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A busca da satisfação libidinal faz de Bocage agente de sofri- mento, mas também vítima. O terceiro bloco narrativo aborda a maturação de sua personagem, substituindo a definição do amor como liberdade sexual por um horizonte de liberdade em um sen- tido político. Alargando a esfera pessoal do amor para a pública, esse canto faz coincidir a transgressão espacial e a coexistência das diferenças linguísticas com o desejo generalizado pela mudança do

statu quo político, isto é, de um final do autoritarismo, seja em

forma do império falido, da Inquisição desenfreada ou de sua forma contemporânea como ditadura militar.

Na primeira sequência do terceiro canto, Bocage se encontra preso no Convento de São Bento, em Portugal, onde conta com o apoio de dois frades (Denis Victorazzo e Diaulas Ullysses). Não há uma relação de causa e efeito, mas é fácil estabelecer uma ana- logia entre a frustração do poeta e as consequências do canto ante- rior quando Bocage formula uma autocrítica à sua poesia e à sua pessoa.

Sentindo-se impotente em termos políticos, fica-lhe, con- tudo, o apreço pela língua portuguesa, língua de Camões que, este sim, ainda podia cantar atos heroicos. O debate da lusofonia chega nesse canto ao seu auge através de um encontro imaginado entre Bocage, seu amigo Jocino e um enviado de Apolo (Ricardo Bi- ganó). Esse enviado lhe aponta a possibilidade de “fecundar o Quinto Império”, uma contraproposta ao império cristão imagi- nado pelo padre Antônio Vieira, que desejava que Portugal lide- rasse a substituição de todos os impérios anteriores. Esse império é um império da palavra, inspirado pelo amor. Para o mensageiro, a ligação entre a língua, no caso de Bocage, a língua portuguesa, e o domínio do mundo pelo amor é intrínseca, integrada na ordem dos consoantes AEIOU. Ele explica: “Amori est imperare orbis universo” (é destino do amor dominar todo o mundo). É uma rea- firmação do amor como metáfora da liberdade, mas agora focado na língua e não na sexualidade.

Vale observar que a voz do mensageiro apolíneo participa da estruturação do filme, pois enuncia em latim títulos para as dife- rentes cenas ou sequências que comentam de forma muito diversa a narrativa. Essa estratégia narrativa possui dois efeitos: por um lado distancia, bem no sentido brechtiano, o espectador dos acon- tecimentos, mas, por outro, atribui uma perspectiva onisciente, uma voz de autoridade que sustenta a existência de uma esfera su- blime e a possibilidade de invocá-la através da arte bocagiana.

O último poema do filme, “Liberdade querida, e suspirada”, que fecha esse canto, serve como exemplo de uma arte política que expressa o amor pela liberdade e, por isso, é capaz de trazer trans- formações. Quando Bocage passa com dois frades por Óbidos, uma vila construída em cima das ruínas de uma cidade romana, é cantado com sotaque português por uma mulher, a Liberdade (Eugénia Melo e Castro), que veste um traje típico nacional. Relem brando a Revolução dos Cravos, ela oferece essa flor a Bo- cage, que também pronuncia seu poema com sotaque brasileiro:

Liberdade querida, e suspirada Que o despotismo acérrimo condena: Liberdade, a meus olhos mais serena Que o sereno clarão da madrugada. Atende à minha voz, que geme e brada Por ver-te, por gozar-te a face amena; Liberdade gentil, desterra a pena Em que esta alma infeliz jaz sepultada. Vem, ó deusa imortal, vem maravilha, Vem, ó consolação da humanidade, Cujo semblante mais que os astros brilha: Vem, solta-me o grilhão da adversidade; Dos céus descende, pois dos céus é filha, Mãe dos prazeres, doce Liberdade!

(Bocage, Liberdade querida, e suspirada, [s.d.].)

Alterando novamente o significado de um poema, este re- lembra agora a revolução que deu fim à ditadura portuguesa, bem como ao seu império. É um momento altamente simbólico, tanto no nível político quanto no linguístico. A entrega da flor é um gesto alegórico sobre a relação entre arte e política, reconhecendo o poten cial da poesia de Bocage como inspiração para movimentos transgressores, no caso, revolucionários. Mas é também um gesto alegórico sobre o relacionamento entre Portugal e o Brasil, cultural e político, pois a mulher que representa a liberdade portuguesa a confia ao ator brasileiro, em um ato que poderia ser interpretado como uma liberação dos laços coloniais.

Epílogo

Por causa da qualidade libertadora da poesia bocagiana, o filme reconhece em seu desfecho Bocage como um poeta trans- gressor. Na última sequência, na qual ocorre simbolicamente sua morte, ele recebe de fato a consagração por Apolo através de uma coroa de honra. Mas não a recebe como poeta português, senão como um autor cuja obra foi escrita em português e cujos versos ressoam pelo espaço onde se falam as diferentes línguas que par- tiram dessa matriz.

Conclusão

Evidentemente, Bocage não é um filme histórico ou biográfico. Está longe de ser uma ilustração da vida e obra do poeta, ou uma homenagem, pois apresenta-o como vítima, agente e transgressor de um chauvinismo que alcança todas as esferas. De fato, o filme é um estudo crítico da poesia bocagiana em relação ao seu potencial libertador quando canta o amor e o sexo, e uma revisão de seu signi- ficado no contexto da lusofonia, isto é, nos países onde se fala o português das mais variadas formas.

Essa revisão aponta para a relação paradoxal entre o desejo de libertação sexual e as restrições que os sentimentos e relações hu- manos impõem. Assinala, contudo, a possibilidade de libertação quando a libido deixa de imperar e o amor se torna sinônimo de liber dade. A procura desse império do amor possui dois elos: pri- meiro, a ausência de uma hierarquia entre as pessoas das diferentes culturas que falam os versos bocagianos com as mais diversas infle- xões, e, segundo, a ausência de um centro nesse espaço lusófono que alberga em uma mesma cena imagens da natureza e de lugares de referência cultural do Brasil e de Portugal.

Sem apresentar uma relação de causa e efeito, a estrutura do filme é aberta, sendo a criação poética como forma de alcançar a liberdade sua espinha dorsal. Como Bocage, Djalma Limogni

Batista cria um universo próprio onde os poemas surgem como elemento mais reconhecível, enquanto as referências biográficas e históricas servem apenas como material para elaborar uma estética que – como a poesia do autor setecentista – rompe com qualquer limite. A montagem das imagens e o uso de fragmentos dos poemas de Bocage exige do espectador que termine a proposta do realizador e que desenvolva esse sentido crítico. Essa abertura significa uma transgressão. Transgredir, por outro lado, significa entender a di- mensão transnacional do legado colonial que consiste na ausência de centro e periferia. Bocage substitui, assim, a ideia do Quinto Im- pério vieirense por uma revisão da lusofonia nos moldes da CPLP. O “triunfo do amor” como meio de libertação pessoal e política celebrada no filme pode não apresentar uma ideia inovadora – pois está em vigor pelo menos desde os anos 1960 –, porém, ao discuti- -la no contexto do colonialismo, oferece uma perspectiva inédita. O filme constrói um universo cujo centro não é a poesia de Bocage, mas a afirmação de que o amor cantado nela só faz sentido quando é uma metáfora de liberdade. Como se fosse uma releitura de Pessoa, os poemas de Bocage são no filme de Djalma a língua que se torna uma realidade não só viva mas única, uma língua através da qual é possível inventar-se, ou, como diria Theodor Adorno (2003),2 baseado em sua redefinição do sublime kantiano para a

arte moderna, libertar-se.

Bocage – o triunfo do amor procura abrir a perspectiva sobre

conceitos e ideias, principalmente sobre a relação entre amor e liber dade nos espaços onde se falam as línguas portuguesas. É uma proposta que convida o espectador a visualizar essa diversidade lin- guística e a deslumbrar-se com a proximidade dos lugares mais dis- tantes onde se manifesta. Podemos contemplar a beleza dos poemas bocagianos através dela, mas somos também confrontados com

2. Enquanto Immanuel Kant via a sensação do sublime restrita à natureza, em meados do século XX Theodor W. Adorno defendeu-a como sentimento esti- mulado pela arte moderna, sugerindo que, no momento da percepção do su- blime, o sujeito se liberta do encarceramento em si mesmo.

seus limites. Somos, sobretudo, convocados a experimentar o su- blime da liberdade, que só existe em um mundo onde as pessoas convivem sem hierarquias em um espaço sem fronteiras.

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No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 103-110)