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Passeio com Johnny Guitar,

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 53-58)

João César Monteiro realiza, em 1995, Passeio com Johnny

Guitar, um filme de quatro minutos. Faz parte do ciclo João de

Deus, que é o nome de uma personagem que inventa para o filme

Recordações da casa amarela, de 1989, e dura até 1998, no filme As bodas de Deus, último da trilogia. Tal personagem é o centro de

aventuras que terminam invariavelmente no hospital ou na prisão. Mas o traço decisivo é que é uma personagem ao mesmo tempo aristocrática e popular, citando os clássicos e vivendo nos am- bientes mais castiços e reconhecíveis de uma Lisboa pobre e em ruínas. Mais ainda, essa personagem tem uma dimensão performa- tiva forte, desempenhada que é pelo próprio João César Monteiro como ator, e parece ter como referência a figura do surrealista-abje- cionista português Luiz Pacheco, que teve na Lisboa dos anos 1960 e 1970 um papel preponderante de editor dos surrealistas, autor de

artigos e de contos de uma enorme limpidez de estilo e uma liber- dade sem limites. Mas Luiz Pacheco era uma figura que tinha exis- tência social também como marginal e vagabundo, expondo-se muitas vezes como alcoólico e pedinte e proclamando por essa mesma vida pública que era a sua – e repetia, de certo modo, exem- plos do decadentismo do final do século XIX com o prestígio de Verlaine, em Paris, ou Gomes Leal, em Lisboa – um grito de re- volta e uma recusa ativa, sem concessões. Nesse sentido, a perso- nagem de João de Deus, que é o ator e realizador João César Monteiro, configura um ato de poesia prática, de performance complexa, herdeira da qualidade dramática e interveniente das vanguardas.

Tentemos agora uma descrição de Passeio com Johnny Guitar. Esse poema cinematográfico é narrativo, ou épico, por oposição a Douro, faina fluvial, que é mais parecido com uma ode. Ou seja, é possível contar a sua história, é um objeto descritível. João de Deus, todo vestido de branco, regressa à casa, de noite, num bairro de Lisboa antiga, cumprimenta alguém que se encosta a uma om- breira, sobe as escadas e vai meter a chave na fechadura da porta de sua casa. Nesse momento, começa a ouvir-se a música da banda so- nora de Johnny Guitar: é a cena no saloon, de noite, em que Vienna e Johnny se reencontram. João de Deus interrompe o gesto e vai à janela que se abre ali, no patamar, para o exterior. E vê de lá, na casa em frente, uma mulher que penteia os longos cabelos com uma escova. Nesse instante, ouve-se a primeira réplica de Joan Crawford: “Having fun, Mister Logan?”. E o diálogo do filme de Nicholas Ray vai-se ouvindo, até que a rapariga dos longos cabelos dá conta de que estão a olhar para ela e se retira. Ele então entra em casa, enquanto a banda sonora de Johnny Guitar vai continuando sempre. Novo plano: vê-se João de Deus sentado à mesa, até que se levanta para ir à janela da sala, que dá para o casario de Lisboa. E, quando a abre, ouve-se Sterling Hayden dizer: “Look, Vienna, you just said you had a bad dream, we both had, but it’s all over” [Olha, Vienna, disseste agora que tiveste um sonho mau, ambos tivemos, mas já passou]. E, realmente, vê-se lá fora o clarear da manhã. É

então que Joan Crawford diz as suas duas frases maiores: “I have waited for you, Johnny. What took you so long?” [Eu esperei por ti, Johnny. Por que demoraste tanto?]. Então João de Deus volta para dentro, saindo de campo. E ficamos a ver a cidade que acorda len- tamente, enquanto se ouvem os primeiros gritos das crianças.

A composição fílmica é exposta no seu mecanismo minucioso, com a adequação de uma banda sonora a uma banda de imagens. A distância que separa as duas bandas – quer em termos de referência quer de cronologia – apenas sublinha a exatidão surpreendente da sua combinação. O resultado é uma emoção e uma ideia que surgem desse gesto de montagem. Depois, sabemos que a banda de imagem é realista e tem a ver com uma experiência concreta diretamente fil- mada, enquanto a banda de som é inteiramente subjetiva, dado que existe apenas na memória de uma personagem. Mais ainda, a ade- quação entre as duas bandas é realizada à maneira de uma alquimia, em que a realidade visual objetiva começa por contrastar e depois se funde com a realidade sonora subjetiva. Separadas por quarenta anos, imagens e sons vêm encontrar-se no presente. Como a cidade do último plano se liga com a cidade exterior do primeiro plano, criando uma espécie de cidade nova, circular. Na verdade, como se sabe, Johnny Guitar é o filme por excelência da cinefilia de que João César Monteiro é também devedor. É um filme mítico, um lugar de referência absoluto da memória artística na segunda metade do século XX. É mais que uma citação: é uma experiência, faz parte da memória, está tatuada na pele. Esse pequeno filme torna evi- dente o modo de inclusão da arte na nossa vida, mostra a íntima mistura do que somos e das imagens que também somos.

João de Deus – nome de poeta tornado nome de clown – é um herdeiro do cinema burlesco, mas também uma afirmação última através da narrativa na primeira pessoa. É um pouco como os filmes de Guru Dutt, Jean Cocteau, Orson Welles ou Jean-Luc Godard em que os realizadores também entram como atores, e que são aqueles em que aparecem mais expostos na sua singularidade. O fato de os realizadores escolherem ser eles próprios os protagonistas dos seus filmes contraria a dimensão ficcional deles, tornando-os

tecnicamente próximos do dispositivo lírico do discurso. Sublinha o carácter performativo que os aproxima, a todos, da grande tra- dição da vanguarda que é a nossa.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1979.

GUSMÃO, Manuel. Entrevista. Público, Lisboa, 27 jun. 2008. OLIVEIRA, Manoel. Manoel de Oliveira. Entrevista, catálogo da re-

trospectiva de 2005. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.87.

PASOLINI, Pier Paolo. Cinéma de poesie. Cahiers du Cinéma, Paris, n.171, p.55-64, 1965.

No documento Teatro, cinema e literatura: confluências (páginas 53-58)