III. Leitura: uma atividade caleidoscópica
III.1. A leitura e suas dimensões
Partindo da acepção de que a leitura é uma atividade complexa, múltipla, que
exige uma competência do leitor, Gilles Thérien em sua obra Pour une sèmiotique
de la lecture (1990) define a leitura como um processo que se desenvolve em cinco
dimensões: neurofisiológico, cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico.
No que tange ao processo neurofisiológico, Thérien afirma que, para o olhar
do leitor, palavras breves, simples, de uso frequente e polissêmicas facilitam seu
deciframento, além de se apresentarem em frases estruturadas. Quando “um autor
não respeita esses grandes princípios de legibilidade, todos os deslizes semânticos
tornam-se possíveis; assim, o texto ‘lido’ não é mais realmente o texto ‘escrito’”
(JOUVE, 2002, p.18). Este fenômeno é comum no campo da literatura, em especial
nos contos de Murilo Rubião, onde o texto se articula de modo a desestabilizar a
legibilidade mediante às metáforas, às metonímias, às frases soltas e
aparentemente desconexas e, até mesmo em alguns contos, à construção dos
nomes das personagens, como já visto em análise anterior. Desse modo, reputada
em seu aspecto físico, a leitura revela-se como uma atividade de antecipação, de
estruturação e de interpretação.
Quanto ao processo cognitivo, podemos dizer que há dois modos de leitura:
uma, que o leitor simplesmente busca concluir, interessado apenas na ânsia da
resolução da intriga, neste caso, o leitor realiza uma leitura rápida, preocupado em
chegar ao fim em um curto tempo; e outra, em que o leitor sacrifica o tempo da
leitura em prol da interpretação, buscando sentidos a todas implicações do texto.
Esta leitura é a qual Roland Barthes chama de “levantar a cabeça”, pois
“não deixa passar nada; ela pesa, gruda ao texto, lê, se se pode
assim dizer, com aplicação e arrebatamento, apreende em cada
ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens – e não a
anedota: não é a extensão (lógica) que a cativa, o desfolhamento das
verdades, mas o folheado da significância; como no jogo da “mão
quente”, a excitação, provém, não de uma pressa processiva, mas de
uma espécie de charivari vertical (a verticalidade da linguagem e de
sua destruição); é no momento em que cada mão (diferente) salta
por cima da outra (e não uma depois da outra), que o buraco se
produz e arrasta o sujeito do jogo – o sujeito do texto. (BARTHES,
Embora haja essa dicotomia na dinâmica da leitura, existe um ponto
intermediário, no qual progressão e compreensão combinam-se em proporções
diversas, mas em qualquer caso, a leitura exige uma competência, um saber mínimo
para que a leitura realmente se efetue.
Em se tratando dos contos de Murilo Rubião, o leitor pode tentar assumir o
contrato de leitura com o texto aceitando suas implicações e fazer uma leitura
progressiva, visando apenas o relato, porém no decorrer da leitura o leitor se
encontrará perturbado pela narrativa, pois é característica do fantástico
desestabilizar a noção de mundo que o leitor tem. Assim, a própria construção do
texto muriliano intima o leitor a pôr em ação seus conhecimentos prévios de modo a
confrontá-los com o narrado, desenvolvendo o processo cognitivo da leitura em
busca do sentido em um constante “levantar de cabeça”.
O processo afetivo refere-se ao fato de o texto suscitar emoções no leitor com
base no princípio da identificação, o leitor se identifica com as personagens ou com
o enredo. O fantástico gera uma ligação de afetividade, transpondo para o leitor o
sentimento de terror, de perturbação ou de angustia vivenciado pelas personagens.
É comum o leitor angustiar-se com Gérion em “O Bloqueio”, com o protagonista de
“O ex-mágico da Taberna Minhota”, com Galateu em “O lodo”, e assim
sucessivamente. Vale lembrar que é próprio do fantástico suscitar uma
desestabilização emocional-afetiva ao transgredir a visão de real do leitor mediante
a confrontação da realidade empírica e a realidade segunda, causando assombro ao
leitor.
Ao passar para o processo argumentativo, o texto conduz a uma tomada de
posição reflexiva do leitor diante dos mundos – interno e externo – num conjunto
organizado de elementos que buscam representação em todas as narrativas.
Independentemente do gênero textual, o leitor é interpelado a projetar-se
reflexivamente pela argumentação desenvolvida e o engajamento entre texto, leitor e
leitura é inevitável. Os relatos de Murilo Rubião, mesmo que implicitamente,
desenvolvem a função argumentativa de modo a levar o leitor a se questionar sobre
seu modo de perceber o mundo. Por trás das metáforas, das metonímias, das
hipérboles e dos oximoros, reflete sutilmente pontos de vista que cabe ao leitor
assumi-las ou refutá-las. Ao lermos o conto “A fila”, podemos inferir uma
burocrático para tornar-se participante do contexto social; isto, mediante a processos
metafóricos e implicações textuais.
Por fim, no processo simbólico, o sentido que se constrói na leitura, no jogo
entre os pontos de vista representados na narrativa, dos argumentos propostos
desembocam imediatamente no leitor e no contexto cultural no qual cada um se
desenvolve. A leitura – do mundo interno e do mundo externo – relacionando-se com
a cultura, salienta os esquemas dominantes do leitor inserido num meio e numa
época e afirma sua dimensão simbólica, agindo no imaginário individual e coletivo
independentemente da vontade de cada leitor. Assim, segundo Thérien (1990), o
sentido prende-se no imaginário de cada leitor, mas encontra, em razão do vigor
coletivo de sua formação, a existência de outros imaginários.
Ao conceder o caráter coletivo e individual da leitura, Jouve diz que “[...] pode-se
estudar a leitura seja em suas consequências globais na sociedade seja no efeito
particular que produz no indivíduo.”(JOUVE, 2002, p.125). E que: “A obra, contudo, em
vez de afiançar os valores dominantes, pode, por meio da leitura, legitimar novos
valores. Não se trata mais então de transmitir a norma, mas sim de criar referências
novas.” (JOUVE, 2002, p.125-126). Ainda, afirma que “[...] o sujeito tem a possibilidade,
graças à leitura, de se redescobrir. O interesse do texto lido não vem mais então daquilo
que reconhecemos de nós mesmos nele, mas daquilo que aprendemos de nós mesmos
nele.”.(JOUVE, 2002, p.131).
Se o processo simbólico recai no contexto cultural de cada leitor, torna-se
evidente, como apresentado no capítulo anterior, a presença do leitor real, que para
desencadear todos esses processos de leitura precisa de um mínimo de competência e
conhecimento de mundo.
Conclui-se que, para a efetivação da compreensão dos contos de Murilo Rubião,
é necessário transpassar pelas cinco dimensões da leitura fundamentando-se na
estrutura do texto, no jogo de suas relações internas, que o leitor reconstruirá o contexto
necessário à interpretação da obra. Recebida fora de seu contexto de origem, a obra
muriliana se abre para uma pluralidade de interpretações, de modo que cada leitor traz
consigo sua experiência, sua cultura, seus valores, podendo optar em realizar uma
leitura ingênua (focada apenas na intriga, no enredo) ou crítica (focando na
interpretação) da obra.
No documento
O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO:
(páginas 70-73)