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1. O S ISTEMA I NTERAMERICANO DE P ROTEÇÃO DOS D IREITOS H UMANOS

1.3. A I NSTITUCIONALIDADE I NTERNACIONAL E O D IREITO , U NIVERSAL

... as leis lógicas que governam em última instância o mundo intelectual, são, pela sua natureza essencialmente invariáveis, e comuns não só em todos os tempos e em todos os lugares, mas todas as questões, sejam elas quais forem, mesmo sem qualquer distinção entre aqueles que chamamos reais e as que chamamos quiméricas: basicamente, essas leis são observadas mesmo em sonhos... COMTE, A. Cours de philosophie positive, lição 52.

As instituições são um fenômeno da vida pois a vida é polaridade e, portanto, posição inconsciente de valor; em outras palavras, a vida é, de fato e de direito, uma atividade normativa. Perguntemo-nos – com Canguilhem (2002) – como se explicaria a normatividade essencial da consciência se não estivesse de alguma forma em germe na vida, na polaridade dinâmica da vida e a normatividade que a traduz.

Agora, por normativo se entende qualquer juízo que aprecia ou qualifica um fato em relação a uma norma, mas este tipo de julgamento está subordinado àquele outro que institui normas. Ou seja, no sentido pleno da palavra, normativo é aquilo que estabelece normas.

Instituir envolve a normatividade e a normatividade traduz um juízo de valor virtual que inclui o conceito geral de valor especificado em uma infinidade de conceitos de existência. É um termo equívoco, porque ao mesmo tempo designa um fato e um valor que o falante atribui a esse fato, em virtude de um juízo de apreciação assumido, o que não significa que isto seja uma atividade puramente individual. A ambiguidade é facilitada pela tradição filosófica realista, segundo a qual, uma vez que toda generalidade é sinal de uma essência e toda a perfeição a realização da essência, uma generalidade observável adquire o valor de uma perfeição realizada, um caráter comum adquire valor de um tipo ideal. Como um antídoto, valga o seguinte aviso e orientação:

Nesta área, é importante não confundir uma reflexão sobre a normatividade com a implantação de um pensamento normativo. (...) A exploração social e política da normatividade é uma coisa, a questão vital da ligação de um sujeito com a normatividade é outra. [...] Em outras palavras, ao evocar o jurídico, me mantenho a distância dos discursos de servilismo que, por motivos alheios à livre investigação, reprimem o direito e tentar colocá-lo, em nome dos critérios mudáveis da eficiência, entre os simples parâmetros que a gestão ultramoderna teria que considerar. (LEGENDRE, 1996, p. 22). Na fabricação da vinculação institucional a ficção opera de direito, pois trás da pergunta do incesto está a questão da normatividade. Neste lugar lógico da noção de ficção fundadora converge a essência da questão jurídica. A relação entre o poder de produzir normas e a ordem do vivo falante entrelaçam um quadro de legalidade que garante a diferenciação humana.

Esta entrada do sujeito humano nessa ordem de articulações é uma entrada jurídica – a entrada do sujeito humano na palavra, na ordem social do discurso – que consiste também na inauguração do Direito ou ordem mítica da Lei, sem a qual não haveria sistemas jurídicos plausíveis. Estes dois registros estão relacionados, mas são diferentes.

Cada sistema institucional organiza o seu mito fundador, mais precisamente a sua objetividade a partir do véu da verdade mítica, isto é, construí o escudo de seu habitat institucional, a estrutura no sentido latino deste termo de arquiteto, o discurso da relação humana com os objetos através dos quais canaliza-se a diferenciação subjetiva – uma diferenciação na que a sociedade, enquanto que todo que precede os elementos, é em primeiro lugar ela mesma parte numerada. (LEGENDRE, 1996, p. 108).

A proibição do incesto é meramente a forma vazia fundamental, vazia no sentido de que a proibição pode adquirir conteúdos históricos e sociais variáveis, sem prejudicar a sua natureza lógica. É o intangível de uma transmissão: tudo o que se sabe desse intangível é que designa a articulação do sujeito humano sob um estatuto que encarna a razão e sustenta a reprodução humana de uma geração para outra. Em o trabalho das referências, as variações históricas não afetam a necessidade estrutural de uma instância lógica que tem que ver com as demarcações sociais e subjetivas no coração da vitam intituere. Não há que esquecer que as instituições, no sentido jurídico mais violento (o sentido da vitam intituere), desempenham um rol fundamental na reprodução da humanidade: a diferenciação através da palavra.

No nosso tempo, as sociedades se sufocam, se empanturram de regras e prescrições codificadas. Mas este vasto universo de escritos normativos planteia de maneira aguda a questão de saber se ainda acreditamos no conceito de legislação ou se não tivermos deslocado a pergunta humana sobre a lei para outra parte que não seja aquela em que são elaborados os textos [...] Um fenômeno por vezes difícil de ocultar sob a aparente indolência funcional dos juristas: a paixão de interpretar a interpretação. Persegue o jurismo ocidental um ideal de interpretação que seria em última análise uma outra versão da Ciência ideal? – Os juristas de hoje têm alguma dificuldade em manter a necessária separação entre o espaço do intérprete e a Referência absoluta. É dizer, estariam prestes a se tornar teólogos da Ciência [e empreender] a guerra do verdadeiro pensamento jurídico. (LEGENDRE, 1996, p. 211).

Qual é, segundo os juristas, o fim do direito e em que consiste o desafio na era do desempenho técnico-científico? De compartilhar-se – conforme o sustenta a doutrina exposta em 1.1 – que “não cabem mais questionamentos ao respeito”, e que o desafio do século XXI, tanto teórico (“definir as condições mínimas para uma vida digna,

independentemente de qualquer situação de fato”) quanto prático (“oprimir em nome do ‘mínimo ético irredutível’, da ‘constituição moral comum' as justificativas culturais, desconsiderando-as como tais, fazendo uso do instrumento vital para a uniformização, fortalecimento e implementação da dignidade humana, suscetível de apreciação sempre que a referida dignidade não caminhe a contramão do que repugna ao mundo, especialmente ocidental”) é o que essa doutrina acadêmica fornece uma resposta, então já não se trata de instituição, mas de ideologia pura e simples e, portanto, terá que resolver- se a promover a divulgação das ciências e das técnicas como o reino puro e simples da força.

Diante desta perniciosa e falsa apresentação dos fatos, que contextualiza na institucionalidade internacional exigências de crueldade extraordinária, serva para a reflexão a interpelação que, na esfera de Júpiter, a Águia da Justiça dirige ao Dante, fazendo ouvir com uma voz que simultaneamente é a realidade do um e o encontro do múltiplo:

Now, who are you to sit upon the bench, judging for a thousand miles away, with eyesight that is shorter than a span?

(DANTE ALIGHIERI, Hollander’s translation – Paradiso, Canto 19 lines 79-81).

Longe do alardeado pela doutrina em questão, se trata da construção de uma ordem jurídica sem extinguir o questionamento, porque essa é a terra natal do Direito e sua referência é a justiça, é dizer, de acordo com a fórmula inigualável do Direito Romano, dar cada quem o seu. Em outras palavras: a cada quem seu lugar; irredutível, bem como o desconforto que cada cultura tem de enfrentar.

Então, neste trabalho se susterá que com o advento do estatuto jurídico dos direitos humanos o fator determinante é o desenho de uma proteção jurídica universal, e o desafio, ainda, respeitar a diversidade protegida, porque ela não é um obstáculo para superar nem uma resistência que reduzir.

Na ânsia de enfatizar a importância do epíteto em toda a sua amplitude, de bom grado se proporia aqui a grafia direitos, humanos, pois se para marcar esse ímpeto apresenta-se superabundando – pois o e os direitos são humanos – não o faze para promover crença ilusória nenhuma na existência de uma espécie de direitos não-mediada

por humanos, nem encorajando a ridícula arrogância teórica que postula uma gradação que progrediria de uma suposta não-humanidade para a conquista de direitos considerados autenticamente humanos, ou vice-versa. Como ensina Bidart Campos (1989) não se trata de uma adição sem rigor filosófico que levaria a uma confusão de pensar ou imaginar que poderia haver em outro setor direitos que não fossem do homem, mas o termo acusa que cada homem e todo homem é sujeito desses direitos por motivo ou por causa de ser um indivíduo da espécie humana, sendo, portanto, todo homem e cada homem titular deles. Não um só, nem uns poucos, nem alguns, mas todos e cada um.

São direitos subjetivos decorrentes da dignidade humana e a protegem [em sua vocação de ser], porque eles lutam a dominação arbitrária e apoiada em relações desiguais de poder social, pelas quais alguns seres humanos impõem aos outros ser instrumentos de seus próprios fins. [Quando falamos de direitos humanos] Falamos da ideologia universal nascida para enfrentar a opressão. (NIKKEN, 2010, p. 55).

Se trata, então, do reconhecimento das sociedades contemporâneas de que a proteção do direito se estende a humanidade, e que cada ser humano desfruta dela sem necessidade de título específico. Em seu nome, não é possível afirmar, sem contradição, a exclusão de sociedade ou indivíduo humano algum, nem de suas construções sobre o relacionamento da identidade/alteridade em co-pertença dos sujeitos e da cultura, por incompressível que seja a partir de certo olhar.

Ao tomar a categoria ou estatuto jurídico dos direitos humanos sob seu aspeto estrutural e dinâmica, destaca-se seu duplo aspeto, sistêmica e histórico, sem que o mesmo se imponha como antinomia. Esta dupla vertente há permitido se referir a eles, por metáfora, como direitos “naturais” e aparecendo trás várias “gerações”, no sentido de que a relação com este aspeto estrutural do direito é comparável à relação postulada com “coisas naturais” (iura quasi naturalia) e, como foi dito, não é nada mais do que a sua vocação universal, cuja abertura fornece marco ao progresso que através das suas conquistas históricas, cada época configura para salvaguardar sua reconquista. Assim, é possível argumentar que os direitos, humanos, são tão antigos quanto a própria humanidade, e ainda, de aparição muito recente, porque a categoria jurídica carrega em

nossa contemporaneidade uma novidade inegável: abre uma nova perspectiva de integração das escalas de proteção nacional e internacional. Desta notável determinação conceitual desprende-se o fio que leva à criação, sem dúvida, repleta de dificuldades, de âmbitos jurisdicionais com vocação tutelar universal da fábrica das ligações humanas, do ponto de vista jurídico.

A noção de direitos humanos corresponde à afirmação da dignidade do indivíduo frente ao Estado. A sociedade contemporânea reconhece que cada ser humano, em virtude de ser, tem direitos frente ao Estado, direitos respeito dos quais ele tem deveres de respeito, proteção, promoção ou garantia. O Estado, também, deve organizar a sua estrutura e sua ordem jurídico-política para garantir a plena realização dos direitos. Estes também determinam limites e metas da ação do poder público. [...] Que sejam inatos [inerente parece mais adequado, observando que o autor usa o mesmo adjetivo em outro trabalho] é conceitualmente relevante, mas a nota decisiva é que eles são objeto de proteção por parte do Estado e que, se este falha, existem meios de obtê-la internacionalmente. (NIKKEN, 2010, p. 56).

Com a Liga das Nações, faze sua aparição para instalar-se na cena internacional, the rule of law between countries sobre bases diferentes de as dos remotos e sempre frequentes intercâmbios diplomáticos entre os povos, ou seja, surge a ideia de criar uma jurisdição internacional universal. Para promover a cooperação dentro da primeira organização portadora dessa ideia, importava que seus membros aceitassem e sustentassem certos compromissos, em conformidade com o Pacto constituinte da Sociedade das Nações (GINNEKEN, 2006) – de acordo com a exposição de motivos desse Pacto: manter a luz do dia relações internacionais baseadas na justiça e honra; observar estritamente as prescrições do Direito Internacional, reconhecidas, doravante, como regra de conduta efetiva dos Governos; fazer que reine a justiça e respeitar escrupulosamente todas as obrigações dos Tratados nas relações mútuas dos povos organizados.

O primeiro sinal que atestaria que as potências mundiais da época não estariam à altura da tarefa reside no fato de que nem todas se integraram na organização, e aquelas que o fizeram assim não deixaram de provocar, com os seus incumprimentos à letra e ao espírito de sua própria criação, que ela se tornara impotente para garantir minimamente o

mandato para o qual fora fundada. Esta já era a valorização do seu secretário-geral, Joseph A. Avenol em 1934:

É de lamentar, mas é natural que as grandes potências, particularmente, sejam incapazes de chegar a um entendimento em face das grandes dificuldades e as constantes mudanças que enfrentam. Mas é ainda mais lamentável que a responsabilidade por essa impotência deva ser posta à porta da Liga das Nações. [...] A Liga, é verdade, existe para assegurar a cooperação entre os seus membros. Mas como ela pode fazê-lo, e como ela pode ser convidada a assumir uma responsabilidade distinta da dos seus principais membros em relação a problemas com os quais não foi convidada a lidar? (AVENOL, J. A., 1934, p. 12).

Com a Organização das Nações Unidas, the rule of law between nations legado por sua antecessora é reafirmado, tendendo a reencontrar o sentido de sua produção, ou seja, orientando à implantação de uma proteção jurídica que se torne em verdadeiro pilar do espírito das leis: afirmam-se, com vigor renovado, as dimensões internacionais dos direitos humanos, moldando-se na conceição da proteção jurídica (bem) entendida como mais do que apenas uma prerrogativa única e exclusiva das instituições domésticas. Este reconhecimento, e sua expressão normativa, impactam sobre o direito constitucional – nacional e internacional.

A dimensão universal dos direitos humanos permeia as relações internacionais, e está ligada ao conceito de Estado de Direito (rule of law) – na medida em que significa o estabelecimento de limitações incindíveis ao exercício do poder público. No conjunto das duas notas - inexorabilidade da limitação do poder público - encontram-se as bases sobre as quais se erguem as novas jurisdições internacionais, consequência obrigada, em boa logica, daquelas notas. O reconhecimento, a proteção e a garantia dos direitos humanos definem o âmbito de atuação do poder público, dando nova configuração ao Estado de Direito. Precisamente, a luta pelo que hoje chamamos de direitos humanos tem sido – e continua a ser – a que se empreende para circunscrever e condensar o exercício do poder público no pleno respeito dos direitos e liberdades fundamentais dos seres humanos.

Este é um ponto conceitualmente capital para entender completamente a questão dos direitos humanos. [...] A nota

característica das violações aos direitos humanos é que elas se cometem desde o poder público ou graças aos meios que este torna disponíveis àqueles que o exercem. (NIKKEN, 1994, p. 27).

Assim, em menos de 60 anos, graças ao esforço incansável – ligado ao não menos duradouro sofrimento dos povos – de diferentes movimentos nacionais e internacionais em defesa do direito, a partir da conceição das dimensões internacionais dos direitos humanos, ganha desenvolvimento, em ritmo alucinante, um ramo distintivo dentro do Direito Internacional Público, com a sua consequente institucionalização jurisdicional; devir este cuja importância não pode ser subestimada e em cuja rota de trabalho reina a diversidade. Na dimensão universal do Direito, o caminho não é traçado nem seu trânsito validado pela homogeneização, porque a homogeneização nunca foi e nunca será o ideal das organizações humanas.

Se eu soubesse que uma coisa útil para a minha nação seria ruinosa para outra – disse Montesquieu (Cahiers, 1942, p. 10, apud ROUDINESCO) – não a proporia ao meu príncipe, porque sou um homem antes de ser francês, ou, porque sou necessariamente homem e apenas por azar sou francês. Se eu soubesse de algo que for útil para mim e ruim para a minha família, tentaria tirá-lo do meu espirito. Se soubesse de algo que seja útil para a minha família e que não o fosse para a minha pátria, tentaria esquecê-lo. Se soubesse de algo que seja útil para a minha pátria, mas prejudicial para a Europa e nocivo para a raça humana, o consideraria um crime.