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A hora e vez de Augusto Matraga e o realismo

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 65-74)

A discussão a respeito do realismo na obra de Roberto Santos leva a indagar se é possível afirmar A hora e vez de Augusto Ma-

traga como um filme realista.

No que pese a boa recepção crítica, o fracasso de público de

O grande momento explica, pelo menos parcialmente, a demora

de Roberto Santos em realizar o seu segundo longa-metragem, A

hora e vez de Augusto Matraga. O conto de João Guimarães Rosa

foi publicado originalmente em 1946, como parte do volume Saga-

rana, o qual contém também as narrativas “O burrinho pedrês”,

“Duelo” e “Conversa de bois”, entre outras (Rosa, 1988).

A película foi rodada em Diamantina (MG) no ano de 1965 com produção de Luiz Carlos Barreto e recursos da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica (Caic) do antigo estado da Guanabara e do Banco Nacional de Minas Gerais.5 A equipe era

formada por Hélio Silva (diretor de fotografia), Silvio Renoldi

5. Por meio desse financiamento da Caic e do Banco Nacional, Luiz Carlos Barreto produziu, ao mesmo tempo, O padre e a moça (Joaquim Pedro de

(montagem) e Geraldo Vandré (música); o elenco contava com Leonardo Villar, Jofre Soares, Maria Ribeiro e Maurício do Valle, entre outros. Para além dos grandes atores, A hora e vez de Augusto

Matraga reuniu um dos mais importantes produtores do cinema

brasileiro ainda no início das suas atividades, bem como um fotó- grafo e um montador dos mais destacados,6 sem deixar de men-

cionar a fundamental contribuição de Geraldo Vandré no campo musical.

O filme foi exibido em 1966 na mostra competitiva do Festival de Cannes, mas não logrou obter premiação. No entanto, obteve os prêmios de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Argumento, Melhor Diálogo – para Gianfrancesco Guarnieri – e Melhor Ator – para Leonardo Villar – na I Semana do Cinema Brasileiro em Brasília, evento realizado em 1965 que daria origem ao Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, um dos mais importantes fes- tivais do país até hoje.

A recepção da crítica foi entusiástica, conforme é possível de- preender do artigo escrito por Francisco Luiz de Almeida Salles para O Estado de S. Paulo:

Só pelo regional se atinge o universal, mas arrancando do regional o que ele tem de universal. Nesse sentido é que devemos saudar este filme [A hora e vez de Augusto Matraga], que confirma ainda uma vez a riqueza do nosso cinema de hoje e a importância da ex- periência que se vem fazendo no Brasil e já compreendida, inter-

Andrade, 1966), rodado em Diamantina, e A hora e vez de Augusto Matraga, mas com outra equipe técnica e elenco diverso. Ver Simões, 1997, p.77. 6. Luiz Carlos Barreto foi o produtor de Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos,

1963) e Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), entre outras obras do Cinema Novo. Hélio Silva, dentre muitos filmes, fotografou Rio, 40 graus, O grande

momento e O amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974). Silvio Re-

noldi montou, entre diversas obras, O homem nu, O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (Hector Ba- benco, 1977).

nacionalmente, com mais calor do que dentro do nosso próprio país. (Salles, 1988, p.302.)

Está implícita no texto de Almeida Salles a referência ao Ci- nema Novo quando se afirma “a importância” do que é feito no cinema brasileiro e que teria reconhecimento internacional. A fita é considerada também por outros críticos, como Alex Viany, per- tencente ao Cinema Novo (Viany, 1999, p.185), mas Roberto San tos tinha poucas relações com grande parte dos diretores do movi mento, como Glauber Rocha, Carlos Diegues ou Leon Hirsz man; exceção nesse quadro era a sua ligação com Nelson Pe- reira dos Santos – a quem conhecia já há muitos anos. Esse isola- mento talvez decorresse menos de fatores geracionais e mais do fato de Roberto Santos ter permanecido em São Paulo, enquanto o Ci- nema Novo sabidamente tendeu a se concentrar no Rio de Janeiro. Deve-se atentar que, para os cineastas e críticos vinculados ao cinema moderno dos anos 1950 e 1960, a relação com a literatura brasileira possuía duas dimensões fundamentais. Uma claramente expressada por Alex Viany na Introdução ao cinema brasileiro, na qual a adaptação de obras literárias surge como elemento impor- tante para que um filme pudesse ser considerado nacional-popular (Autran, 2003, p.230), pois se partia do pressuposto de que autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos ou Lima Barreto possui- riam em seus romances e contos personagens e situações que re- presentariam de maneira crítica a realidade do povo brasileiro, podendo assim inspirar películas no mesmo viés. A outra dimensão relaciona-se, como indica Ismail Xavier, com um processo no qual “o cinema moderno brasileiro acertou o passo do país com os movi- mentos de ponta de seu tempo” e que por meio da “atualização es- tética, alteram substancialmente o estatuto do cineasta no interior da cultura brasileira, promovendo um diálogo mais fundo com a tradição literária” (Xavier, 2001, p.18), mudança pela qual o reali- zador de cinema passava a ser visto como um artista que poderia ter a mesma importância cultural de um grande escritor.

Portanto, não foi casual que nos anos 1960 tenha havido di- versas adaptações literárias de grande importância para a história do cinema brasileiro, para além de A hora e vez de Augusto Matraga, tais como O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), Vidas

secas, A falecida (Leon Hirszman, 1965), Menino de engenho (Walter

Lima Júnior, 1965) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969).

O conto de Guimarães Rosa apresenta a trajetória de Augusto Esteves, o qual, ao longo da narrativa, de violento fazendeiro sem fé vira um homem paupérrimo e extremamente religioso, com a vida marcada por tragédias pessoais como a fuga da esposa, a surra que quase lhe causa a morte e a prostituição da filha, mas também pela sua conversão religiosa. Segundo Maria Célia Leonel, no conto de Guimarães Rosa,

Matraga consegue aquilo para o que tão arduamente se preparou, ou seja, a redenção, ao salvar uma família da sanha de jagunços, lutando com o chefe deles, Joãozinho Bem-Bem. Se se toma a his- tória aparente, essa é a verdade do conto. Mas o que o discurso rosiano entremostra é uma relativização desse fato: no confronto com o jagunço, o protagonista vive a santidade juntamente com a violência que o acompanha desde muito cedo e, ao que parece, é inerente a sua personalidade. (Leonel, 2008, p.117.)

Não se pretende neste artigo fazer uma comparação do conto com o filme, mas a fita de Roberto Santos, assim como o conto de Guimarães Rosa, faz uma leitura complexa das relações entre vio- lência e misticismo religioso.

Em termos visuais, a composição geral do filme tende a des- tacar uma paisagem em que a natureza e elementos cenográficos arcaicos avultam, além das árvores, da vegetação e de cavalos, temos casebres, casas senhoriais algo decadentes, igrejas e cruzes; no filme inexistem objetos que tipicamente são ligados à moderni- dade, tais como carros, motores ou eletrodomésticos. Trata-se de

um tempo quase imemorial, ou pelo menos longínquo, dado esse vazio de objetos, a força da religiosidade e a brutalidade dos ho- mens. Essa representação do espaço encontra ressonância no conto de Guimarães Rosa, assim como em obras do Cinema Novo, tais como Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas

secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963). No caso do movimento

cine matográfico, trata-se de uma representação do sertão como re- gião extremamente atrasada, ainda “feudal” – como pretendia a análise de parte da esquerda da época – e não integrada ao capita- lismo, cara aos filmes mencionados de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos e que possuía claro viés político-ideológico. Mas, sintomaticamente, esse viés político-ideológico não possui tanta importância no filme de Roberto Santos; aqui, a rarefação de objetos, os símbolos religiosos e os espaços abertos que constituem visualmente a representação de algo que ocorreu há muito tempo servem como base para ambientar essa história mística, talvez pouco afeita ao mundo contemporâneo.

Cabe também observar que a representação do sertão no ci- nema brasileiro dos anos 1960 possui notáveis diferenças em relação à representação do mesmo ambiente na produção contemporânea. Filmes como Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), cujas die- geses transcorrem respectivamente nos anos 1930 e 1940, tal como

Deus e o Diabo na terra do sol e Vidas secas, apresentam carros, câ-

meras e outros objetos típicos da modernidade. Essas diferenças entre os modos de representar visualmente o sertão merecem pes- quisa mais aprofundada e a princípio indicam o deslocamento na forma de entender a relação da região com o capitalismo. Se nos anos 1960 o sertão era visto como uma região isolada, praticamente sem contato com o desenvolvimento capitalista e por isso mesmo marcado por relações sociais com alto grau de exploração, já na atualidade os cineastas tendem a percebê-lo como vinculado às formas capitalistas de produção no que pese a pobreza e a marca da violência nas relações sociais. Ou seja, não se alterou a percepção de que existia (e existe) miséria no sertão, mas sim que o sistema

capitalista já há muito integrou a região à sua órbita e não modi- ficou as relações marcadas por alto grau de exploração humana; antes, elas foram incorporadas ao sistema.

Voltando ao filme de Roberto Santos, a trajetória do protago- nista é marcada numa primeira etapa pela violência e bestialidade do personagem, que não respeita nada e ninguém, nem mesmo a religião, pois ele provoca grande algazarra perseguindo com seus jagunços pacatos cidadãos na praça em frente a uma igreja em pleno dia santo. Após a fuga de sua esposa, ele vai se vingar do homem que a seduziu, mas é cercado pelos jagunços desse fazendeiro – al- guns dos quais ex-capangas do próprio “nhô” Augusto −, apanha violentamente, é marcado a ferro e dado como morto após cair de uma ribanceira. É curioso observar que, no conto, Dionóra – a es- posa – foge com Ovídio Moura e “nhô” Augusto confronta-se com os capangas do major Consilva, inimigo seu também. No filme, Ovídio e o major Consilva são fundidos em um mesmo personagem.

Salvo por um casal de negros velhos, Augusto vive e trabalha na maior pobreza e contrição ao lado desse casal, convertendo-se a um profundo misticismo religioso de viés cristão. O início de sua conversão é marcado pela bela imagem da casinha em que se hospe- dara pegando fogo, símbolo de um passado que se quer recalcar completamente. Dali parte com os velhos para outro lugar, longe dos seus inimigos e de todos que, porventura, pudessem reconhecê- -lo. “Nhô” Augusto busca, a partir de então, controlar seus ím- petos de vingança e de violência, transformando-se em outro tipo de homem. No entanto, o fogo queima no interior desse homem convertido, daí ele se dedicar ao trabalho árduo até debaixo de forte chuva, como indica uma longa sequência do filme.

As tentações não faltam, como ao conhecer Joãozinho Bem- -Bem, chefe de um bando de jagunços, ele mesmo homem muito corajoso. Os dois ficam amigos e Augusto é convidado para acom- panhar o grupo, mas acaba recusando, em que pese o seu visível interesse pelo tipo de vida dos jagunços e por suas aventuras.

Após algum tempo, ele cai na estrada em busca de “sua hora e vez”, reencontrando assim Joãozinho Bem-Bem, o qual fora acertar

contas com uma família de pobres camponeses, cujo filho havia assas sinado o cabra Juruminho – ao qual o protagonista tinha se afeiçoado anteriormente. Apesar da amizade por Bem-Bem e da afeição pelo jagunço assassinado, Matraga defende a família e duela violentamente com o chefe dos jagunços, o que resulta na morte de ambos. O conflito do protagonista com o bando de jagunços é um dos grandes momentos do cinema brasileiro, pela sua notável mise-

-en-scène – e nesse sentido merecem destaque o plano dentro da

igreja em que ele ainda está fisicamente do lado de Joãozinho Bem- -Bem, mas se vira contra esse personagem para proteger a família e lutar, tudo marcado por uma estátua de Cristo com a cruz, a qual divide ambos os lados e também está voltada “contra” o chefe dos jagunços, bem como os planos de luta, nesse mesmo ambiente, com destaque para aquele que começa com a câmera no alto da igreja mostrando todos os homens do bando mortos, com exceção do chefe, e desce até quase uma altura mediana, deslocando-se em semi círculo para mostrar o enfrentamento pessoal entre “nhô” Au- gusto e Bem-Bem.

Como já observei, o filme, assim como o conto, relaciona a vio- lência com o misticismo religioso, fundindo as duas experiências. Não que haja qualquer ligação de tipo causal entre os dois ele- mentos – o que estaria bem ao gosto de certas interpretações socio- logizantes do cinema dos anos 1960, as quais tenderiam a atribuir a violência à histeria religiosa; antes, o filme cria um vínculo de soli- dariedade entre eles. Para que Augusto tenha a sua glória é preciso que esteja envolvido numa situação na qual violência e misticismo estão entrelaçados, levando-o a uma experiência transcendente. Longe de ser surpreendente, essa ligação se constitui na própria base de várias das narrativas marcantes da cristandade, das quais a Paixão de Cristo é apenas a mais conhecida, mas está longe de ser a única.

Uma diferença parece-me básica entre o conto e o filme e tem relação com a questão do realismo. Enquanto Guimarães Rosa em suas obras confronta, segundo Alfredo Bosi, a “narração con- vencional porque os seus processos mais constantes pertencem às

esferas do poético e do mítico” (Bosi, 1994, p.433), o filme vai numa direção diversa e propõe em geral uma notável sobriedade da linguagem cinematográfica traduzida em certa distensão tem- poral e na contenção nas interpretações, ambas características que se podem identificar como ligadas a determinada tradição do ci- nema moderno de extração realista. O filme só possui uma pos- tura mais rebuscada nos momentos-chave que determinam novas experiências do personagem central, como a surra que ele leva, a luta com o “burrinho valente” e o confronto final com Joãozinho Bem-Bem; não por acaso, todas elas situações muito violentas. Essa construção estética gera uma representação marcante da dure za dos homens e do ambiente do sertão das Minas Gerais, mas, também, expressa de forma eloquente os momentos cruciais na vida de “nhô” Augusto.

Ainda em relação ao realismo, um dos aspectos mais fortes no filme em questão diz respeito às situações de epifania, tal como prescrita por Guido Aristarco e já mencionada neste texto. É pos- sível apontar como exemplos de situações de epifania a cena em que pela primeira vez o personagem central pita um cigarro após o longo período de sua convalescença, e, principalmente, na belís- sima sequência em que ele doma o “burrinho valente”. Em ambas as situações dramáticas marca-se como que o despertar de “nhô” Augusto para uma nova vida, na qual o personagem tem a crença em Deus como forma de redenção.

Marcante também na construção da transformação anterior- mente referida é como o filme agencia determinados elementos reli giosos. Note-se que, apesar de a cruz e outros símbolos cristãos se fazerem presentes desde o início filme, a tendência é de eles não pertencerem ao universo de “nhô” Augusto, como sua própria filha vestida de “anjinho” descendo da sua garupa logo na abertura da película ou o plano no qual outras crianças vestidas de “anji- nhos” fogem ao ver a chegada de jagunços, os quais, em plena função religiosa, promovem grande confusão na cidade, perse- guindo pessoas por ordem do protagonista. Mas, após a conversão, marcada pela conversa com o padre, Augusto Matraga passa a car-

regar um crucifixo no peito enquanto não chegam sua hora e vez e, no confronto final, quando investe contra o bando de Joãozinho Bem-Bem dentro da igreja, ele toma uma lança como arma – aliás, ela está na própria igreja – remetendo à popular figura de são Jorge – e aqui novamente há toda uma complexa imbricação entre misti- cismo religioso e violência.

A hora e vez de Augusto Matraga afigura-se como filme que,

além de construir uma representação do homem brasileiro, como queriam os projetos do Cinema Independente e do Cinema Novo, consegue representar a própria abertura da vida humana para o inde terminado, ou seja, para nossa falta de controle absoluto da vida – questão central em alguns diretores realistas do cinema mo- derno, tais como Vittorio de Sica em Umberto D (1951) ou Roberto Rossellini em Europa 51 (1952).

Momento em que essa indeterminação da vida se encontra ex- pressa no filme é o seu desenlace, no qual o personagem central tem “sua hora e vez” justamente contra o seu amigo Joãozinho Bem- -Bem – personagem que, aliás, apresenta vários pontos de contato com “nhô” Augusto, pois ambos são valentes e violentos, porém o chefe dos jagunços não acredita muito na religião, bem ao con- trário do seu “parente” Augusto Matraga.

Para além do confronto, também se deve salientar o enigmá- tico final, no qual o personagem central, no seu derradeiro mo- mento, não consegue falar o próprio nome e emite com todas as forças um grito lancinante – imagem vista por nós a partir de uma

plongée muito marcada. A última imagem do filme, um padre

diante do altar e com o rosto crispado pela incompreensão em re- lação a toda aquela violência, também reforça essa sensação de falta de controle diante da vida, por mais que se busque isto. “Nhô” Au- gusto surge aqui também como personagem bastante complexo, pois, ao mesmo tempo em que busca se controlar por meio da reli- gião católica e da autocontenção, também acredita que há de chegar a sua “hora e vez” por meios que ele próprio não dominava.

É ainda de se assinalar que o final da película destoa do final do conto, pois, além de na obra de Guimarães Rosa ele não trans-

correr numa igreja, a morte de “nhô” Augusto possui um tom de reconciliação do protagonista consigo próprio, pois ele reconhece João Lomba, identifica-se e pede a este que mande notícias suas para a ex-mulher e a filha. Já no filme há em certa medida outro tom, expresso pela extrema agonia e dor do protagonista na hora da morte.

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 65-74)