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Carolin Overhoff Ferreira

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 94-97)

Introdução

Bocage – o triunfo do amor, realizado por Djalma Limongi Ba-

tista em 1997, participa de um grupo de filmes que surgiu depois da assinatura de um protocolo de coprodução entre Portugal e o Brasil em 1994, baseado em um acordo prévio de 1981. A reaproxi- mação entre antigo colonizador e ex-colônia resultou da crise diplo- mática após a assinatura do Tratado de Schengen da Comunidade Europeia, ou seja, em consequência das drásticas medidas tomadas contra imigrantes brasileiros, desrespeitando assim o Tratado Bila- teral de Igualdade de Direitos entre ambos os países (Feldman- -Bianco, 2002, p.385-415). O regulamento do protocolo prevê a abordagem de um tema que diz respeito à cultura compartilhada pelos dois países (Ancine, 2007).

Na verdade, o filme não era pensado como coprodução. Acabou contando com o apoio do órgão português que financia o cinema, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (na época Icam,

1. Professora de Cinema Contemporâneo, na Universidade Federal de São Paulo,

hoje ICA), depois da intervenção do produtor António Cunha Telles. Este veio auxiliar o realizador quando enfrentou os cortes que o cinema brasileiro sofreu durante o governo de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito diretamente após o final da ditadura. Embora a colaboração tenha surgido devido a neces sidades financeiras, Bocage – o triunfo do amor estabelece, de fato, um diálogo transnacional sobre um dos representantes má- ximos da poesia portuguesa. Apesar disso, está longe de ser uma homenagem. Pelo contrário, apresenta uma reflexão sobre o mundo lusófono sob o efeito de dois traumas: a ditadura brasileira seguida pelo fracasso da redemocratização no momento do impeachment de Collor de Mello, e quase meio século de salazarismo seguido pela crise identitária após a Revolução dos Cravos, que encerrou quinhentos anos de império português. Em outras palavras, lança um olhar contemporâneo sobre o legado da história imperial e colo- nial de cinco séculos.

Esse olhar oferece uma perspectiva crítica sobre uma das ma- neiras de maior impacto com que Portugal tentou lidar com seu trauma: a ideia da lusofonia, fundamentada na famosa frase de Fernando Pessoa (1931) “A minha pátria é a língua portuguesa” (Pessoa, 1931). Já servia em 1957 como escudo utópico do crítico literário Agostinho da Silva (1990, p.97-8) quando este, exilado no Brasil, sugeria que ambas as partes do Atlântico tomassem me- didas para criar uma comunidade, baseada na cultura e linguística compartilhadas. Após o 25 de Abril, a ideia de usar a língua como metáfora de cultura ganhou contornos nacionalistas, sobretudo quando o Tratado de Schengen tornou necessário o pagamento da “dívida” colonialista, ao mesmo tempo que o desejo de manter laços e influência nas ex-colônias fazia se sentir em Portugal. A língua portuguesa foi identificada como princípio unificador e pedra angular de uma identidade que, devido à sua dimensão trans- nacional, era apresentada como superior a qualquer identidade na- cional. A criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 1996 como órgão supranacional que promove relações políticas e socioculturais entre o antigo colonizador e suas ex-colô-

nias emergiu como estratégia importante para institucionalizar a interpretação da língua portuguesa como signo mais visível de uma cultura compartilhada pelo Brasil, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) e o Timor-Leste.

Embora Bocage apresente uma visão transgressora em relação a essa estratégia, o filme abre os créditos com a afirmação “Este é um filme da CPLP”, parecendo abraçar de forma acrítica a criação desse espaço supranacional que, por defender similaridade cultural e histórica em detrimento do reconhecimento da dominação e da herança colonial, causou suspeitas no mundo acadêmico. Foi con- testado por autores como Dejanhira Couto et al. (1997) e Bela Feldman-Bianco (2002), entre outros, que o interpretaram como espectro de um novo império português, mesmo que informal. Eduardo Lourenço esteve entre os primeiros críticos portugueses a examinar a criação da CPLP, alertando sobre a utilização abusiva da frase pessoaniana. O autor esclarece que, para Pessoa, a língua era algo extremamente pessoal, que pertencia simultaneamente a todos e a ninguém:

Isto não abre para nacionalismos tribais, para patriotismos de exclusão da universalidade alheia. A nossa relação com a língua é de outra natureza e é outra a pátria que nela temos ou donde somos. Por isso a tão famosa frase quer dizer apenas: a língua por-

tuguesa, esta língua que me fala antes que a saiba falar, mas, acima

de tudo, esta língua que através de mim se torna uma realidade não só viva mas única, a língua através da qual me invento Fer- nando Pessoa, é ela a minha pátria. (Lourenço, 1999, p.126.) Em vez de participar da celebração da identidade linguística como metáfora cultural, Lourenço argumenta em favor de um reconhecimento das diferenças das línguas portuguesas e de suas culturas, reconhecendo-as como resultado de profundas transfor- mações na África e no Brasil. Insiste que, após a descolonização, é preciso parafrasear Pessoa: não se deve falar em uma língua por- tuguesa, mas ter consciência da pluralidade dos países, povos e

línguas, pois confundir uma única língua com uma única cultura levaria ao neocolonialismo.

Argumentarei que exatamente essa abordagem faz de Bocage

– o triunfo do amor um raro exemplo de transnacionalidade cinema-

tográfica. O filme a alcança através de duas estratégias, uma visual e outra textual, redefinindo, assim, cinematograficamente a luso- fonia: ouvem-se os versos do poeta setecentista em toda a diver- sidade de sotaques e inflexões das línguas portuguesas, porém, concomitantemente, vemos que os lugares colonizados ou visitados pelos portugueses constituem um espaço contínuo, igualmente di- verso, mas sem fronteiras. Os versos bocagianos atravessam o es- paço onde se fala português por causa de um objetivo compartilhado: ser livre. No início do filme, essa liberdade é associada principal- mente ao amor como satisfação sexual individual; mas essa satis- fação causa transtornos que abrem a perspectiva para uma relação mais intrínseca e política, tornando o amor sinônimo de liberdade. Como veremos, considerar o filme da CPLP não significa acreditar em uma única língua e cultura, mas em um espaço compartilhado onde o maior anseio é liberar-se de uma tradição de governança re- pressiva e autoritária. Bocage reinterpreta a frase de Fernando Pessoa, aceitando a identidade dos contrários, como diria Jacques Rancière (2009). Ou seja, no filme coexiste a identidade do desejo de liber- dade, que permeia todos os lugares, com a diferença linguística e cultural.

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 94-97)