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Aproximações sociológicas

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 148-152)

Comentando trecho de Sade, no Excurso II do Dialética do

escla recimento, a certa altura dizem Adorno e Horkheimer que a

fisionomia do assassino deve revelar a maior calma, e, citando Ju- liette, completam:

[e] faça reinar nela a calma e a indiferença e trate de adquirir o maior sangue-frio possível nessa situação […] se você não tivesse a certeza de não ter nenhum remorso, e jamais a terá senão pelo hábito do crime, se, eu dizia, você não tivesse a inteira certeza disso, em vão você trabalharia para se tornar senhora do jogo de sua fisionomia. (Adorno; Horkheimer, 1986, p.93.)

Na citação, o destaque dos dois autores é para a calma e a indi- ferença, que exclui o remorso do ato praticado. No entanto, não deixa de chamar atenção a ideia de “jogo de sua fisionomia”, que retoma o caráter de mobilidade expresso anteriormente. Mobili- dade que associamos habitualmente a outras partes do corpo e que muito insolitamente pensamos como predicado do rosto.

No entanto, não apenas a mobilidade é afastada da ideia que fazemos a respeito do rosto, em detrimento de outras partes do corpo, como também, lembrava Norbert Elias, “é comum perder- -se de vista o fato de a cabeça da pessoa, e especialmente seu rosto, ser parte integrante de seu corpo”, sendo importante para a “com- preensão da natureza da identidade-eu humana” e da “identidade como essa pessoa em particular” (Elias, 1994, p.155). Nenhuma outra parte do corpo encontra-se

tão inequivocamente no centro de sua identidade-eu, tanto na consciência de outrem como na dela mesma, quanto seu rosto. E é o rosto que mostra com mais clareza a que ponto a identidade-eu está vinculada à continuidade do desenvolvimento, desde a in- fância até a extrema senectude. (Ibidem, p.155.)5

5. Parte III: mudanças na balança nós-eu − 1987, p.127-93, particularmente, p.155-61.

A palavra “continuidade” em Elias já nos remeteria à noção de processo e, portanto, de movimento. Porém, o autor é mais explí- cito, ao pontuar que

O exemplo do desenvolvimento da pessoa, e particularmente de seu rosto, talvez facilite a compreensão de que, no decorrer desse processo, não precisa haver nada que se mantenha imóvel e que seja absolutamente imutável. A identidade da pessoa em desen- volvimento repousa, acima de tudo, no fato de que cada fase pos- terior emerge de uma fase anterior, numa sequência ininterrupta. (Ibidem, p.156.)

Tal mobilidade exprime não apenas a maleabilidade da face, que possui um movimento que não percebemos ou que temos difi- culdade de perceber, como também indica a particularidade do rosto; afinal, pergunta Elias,

Que ato do destino terá promovido o desenvolvimento das estru- turas biológicas que facultaram aos descendentes humanos dos animais conquistarem o autodistanciamento necessário para apren- derem a falar e a dizer “eu” a respeito de si mesmos? E mais, que ato do destino terá permitido que os rostos relativamente impassí- veis de nossos antepassados animais se transformassem nos rostos extraordinariamente móveis e individualizáveis que figuram entre os traços biológicos singulares do homem? (Ibidem, p.157-8.) Assim como não sabemos a razão de os seres humanos serem os únicos organismos capazes de distinguir configurações sonoras que se modificam de grupo para grupo (a comunicação é específica da sociedade e não da espécie), não sabemos também

que acontecimentos repetitivos, durante milhões de anos, terão levado os seres humanos a serem biologicamente dotados de uma fisionomia altamente individualizável, com uma musculatura

facial dúctil, capaz de assumir marcas diferentes conforme a expe- riência individual. (Ibidem, p. 158.)

O rosto é a parte do corpo apta a “trazer uma marca individual diferente” que permite reconhecer os outros como indivíduos dife- rentes, em grande medida, em virtude da “moldagem nas partes do corpo em torno da boca e dos olhos passível de ser aprendida e, por- tanto, individualizada” (ibidem) ou da “maleabilidade das partes que circundam os olhos, o nariz e a boca, a ponto de cada pessoa, especialmente do ponto de vista da participação num grupo, poder ser reconhecida”(ibidem, p.159):

Vitrine da pessoa, […] Talvez possamos supor que a função pri- mordial da moldagem individual diferenciada do rosto humano tenha sido um meio de identificar os membros conhecidos de pe- quenos grupos, juntamente com sua função como meio para nos informar sobre suas intenções e sentimentos. (Ibidem, p.160.) Somos particulares e únicos pelo nosso rosto, e isso significa que somos reconhecíveis pelo outro, existimos por existir juntos a outros indivíduos que nos reconhecem como diferentes dos demais (somos sociais). Mas não apenas. O rosto revela uma história, que é individual e da espécie, que nele se inscreve por meio de configura- ções que exprimem intenções, sentimentos e a passagem do tempo.6

Na literatura, um dos aspectos manifestos da radicalidade dessa ideia parece estar em Álvaro de Campos, sobretudo quando o poeta se refere às máscaras, quando aparecem como sendo o pró-

6. A passagem pelos textos de Simmel; Adorno e Horkheimer; e Elias está longe de esgotar a preocupação sociológica com o rosto. O recorte deve servir como impulso para avançar na discussão realizada por outros autores, tanto do ci- nema, como a obra dedicada ao tema escrita por Jacques Aumont (Du visage

au cinema, 1992), quanto das Ciências Sociais, como o trabalho de Richard

Sennett (1988), ao abordar a máscara, e o de Courtine e Haroche (2007), entre outros.

prio rosto.7 Ela, a máscara, é o próprio rosto, todos os rostos são

máscaras, todos os rostos adquirem a matéria do tempo, sendo “devir”. Não a máscara material, mas a imaginada, talhada no rosto como a matéria do tempo. Isso nos remete a uma passagem do filó- sofo Gaston Bachelard, que propunha descobrir o que se dissimula atrás de um rosto tomando-o como se fosse máscara, e aconselhava agir perante as máscaras de maneira diferente daquela com a qual reagimos diante das caricaturas. Estas, dizia, são vistas e perce- bidas como imutáveis:

Uma caricatura é vista, é percebida. Uma máscara pode ser usada, revela uma solicitação à dissimulação, oferece-se como instru- mento de dissimulação. Não é simplesmente percebida − é profun damente “sentida”. […] Em suma, a máscara é aqui emi- nentemente ativa. E revela ainda mais sua atividade, adapta-se mais ainda ao sujeito que é virtual. O sujeito a reforma ao mesmo tempo que a forma. (Bachelard, 1991, p.168.)

É ativa, pois adapta-se a um sujeito ainda virtual, na medida em que passa de virtual a real. Nesse aspecto, a máscara pegada à cara do verso de Campos, isto é, uma máscara que é rosto, revela o quanto o rosto nos identifica como único e diferente no mesmo passo que nos identifica perante os outros, que reconhecem nele sentimentos e intenções que ficaram configuradas no rosto como modos de sentir inteligíveis pela sociedade. Só pode interpretar a máscara quem sente profundamente e vive a máscara como rosto, dizia Bachelard.

A atividade presente na ideia de “máscara”, como bem lem- brou Bachelard, mostra que ela não é esconderijo, mas existência para o outro e pelos outros. Dizia Poe que, quando queria saber quais pensamentos e sentimentos passavam pela cabeça de alguém,

7. Penso no trecho de “Tabacaria” e no poema que tem como primeiro verso “Depus a máscara e vi-me ao espelho...” (Campos, 1990, p.199 e 252).

imitava-lhe as feições, e esperava nascer em seu espírito os pensa- mentos e sentimentos proporcionados pelas feições imitadas.8 To-

davia, se a máscara é dissimulação e simulação, tal relação só pode ser de jogo para poder ser atuada enquanto conhecimento: a de que o rosto é máscara, são máscaras.

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 148-152)