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A leitura e suas dimensões

No documento O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO: (páginas 70-73)

III. Leitura: uma atividade caleidoscópica

III.1. A leitura e suas dimensões

Partindo da acepção de que a leitura é uma atividade complexa, múltipla, que

exige uma competência do leitor, Gilles Thérien em sua obra Pour une sèmiotique

de la lecture (1990) define a leitura como um processo que se desenvolve em cinco

dimensões: neurofisiológico, cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico.

No que tange ao processo neurofisiológico, Thérien afirma que, para o olhar

do leitor, palavras breves, simples, de uso frequente e polissêmicas facilitam seu

deciframento, além de se apresentarem em frases estruturadas. Quando “um autor

não respeita esses grandes princípios de legibilidade, todos os deslizes semânticos

tornam-se possíveis; assim, o texto ‘lido’ não é mais realmente o texto ‘escrito’”

(JOUVE, 2002, p.18). Este fenômeno é comum no campo da literatura, em especial

nos contos de Murilo Rubião, onde o texto se articula de modo a desestabilizar a

legibilidade mediante às metáforas, às metonímias, às frases soltas e

aparentemente desconexas e, até mesmo em alguns contos, à construção dos

nomes das personagens, como já visto em análise anterior. Desse modo, reputada

em seu aspecto físico, a leitura revela-se como uma atividade de antecipação, de

estruturação e de interpretação.

Quanto ao processo cognitivo, podemos dizer que há dois modos de leitura:

uma, que o leitor simplesmente busca concluir, interessado apenas na ânsia da

resolução da intriga, neste caso, o leitor realiza uma leitura rápida, preocupado em

chegar ao fim em um curto tempo; e outra, em que o leitor sacrifica o tempo da

leitura em prol da interpretação, buscando sentidos a todas implicações do texto.

Esta leitura é a qual Roland Barthes chama de “levantar a cabeça”, pois

“não deixa passar nada; ela pesa, gruda ao texto, lê, se se pode

assim dizer, com aplicação e arrebatamento, apreende em cada

ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens – e não a

anedota: não é a extensão (lógica) que a cativa, o desfolhamento das

verdades, mas o folheado da significância; como no jogo da “mão

quente”, a excitação, provém, não de uma pressa processiva, mas de

uma espécie de charivari vertical (a verticalidade da linguagem e de

sua destruição); é no momento em que cada mão (diferente) salta

por cima da outra (e não uma depois da outra), que o buraco se

produz e arrasta o sujeito do jogo – o sujeito do texto. (BARTHES,

Embora haja essa dicotomia na dinâmica da leitura, existe um ponto

intermediário, no qual progressão e compreensão combinam-se em proporções

diversas, mas em qualquer caso, a leitura exige uma competência, um saber mínimo

para que a leitura realmente se efetue.

Em se tratando dos contos de Murilo Rubião, o leitor pode tentar assumir o

contrato de leitura com o texto aceitando suas implicações e fazer uma leitura

progressiva, visando apenas o relato, porém no decorrer da leitura o leitor se

encontrará perturbado pela narrativa, pois é característica do fantástico

desestabilizar a noção de mundo que o leitor tem. Assim, a própria construção do

texto muriliano intima o leitor a pôr em ação seus conhecimentos prévios de modo a

confrontá-los com o narrado, desenvolvendo o processo cognitivo da leitura em

busca do sentido em um constante “levantar de cabeça”.

O processo afetivo refere-se ao fato de o texto suscitar emoções no leitor com

base no princípio da identificação, o leitor se identifica com as personagens ou com

o enredo. O fantástico gera uma ligação de afetividade, transpondo para o leitor o

sentimento de terror, de perturbação ou de angustia vivenciado pelas personagens.

É comum o leitor angustiar-se com Gérion em “O Bloqueio”, com o protagonista de

“O ex-mágico da Taberna Minhota”, com Galateu em “O lodo”, e assim

sucessivamente. Vale lembrar que é próprio do fantástico suscitar uma

desestabilização emocional-afetiva ao transgredir a visão de real do leitor mediante

a confrontação da realidade empírica e a realidade segunda, causando assombro ao

leitor.

Ao passar para o processo argumentativo, o texto conduz a uma tomada de

posição reflexiva do leitor diante dos mundos – interno e externo – num conjunto

organizado de elementos que buscam representação em todas as narrativas.

Independentemente do gênero textual, o leitor é interpelado a projetar-se

reflexivamente pela argumentação desenvolvida e o engajamento entre texto, leitor e

leitura é inevitável. Os relatos de Murilo Rubião, mesmo que implicitamente,

desenvolvem a função argumentativa de modo a levar o leitor a se questionar sobre

seu modo de perceber o mundo. Por trás das metáforas, das metonímias, das

hipérboles e dos oximoros, reflete sutilmente pontos de vista que cabe ao leitor

assumi-las ou refutá-las. Ao lermos o conto “A fila”, podemos inferir uma

burocrático para tornar-se participante do contexto social; isto, mediante a processos

metafóricos e implicações textuais.

Por fim, no processo simbólico, o sentido que se constrói na leitura, no jogo

entre os pontos de vista representados na narrativa, dos argumentos propostos

desembocam imediatamente no leitor e no contexto cultural no qual cada um se

desenvolve. A leitura – do mundo interno e do mundo externo – relacionando-se com

a cultura, salienta os esquemas dominantes do leitor inserido num meio e numa

época e afirma sua dimensão simbólica, agindo no imaginário individual e coletivo

independentemente da vontade de cada leitor. Assim, segundo Thérien (1990), o

sentido prende-se no imaginário de cada leitor, mas encontra, em razão do vigor

coletivo de sua formação, a existência de outros imaginários.

Ao conceder o caráter coletivo e individual da leitura, Jouve diz que “[...] pode-se

estudar a leitura seja em suas consequências globais na sociedade seja no efeito

particular que produz no indivíduo.”(JOUVE, 2002, p.125). E que: “A obra, contudo, em

vez de afiançar os valores dominantes, pode, por meio da leitura, legitimar novos

valores. Não se trata mais então de transmitir a norma, mas sim de criar referências

novas.” (JOUVE, 2002, p.125-126). Ainda, afirma que “[...] o sujeito tem a possibilidade,

graças à leitura, de se redescobrir. O interesse do texto lido não vem mais então daquilo

que reconhecemos de nós mesmos nele, mas daquilo que aprendemos de nós mesmos

nele.”.(JOUVE, 2002, p.131).

Se o processo simbólico recai no contexto cultural de cada leitor, torna-se

evidente, como apresentado no capítulo anterior, a presença do leitor real, que para

desencadear todos esses processos de leitura precisa de um mínimo de competência e

conhecimento de mundo.

Conclui-se que, para a efetivação da compreensão dos contos de Murilo Rubião,

é necessário transpassar pelas cinco dimensões da leitura fundamentando-se na

estrutura do texto, no jogo de suas relações internas, que o leitor reconstruirá o contexto

necessário à interpretação da obra. Recebida fora de seu contexto de origem, a obra

muriliana se abre para uma pluralidade de interpretações, de modo que cada leitor traz

consigo sua experiência, sua cultura, seus valores, podendo optar em realizar uma

leitura ingênua (focada apenas na intriga, no enredo) ou crítica (focando na

interpretação) da obra.

No documento O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE MURILO RUBIÃO: (páginas 70-73)

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