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A HISTORIA DA CIVILIZAÇÃO MODERNA

No documento O TEMPO DA HISTÓRIA (páginas 174-181)

Saído do mundo fechado de minha infância, fui solicitado por duas concepções da história: uma delas era política e aparentemente prolongava as nostalgias monarquistas que me tinham encantado: a concepção bainvilliana da história da França; ela estava fundada na idéia da repetição dos fatos históricos, transformando em um sistema a consciência ingênua do passado, assim como se perpetuava em minha família. A outra maneira de abordar a história era a da Sorbonne, uma maneira objetiva, pelo menos tão seca e abstrata quanto sua rival, mas separada das preocupações políticas, elevando-se para tomar lugar entre as ciências exatas.

No fundo, nenhum historiador pôde evitar a alternativa das duas histórias, uma científica, outra política, conservadora ou marxista. Nenhum historiador determinou inteiramente a sua escolha. Os mais austeros estudiosos trabalhavam apenas por garantir em sua vida a impermeabilidade entre a ciência objetiva e a interpretação política do passado. Mas, por mais desinteressada que fosse sua erudição, eles sentiam a maneira de ver o tempo própria a seus meios, segundo sua posição política. Porque a filosofia política da história separava a opinião como uma frente de guerra, em dois campos. Em cada um desses campos, chocavam-se tendências, mas se estava entre gente que falava a mesma língua. Eesta impressão de parentesco vinha, para além das ortodoxiase das excomunhões de grupos, de uma atitude comum diante da história. Conforme acentuássemos a idéia de repetição ou de devir, colocávamo-nos à direita ou à esquerda. Uma maneira bastante vaga de considerar o passado colocava você de um lado ou de outro do front. Até os historiadores profissionais, amantes da objetividade, não podiam evitar escolher e, por pouco que se escolhesse, estava-se engajado.

Eu, pois, de minha parte, oscilei durante algum tempo, da objetividade universitária à interpretação cíclica, cara então aos intelectuais da Action française. Já lia a obra de Marc Bloch e de Lucien Febvre, mas não a tinha assimilado ainda o bastante para compreender onde ela levava.

Na verdade, essa época de minha vida intelectual deixou-me a impressão um tanto desagradável de desacordo. Era preciso a todo instante mudar de registro e, quase, de mentalidade, conforme o interlocutor colocasse o debate no plano da história científica ou da filosofia política da história. As tentativas de conciliar os dois sistemas eram sempre infrutíferas. Uma referência à política tradicional das fronteiras naturais, tão cara a Sorel e a Bainville, era o meio mais seguro de obter a reprovação num exame universitário. Os professores enfureciam-se, no caso, menos com um erro histórico real,

do que com a influência que farejavam de um gênero execrado. No sentido inverso, lembro-me de ter apresentado um programa de conferências para um círculo de estudos sociais, onde as classes sociais eram estudadas; via aí um meio de renovar um pouco os assuntos da Action française, utilizando os métodos dos historiadores sociais, fazendo apelo a experiências vividas e concretas. Minha idéia não foi aprovada porque não se prestava a conclusões políticas suficientemente práticas e eficazes.

Foi preciso, para me tirar dessa alternativa, o traumatismo de 1940 e os anos de provação que se seguiram.

Em nossas vidas perturbadas, a história revestiu-se então de uma ressonância mais íntima, mais ligada à nossa própria existência: algo de bem mais próximo do que as teorias apresentadas-até então à nossa curiosidade. Isto se deu de duas maneiras.

Primeiramente, a história apareceu sob uma forma compacta e estranha: um momento do tempo, amadurecido pelos momentos precedentes do tempo, opondo-se, porém, a eles por suas particularidades irredutíveis. Este tempo surgia como um bloco. Obedecia a leis o seu movimento? Com certeza, não às leis que os historiadores mecanicistas tinham proposto. Mas a própria noção de leis pouco importava: ela não se aplicava a essa espécie de fenômenos.

Sabíamos muito bem que não poderíamos disciplinar essa massa torrencial de acontecimentos com uma técnica de engenheiros. Ela nos fascinava porque, por estranha e incompreensível que parecesse, interessava nossa existência em todos os seus níveis, dos mais superficiais aos mais profundos. Daí em diante, a história não podia mais ser um simples objeto de conhecimento desinteressado ou de especulação orientada. Ela estava diante de nós muito simplesmente, e não podíamos evitar este afrontamento. Ela se tornava uma maneira para o mundo moderno de estar presente a cada um de nós. Até então, os homens, protegidos pela espessura de suas vidas privadas, não sentiam o mundo de seu tempo com um sentimento tão concreto. Mas, daí em diante, cada um está situado à frente de um mundo e situado em um tempo. A história é a consciência que tomamos dessa presença temível.

O trauma de 1940 não apenas nos revelou a grande história, total e compacta. Outra história nos apareceu, particular a cada grupo humano.

Charles Morazé observou que os velhos pequenos "países" que pareciam ter desaparecido, integrados nas mais vastas unidades regionais, tinham retomado fôlego durante a guerra da ocupação alemã. Esta observação é muito importante e vai longe.

A razão disto não é somente que a conjuntura de guerra ressuscitava em parte as condições de outros tempos, dos tempos dos pequenos "países". A vida fechada e inquieta da ocupação trazia de volta as particularidades próprias aos menores grupos humanos, alguns tradicionais, como a família e o "país", outros novos e revolucionários, como o Kommando na Alemanha, ou a formação do maquis. Em virtude de causas complexas e múltiplas, algumas materiais, como as dificuldades de comunicação, outras morais, como a necessidade de aproximação e de cumplicidade num meio suspeito e

hostil, a existência social estabeleceu-se num grau mais baixo de integração. Todo um mundo de que não tínhamos consciência nos foi então revelado: um mundo de relações concretas e únicas de homem a homem. Este mundo denso, mas restrito, tem raízes no passado e engaja nosso presente, É a face familiar de uma história que antes nos parecia estranha, sob seu aspecto compacto. É nossa história particular, que nos pertence e é essencialmente diferente da história particular de um outro grupo. Por isso quis pôr, no começo deste ensaio, a evocação das lembranças que me pareceram, a partir de 1940, mais importantes e mais válidas do que tinha acreditado antes. Compreendi melhor, à luz dessa revelação das histórias particulares, o sentido da noção maurrasiana de herança, tão ligada às memórias antigas, às imagens piedosamente colecionadas de nossos passados familiares. E curioso como esta idéia tão concreta de herança pôde por tanto tempo se unir a uma história considerada como uma mecânica de repetição e uma lição de coisas políticas.

A história particular é bem distinta da história total e coletiva que "reconhecemos" mafs acima. A história coletiva não é nem a soma nem a média das histórias particulares. Uma e outra não são dois momentos de uma mesma evolução. Elas são, pelo contrário, solidárias, e tomamos consciência ao mesmo tempo de ambas. Elas são duas maneiras de estar na história.

Vimos que a grande história coletiva aparece como um momento do tempo oposto aos outros momentos que o precederam ou se lhe seguirão. A diferença dá-se no tempo. Pelo contrário, a diferença de uma história particular para outra história particular aparece entre a minha história e a sua, e não entre a de hoje e a de ontem.

Minha história opõe-se às outras graças a uma singularidade que resiste ao tempo e ao seu poder de erosão e de redução. Esta singularidade introduz um elemento de inércia, de resistência na mudança: a herança maurrasiana. Assim o entende o pai de família quando responde a seu filho: "Você pode fazer, mas não é o hábito da família, não fazemos isso." Neste sentido, podemos falar de permanência.

É preciso esclarecer ainda. Esta permanência não é imobilidade. De fato, as tradições dos grupos sociais modificam-se profundamente no tempo, mas essas variações não afetam o sentimento de que no seio dos grupos permanecemos fiéis a nosso passado. A história particular existe à medida que ela é a recusada mudança no interior da mudança universal.

Assim, a história, durante os anos confusos, revelou um rosto duplo, sem, contudo, que sua unidade fundamental fosse atingida. Como em todas as coisas humanas, a unidade, quando autêntica, só aparece após uma primeira diversidade, às vezes uma contradição.

De qualquer forma, a história é sempre a consciência do que é único e particular, e das diferenças entre várias particularidades.

As diferenças podem situar-se no tempo: os momentos sucessivos da história que se opõem uns aos outros, é O que chamei de história total e compacta.

As diferenças podem estar fora do tempo, na consciência que uma coletividade toma de si mesma, com relação não a outra época de seu devir, mas à coletividade vizinha, o que chamei de história particular, a história das heranças. Ela ainda está na infância, mal distinta de uma sociologia sistemática e verbalista. Seria, por exemplo, a história da consciência de classe, a história das representações do nacionalismo, a história das opiniões, etc, o que se passa quando, no interior de um grupo restrito, se cria um mito tutelar onde todos se abrigam na esperança indestrutível de resistir ao devir.

Duas histórias: dois aspectos de um mesmo problema que nos persegue sempre mais, o problema das particularidades diferentes.

E muito instrutivo, a esse respeito, observar certas variações do sentido da particularidade na sociedade e na história. Elas explicam, melhor do que uma análise abstrata, o que queremos dizer.

Houve um tempo, o mais longo período da história, em que a particularidade estava nas coisas e nas representações ingênuas das coisas. Os objetos não eram, então, definidos por suas funções. Um machado não era apenas um objeto cortante. Com efeito, o machado, assim tecnicamente definido, não existia nas consciências. Havia certa forma de machado, alongado, decorado de certa maneira, segundo determinado tipo. No interior de uma civilização, estava-se ligado a esta forma tanto quanto à sua função.

Um outro machado, que permitisse resolver as mesmas dificuldades técnicas, não era intercambiável com o machado tradicional. Ainda que apresentasse superioridades técnicas, não se impunha imediatamente. O meio lhe fazia resistência. Para que pudesse introduzir-se nele, era preciso que essa técnica superior adotasse a forma do instrumento mais rudimentar que devia substituir. Um objeto era ao mesmo tempo uma técnica e uma forma — a forma estava no objeto. Uma civilização definia-se por seu apego a uma forma que impunha um estilo conètante às modificações das técnicas — e, conseqüentemente, por sua repulsa às formas diferentes, características de outras civilizações.

Os homens viviam a cada dia num mundo de diferenças. Por isso eles não tinham história, a não ser a memorização dos anais, das epopéias, para fins muitas vezes litúrgicos e sagrados. Eles não sentiam a necessidade de tomar consciência das diferenças em que estavam imersos. E essa mentalidade, de origem pré-histórica, persistiu nas épocas históricas, mas no silêncio dos textos ou, pelo menos, das formas superiores de expressão. Com efeito, os escritores e os artistas dessas épocas procuraram, ao contrário, escapar dessas diferenças para fixar um tipo geral de humanidade que os transcendesse, o que chamamos de classicismo. Não creio que este fenômeno seja apenas ocidental; há um classicismo oriental. Num mundo de diferenças, tendia-se a afirmar uma unidade além destas diferenças. Até a revolução mental dos séculos XVIII e XIX, a arte e o pensamento, sempre de tendência mais ou menos clássica, mostram-se separados da história, estranhos ao sentimento popular das diferenças. Este

sentimento, em certos períodos, chegava a penetrar na generalidade dos classicismos. Era rapidamente recalcado, como uma forma bárbara de emoção.

O classicismo é o cânon literário e artístico de sociedades que vivem sua existência quotidiana em um mundo de diferenças.

Ora, este mundo de diferenças pereceu no século XIX, ou, pelo menos, não é mais um mundo de formas singulares e amistosas.

Doravante, já não há um machado de determinada forma, que é realmente um objeto diferente deste machado semelhante, fabricado em outro estilo. Não há mais do que um único machado, definido por sua função de instrumento cortante. Pode haver muitos tipos de machado, segundo sua especialização técnica. Mas as diferenças de forma tornaram-se variações decorativas secundárias. O machado é mais ou menos belo; ele é sempre um machado.

Neste momento da civilização, a forma, que antigamente estava no-objeto, está ao lado, no exterior, um valor superficial que não modifica a natureza do objeto; os objetos são reconhecidos apenas pelos seus fins técnicos. Estamos tão habituados a essa maneira de ver que mal concebemos a importância inaudita dessa revolução mental. A grande mudança que caracteriza o mundo moderno não reside no desenvolvimento das técnicas, mas no papel determinante e absoluto da técnica na designação dos objetos. No fundo, não há mais objetos, mas reproduções de um protótipo ideal definido por sua finalidade. Não há mais objetos, mas sim funções técnicas. Não há mais machados, mas sim um instrumento cortante. No limite, um vocabulário tecnológico, novo e abstrato, substitui os nomes vivos dos objetos concretos.

Nossa civilização não é mais fundada, como as civilizações de outrora, sobre as particularidades constitutivas. Ela não é nem mesmo comparável a essas antigas civilizações, que coexistiam com estilos diferentes. Já não temos hoje algumas civilizações, mas tendemos para um tipo geral e abstrato de civilização moderna, caracterizada em Tóquio, em São Francisco e em Paris pela uniformidade das técnicas. É possível, até acontece sempre, que essa uniformidade não chegue a se impor aos costumes e a eliminar todos os elementos tradicionais de diferença. A história contemporânea é feita de reações dessas inércias do passado contra a uniformização tecnocrática. Isto não impede que o ideal tecnocrático se introduza através das representações mais correntes da vida. Quaisquer que sejam nossas reações pessoais, nossas saudades de um passado mais concreto e mais singular, não podemos desfazer- nos do hábito inveterado de considerar nos objetos a função antes da forma. E é essa maneira de ver as coisas que é importante.

Às civilizações das diferenças, opõe-se a civilização da técnica, sempre semelhante a si mesma.

Ora, à medida que a técnica se impunha nos costumes, as particularidades, expulsas do universo familiar dos objetos, invadiam o mundo das idéias e das imagens,

do pensamento e da arte, e substituíam pouco a pouco o tipo do homem constante e universal do classicismo.

Tudo se passa como se o desaparecimento das particularidades destruísse o classicismo nos modos superiores. Sentia-se necessidade delas, sem que se desse bem conta disso, e eis que elas vêm a faltar. Os homens oscilavam entre a dupla uniformidade da técnica e do classicismo. Elas arriscavam-se a desaparecer. Então, os particularismos recalcados tiveram sua contrapartida nos domínios antes reservados às generalidades de um classicismo unitário. Eles invadiram a literatura e o mundo das idéias.

Nesta penetração, a história desempenhou um papel curioso.

Por um surpreendente paradoxo, ela foi de início o refúgio do classicismo, expulso da literatura pelo romance. No século XIX, o romance garantiu o triunfo dos tipos sociais diferenciados segundo o tempo, o lugar e a condição. Inversamente, a história, pelo menos em suas formas literárias, acadêmicas, conservadoras, manteve a ficção do homem clássico. Ela estabeleceu como princípio a permanência da natureza humana, inalterada pelas modificações passageiras do devir. A idéia de uma permanência do homem tornou-se então um lugar-comum nas maneiras de pensar e de conversar da sociedade burguesa. Ainda hoje, numa reunião social de conservadores cultos, tentem sugerir durante a conversa que o conhecimento do passado pouco nos autoriza a antecipar, que os tempos se sucedem diferentes uns dos outros, fugindo a uma comum generalização. Todos ficarão indignados. Este mesmo auditório conservador discutirá mais facilmente, com menos irritação, o ponto de vista marxista. Não o aprovará, mas o compreenderá. Sem dúvida, porque, no fundo, pertencem à mesma maneira sistemática. Pelo contrário, perante uma interpretação diferencial da história, a burguesia se eriça como diante do absurdo.

A sobrevivência do classicismo na história já faz parte da consciência de classe burguesa. Ela fornece à burguesia uma justificação moral. Se o povo é sempre parecido consigo mesmo, isto significa que é sempre menor, exposto aos mesmos perigos, prestes a sucumbir às mesmas tentações. Tem, portanto, necessidade de ser guiado por uma classe esclarecida. Além disso, nessa predileção pela idéia do homem clássico, há algo de diferente de um argumento: um apego a uma maneira de ver o mundo em que a burguesia está à vontade, que ela mantém no único setor ainda preservado.

É, porém, uma posição ultrapassada, ligada a opiniões e a costumes "vitorianos". Este desdobramento do classicismo era ainda possível antes da invasão da técnica na sensibilidade. A burguesia clássica servia-se da técnica, mas o seu universo mental, formado pelas "humanidades", conservava algumas das maneiras anteriores à era técnica. Ao contrário, a partir de 1914 as diferenças de civilização foram mais rapidamente reduzidas ao tipo médio que caracteriza o mundo moderno. E é nessa civilização fundada na uniformidade das funções e das técnicas que a história foi concebida como a ciência das diferenças. Não somente por alguns especialistas. Uma consciência da história, sentida como a diferença dos tempos e das particularidades, ultrapassa os grupos dispersos dos profissionais. Ela conflui com as correntes de

pensamento que dominam atualmente e ameaça penetrar nos últimos reforços das ortodoxias conservadoras ou marxistas.

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Anexo I:

No documento O TEMPO DA HISTÓRIA (páginas 174-181)