem o leitor. Em outras palavras, é
preciso contrastar o mundo do texto com o mundo do leitor. Desse modo, o leitor
real dá coerência ao universo de representações textuais. Ao colmatar os vazios ou
indeterminações do texto, o leitor vai além de apenas organizar as várias
perspectivas do texto, e estabelece um ponto de vista a partir do qual compreende a
sua situação no mundo.
O leitor real termina por encontrar nessa transcendentalidade uma referência
que lhe permite orientar a sua experiência no mundo. O sentido do texto é, portanto,
apenas imaginável na experiência do leitor, que busca correspondência entre seu
ponto de vista e o da estrutura da obra, ocorrendo o preenchimento, a recepção da
obra, que não se esgota em si mesma, já que cada leitor é único e cada leitura
corresponde a um modo de ver o mundo representado.
29
...metáforas que buscam expressar conjeturas, entreveres ou interstícios de loucura que escapam ou resistem à linguagem da comunicação, que não cabem nas pequenas celas construídas pela razão, que vão contra o modo natural do sistema conceitual ou científico com que usamos diariamente. (Tradução nossa)