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A identificação do trabalho executado e o controle estendido

4 O TRABALHO NAS PACKING HOUSES DE MANGA DO VSF: ENTRE

4.2 Controle, regulação e rastreabilidade nas packing houses: o

4.2.3 A identificação do trabalho executado e o controle estendido

Não se deve ignorar o fato de que as “orientações” contidas nos protocolos das certificações carregam princípios de organização da produção, baseados na segmentação dos processos e trabalhos, impelindo maior controle e monitoramento sobre as atividades desenvolvidas. Um corolário que acaba contribuindo para a organização das relações sociais de produção a estados de acompanhamento integral e inspeções regulares diretamente atuantes sobre os trabalhadores. As operações que envolvem os tratamentos fitossanitários atuam dentro de uma margem já estabelecida pelas normas e regulações das certificações internacionais, em que a preocupação central refere-se ao cumprimento integral dos padrões (tratamentos, produtos e qualidade da água utilizados). As atividades dos operadores de câmara fria, assim como aquelas desempenhadas pelos montadores de pallets, possuem uma rotina fixa praticamente invariável, na qual as principais mudanças, notadas durante a jornada de trabalho, se relacionam à intensificação do ritmo de trabalho em decorrência de algum ajuste determinado pelas chefias. Os trabalhadores responsáveis pelo descarregamento da manga82e as embaladoras são aqueles cujas atividades envolvem maiores possibilidades de falha (derrubada do fruto, erro na seleção, disposição errada nas caixas, entre outras) e, por isso mesmo, acabam sendo aqueles cujo acompanhamento incide mais intensamente.

Dentro deste contexto, entre as atividades laborais desenvolvidas nas packing houses, as embaladoras são responsáveis por aquelas que possuem maior importância na apresentação final do produto, servindo como diferencial comercial nas gôndolas dos supermercados estrangeiros (CAVALCANTI, 2004). Esse trabalho manual de seleção e composição final das caixas de manga exportadas é agregado ao produto de forma identificada, isto é, discriminando o trabalhador responsável pelo embalamento. Um dos pressupostos da rastreabilidade empregada nesses itens é a capacidade de identificar, ao longo da cadeia, os sujeitos envolvidos nas fases da produção, sobretudo quando as atividades são feitas individualmente e relacionam o contingenciamento de riscos. Essa prática tem sido observada

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A depender da organização produtiva da empresa, da capacidade tecnológica do maquinário de seleção, assim como da homogeneidade/qualidade do lote, em alguns casos estes trabalhadores também são responsáveis por uma pré-seleção do fruto, visando à colocação de lotes mais homogêneos em produção.

em outros territórios, na patagônia argentina, por exemplo (BENDINI; PESCIO; PALOMARES, 1995; BENENCIA; QUARANTA, 2003).

Se observarmos essa questão a partir das contribuições de Castells (1999a) acerca da nova economia global articulada em redes, nas quais o elemento informacional é decisivo no estabelecimento de relações nas cadeias de produção e no compartilhamento de riscos, a rastreabilidade pode ser entendida como um mecanismo de gerenciamento compartilhado de incertezas/riscos83. Isso porque “o gerenciamento das incertezas torna-se decisivo em uma situação de interdependência assimétrica” (CASTELL, 1999a, p. 252, grifo nosso). Sob esta ótica, as responsabilidades são transmitidas pela cadeia e, respeitando as devidas assimetrias, os “custos” (financeiros e sociais) dessa rastreabilidade são assumidos pelos atores em proporções discrepantes. No nível prático da coisa, particularmente no que tange ao trabalho das embaladoras, isso implica na operação de “[...] mecanismos de monitoramento da produção que permitem identificar os trabalhadores envolvidos nas suas diferentes fases, mudando, portanto, o perfil requerido dos trabalhadores rurais” (CAVALCANTI, 2004, p. 27).

As falas das embaladoras contemporâneas entrevistadas na pesquisa trazem alguns dos traços que caracterizam o trabalho por elas desenvolvido e, por conseguinte, somam-se à compreensão desse perfil. Ao aglutinar a série numerosa de termos utilizados por essas mulheres para caracterizar o trabalho realizado ao longo de suas falas, chegamos ao conjunto de cinco grandes elementos associados ao desempenho da função de embaladora: dificuldade, rapidez, controle, atenção e cuidado84 (Quadro 10). Neste sentido, foi possível identificar que as associações mais recorrentes foram aquelas referentes a controle, atenção e rapidez, com destaque para as duas primeiras, nas quais as associações com advérbios de intensidade foram levemente mais frequentes. Cuidado e dificuldade foram respectivamente a quarta e a quinta categoria em número de ocorrências nas falas

Entre as trabalhadoras dessa categoria, todas possuíam mais de três safras consecutivas, trabalhando na mesma empresa, o que nos leva a considerar dois pontos importantes para o tema em questão. O primeiro refere-se ao fato de que esta condição inclina um padrão de respostas com menor importância para elementos de cuidado, enquanto manuseio, e dificuldade na operação do trabalho, pois a perícia alcançada e adaptação ao trabalho (das experiências anteriores) tendem, no nível da percepção, a dar como vencidos

83 Relativos aos impactos ambientais, à segurança alimentar e, mais “virtualmente”, à condição social do

trabalho utilizado produção.

84 Distinguimos atenção de cuidado, pois são acionados essencialmente em operações distintas, respectivamente,

esses aspectos. Neste caso, é provável que se tivéssemos falas de trabalhadoras novatas, com um cenário onde ocorrências para esses aspectos seriam maiores. O segundo e mais importante aspecto diz respeito ao fato de que, mesmo diante da experiência dessas trabalhadoras, as características referentes a controle, atenção e rapidez aparecem com frequências bem elevadas, inclusive para o número de entrevistadas.

Quadro 10 – Principais características associadas ao trabalho das embaladoras contemporâneas das

packing houses de manga do VSF

Freq. total de ocorrências 38 38 30 28 26 22 18 17 15 11 10 10 8 6 Unidade O trabalho da

embaladora Operações

associativas é

tem que ser

precisa de/tem que ter Conectivos de intensidade muito bem Características e atributos gerais pesado difícil rápido controle atenção cuidado

Fonte: Entrevistas realizadas na pesquisa. Contabilizado e elaborado pelo autor.

A ocorrência dominante dos elementos controle, atenção, e rapidez, é indicativa da centralidade de certos aspectos no trabalho das embaladoras, os quais podem ser sintetizados em dois eixos, sendo esses “controle” e “intensidade”. Nessa linha, a atenção cumpriria um papel complementar favorecendo um maior controle sobre o próprio trabalho, com ações e seleções mais precisas. Do outro lado, a velocidade representaria a agilidade e destreza conseguidas com a experiência, e, portanto, um componente do “perfil” básico requerido pelos empregadores, pois diz respeito um atributo que junto a outros possibilita alcançar as metas de produção. Entendemos que a velocidade/agilidade do trabalho é uma das variáveis que compõe a equação da intensificação do trabalho e por isso será abordada em momento específico, em conjunto com outros fatores. Interessa-nos aqui, por ora, a questão do autocontrole no trabalho das embaladoras.

Levando em consideração a realidade observada em campo e os relatos coletados, a questão do controle aparece como peça chave no exercício das funções de embalamento, pressupondo a série de atos ali contidos. Além disso, o controle parece ocorrer de forma estendida nessa categoria, sendo, muitas vezes, acionado nas falas como uma espécie de

“autocontrole” tanto na técnica de operação da função, como também no regramento da conduta. Identificar esse tipo de questão pressupõe um exercício particular de análise sobre as falas, podendo ser acionado, aqui, a fim de apresentar o tipo de associação por trás da questão do autocontrole (Quadro 11).

Quadro 11 – Exemplos de associações à ideia de autocontrole nas falas das Informantes C14 e C32 Sequência 1 – Informante C14 (Mulher, 27 anos, Embaladora Temporária, Empresa Palmer)1

Início da sequência na questão 17

P: e o que a senhora faz como embaladora... assim... se fosse descrever o que a senhora realiza, como seria? C14: basicamente é pegar a manga da esteira, avaliar ali qual é a melhor na questão de cor e calibre e fazer

o posicionamento na caixa da melhor maneira... aí tem que ver isso com cuidado, e estar atenta, porque não pode errar esse processo, que o fiscal corrige na frente. depois tem a identificação da gente e ela segue pra o selo e etiqueta na frente. P: essa identificação é do rastreamento? C14: é esse danado mesmo. (risos)... que as meninas nova fica preocupada depois. P: por quê? C14: qualquer errinho que tiver eles identifica por ali. às vezes passa o dia todo numa boa, a gente produz e tudo tranquilo, quando der fé... chega o encarregado [setorial] no final do dia e diz: “olha, de manhã tinha duas caixas erradas e tal... tem que prestar atenção. eles dizem até a hora que você errou a caixa. [expressão de espanto de P] (risos) é::: é assim, tudo é registrado. por isso eu mesmo evito conversar. continuação C14 P: e o que é que tem a ver? C14: fica conversando

aí erra muito. todas de lá são antigas... a maioria né... mas se ficar conversando ou pensando em creuza [expressão coloquial equivalente a dispersa mentalmente/desatenta], aí vai errar, não tem jeito. tem que prestar muita atenção porque a manga muda, a embalagem muda e você tem que ir calculando tudo isso durante o dia. P: é, tem q ter atenção mesmo. mas então esse negócio do rastreamento funciona também pra ver se vocês erraram? C14: também, mas é coisa que a empresa só faz seguir, porque é exigência lá de fora... de quem compra. E é pra saber direitinho de onde vem a manga, tudo certinho. no final é uma coisa que precisa pra poder fazer essa venda pra fora.

Associações mais emblemáticas entre autocontrole e regramento de conduta: evito conversar/se ficar

conversando/pensando em creuza/fica conversando aí erra muito

Sequência 2 – Informante C32 (Mulher, 30 anos, Embaladora Temporária, Empresa Maia)2

Início da sequência na questão 31

P: existe algum tipo de identificação no embalamento que a senhora faz? C32: a ficha né? P: não sei, o que

é a ficha? C32: é o número da embaladora que a gente coloca na caixa pra fazer o rastreamento da produção né? P: sim::: é isso mesmo. como é que funciona isso? C32: Toda embaladora vai pegando as fichas de 100 em 100 e identifica as caixas que ela embala, faz a caixa e depois coloca. aí pronto, ali aquela caixa é sua produção, você que fez né. qualquer erro ali que encontre depois é seu. P: entendi. mas o que a senhora acha desse rastreamento? muda alguma coisa no trabalho da senhora? C32: assim... não sei se é correto mesmo, mas funciona pra que a produção possa ser...identificada né. pra em qualquer canto saber que veio lá da empresa, e que tá tudo dentro dos conformes como eles [importadores] pedem. P: sei...entendi... mas a senhora acha que isso muda alguma coisa no seu trabalho? ou não faz diferença nenhuma? C32: (silêncio 3 segundos) assim... eu acho que muda o seguinte, você tem que prestar mais atenção no que tá fazendo, tem que se concentrar e não desviar a atenção com besteira o tempo todo, ficar conversando direto não dá muito certo, porque vai acabar passando um errinho ou outro. se você for pensar direito vê que aquilo que você fez ali, aquela caixa vai pra fora...e lá se o comprador achar um erro grosso ele pode ligar e a empresa vai saber quem fez a caixa e tal. por isso que na empresa eles sempre fala nas reuniões, tem que fazer o trabalho com atenção, pra não cometer erro, esse padrão é diferente do nacional.

Associações mais emblemáticas entre autocontrole e regramento de conduta: não desviar a atenção/prestar mais atenção/ficar conversando direto não dá muito certo

1 Entrevista realizada em 17 de outubro de 2015; 2 Entrevista realizada em 11 de janeiro de 2016

As associações realizadas pelas embaladoras no entendimento da questão da rastreabilidade trazem indícios importantes dos efeitos provocados por essa condição produtiva de identificação individual do trabalho. Para tanto, essa questão deve ser percebida, apropriando-se as associações realizadas no interior das falas. Neste sentido, concentrando-se

apenas nos pontos que ajudam a desvendar a questão entre autocontrole e regramento de conduta, é possível perceber, em primeiro lugar, que a rastreabilidade é citada como um instrumento que facilita o controle interno individualizado da produção, estendendo-o para além do campo visual dos fiscais e encarregados. Um segundo ponto a destacar é o grau de precisão do modelo produtivo que as empresas estão alcançando, a ponto de a atividade de embalamento poder ser identificada e atribuída à trabalhadora à hora de execução e até mesmo à linha de embalagem em que se encontrava. As informações vão se somando desde a fase de campo e agregando uma série ampla de dados de packing house que servem ao supremo do controle sem base espacial ou temporal fixa. Em terceiro lugar, o regramento da conduta se apresentou, nas falas destacadas, como a limitação de conversas com outras profissionais e/u reforço da atenção85, sendo, neste sentido, uma forma de autocontrole.

Em quarto lugar, considerando que o rastreamento produtivo se fundamenta na possibilidade de monitoramento virtual86 desencaixado tempo-espacialmente (GIDDENS, 1991), é possível sugerir que, sob essa circunstância, a rastreabilidade dilata o tempo, o espaço, e pulveriza a execução do controle social do trabalho executado para uma infinidade de sujeitos possíveis. O trabalho empregado na produção passa a estar sujeito, mediante essa condição, a um controle que ultrapassa a dimensão do imediatismo material corporificado, ainda que não a abandone. É na prática mais uma forma de controle que comprime o trabalhador ao exercício laboral “mais atento” e “sem distrações” com vistas à excelência da qualidade, pois uma falha não vista aqui pode ser encontrada lá. No nível psicológico, a virtualidade do controle da rastreabilidade se constitui sobre duas faces articuláveis entre si: em um nível, implica a autovigília quase intermitente durante a jornada de trabalho a fim de minimizar potencialmente qualquer falha no embalamento, fazendo com que as trabalhadoras regrem voluntariamente suas próprias condutas que possam causar distração; em outro nível, refere-se à consciência gerada pela trabalhadora de que seu trabalho segue monitorado para além do espaço restrito da packing house (tal como consta na fala da Informante C32).

Em quinto lugar, a rastreabilidade fundamenta-se a partir dos protocolos globais operantes nos circuitos e fluxos do sistema agroalimentar, mas se efetiva enquanto modeladora da produção na esfera local, e nesta interface global/local possibilita o controle consentido. Na lógica das novas organizações produtivas, “salienta-se a centralidade

85 No contexto das falas, uma expressão como “tem que prestar muita atenção porque a manga muda” representa,

no nosso entendimento, dois procedimentos: o primeiro de autorreflexão e o segundo de ajuste da conduta/ação visando à ampliação da atenção.

86 No limite, implicaria em um monitoramento possível de ser realizado por qualquer um, em qualquer lugar, a

estratégica de seus protocolos organizacionais e institucionais. É apenas sobre eles que se articula a hegemonia do capital na produção” (ANTUNES; ALVES, 2004, p. 345). O engajamento do trabalhador estimulado pelo capital, a alienação asseverada, a apropriação integral do trabalho intelectual sobre a face da “participação” no processo são algumas das formas articuladas pelo capital para promover a subsunção da subjetividade do trabalhador. Mas também é possível aventar, acerca de realidades como a produção de itens agrícolas, que a atuação de mecanismos de controle como a rastreabilidade produtiva, quando absorvidos voluntariamente pelos trabalhadores, contribui, do mesmo modo, à subsunção da subjetividade dos sujeitos.

Por fim, parece ser válido aqui acionar uma das lições mais valiosas deixadas por Foucault (2006) a respeito do controle e seu exercício sobre os sujeitos, a qual contempla a ideia de que quanto menos compulsoriamente precisa ser acionado mais forte é o controle. Em outros termos, quanto menos se fundamente na incidência de ordens/comandos/violências diretamente executados homem-homem, mais sólido é o poder, pois passa a contar com a contribuição do controlado. Sob esta perspectiva, a rastreabilidade diminui o exercício do controle sob a forma de ordenamento homem-homem, na exata medida em que o monitoramento sobre a qualidade do trabalho passa a ser também uma operação voluntariamente realizada pelas embaladoras.

Contudo, o controle existente atuante sobre o trabalho nas packing houses, em suas formas básicas ou em suas composições estendidas, se relaciona com a intensificação do trabalho e, sob esse viés, delineia o trabalho nesses ambientes. A intensificação é a outra face relevante do trabalho na mangicultura de exportação do VSF. Podendo ser lida, também, como um ponto da intersecção entre o local e o global, atua significativamente na realidade dos trabalhadores investigados e, por isso, segue discutida em sequência.